"Fantasmas do Império" é, através do cinema, como cinema sobre o cinema, o processo ou inventário, o exame, de uma relação obsessiva de portugueses com o império, que certamente pouco teve de império (não havia meios para ser país imperial), e foi lugar de ocupações coloniais e colonizadoras, e de diferentes tempos políticos e vidas pessoais, hoje espaço de curiosidade, memórias e confrontações com a história e o mito, com a guerra, com as experiências directas ou familiares de muitos (e quase todos têm - temos - laços coloniais-ou-ultramarinos a prendê-los, a ligar-nos).
Mas a relação obsessiva que está aqui presente no cinema, e pelo cinema produzido ao longo do tempo (e que a Ariel de Bigaut percorreu e escolheu, com infinita disciplina metódica), é também um universo de ocultações e silêncios: não quisemos ver o muito cinema que foi pensando as Áfricas (e Macau), recalcámos o passado que nos prendia por curiosidade, fascínio ou imposição.
Uma obsessão, que existe desde sempre, e uma recusa agravada nas décadas que se seguiram à perda, ou derrota, ou libertação, como se quiser chamar. (Vimos poucos filmes dos que a Ariel nos faz ver agora, as produções vão-se acrescentando desde há pouco e o interesse é recente.)
O filme que estreou no IndieLisboa de 2020 chega desacompanhado de promoção a um ecrã de estreia periférico (City Alvalade) e a cinefilia que controla o espaço escrito dito crítico dedica-lhe a atenção mínima (no Expresso, o JLR que patrocina todo o cinema nacional - este filme é franco-português - arruma-o sem interesse; no Público de ontem (03-06) a nota é depreciativa e arrogante, em nome de um eventual outro "filme sobre as imagens coloniais por fazer" - só João Lopes no DN valoriza o que é trabalho de pesquisa das produções do antigo regime (na Cinemateca e com a palavra do director José Manuel Costa) e a "montagem de sóbrio dinamismo" que os cruza com "fragmentos de filmes que nasceram da vontade de repensar a representação colonial de Portugal".
O silêncio cego (e cobarde), ou a perversão cinéfila que se soma ao cancelamento "decolonial", é o mesmo que tem acolhido por cá os filmes de Licínio de Azevedo, em estreia ou no ciclo da Cinemateca (2015, sem catálogo), ou por exemplo a actual exp. ao Padrão dos Descobrimentos (Visões do Império, que chegará também ao cinema)
Antes de ser uma "reflexão sobre o imaginário colonial" (não existe um texto em off), é um diálogo e confronto entre filmes de muito diversos tipos: documentais e de propaganda, “actualidades”, ficções colonialistas e pós-coloniais, olhares contemporâneos, muitos deles raramente vistos ou desconhecidos, como as encomendas do regime a estrangeiros, nos seus últimos dias. Desde o fortíssimo e censurado Catembe de Faria de Almeida e o filme impossível de Joaquim Lopes Barbosa. Circula-se com certeira fluência, sem ordem cronológica de produção mas ordem histórica, entre as diferentes produções fílmicas, também com a presença e a palavra dos respectivos autores (em especial Fernando Matos Silva, João Botelho, Margarida Cardoso, Hugo Vieira da Silva, Ivo M. Ferreira, os mesmos Faria de Almeida e Lopes Barbosa, contando com extractos de Tabu de Miguel Gomes, Non de Oliveira e outros ), a que se somam as participações da investigadora Maria do Carmo Piçarra e dois actores negros, Ângelo Torres, são-tomense, e Orlando Sérgio, angolano, que são cúmplices inquiridores e comentadores. A sequência é imparável e aliciante. São o ritmo, a surpresa e a agilidade da colagem de fragmentos que sustentam este filme sobre filmes, documentário original na sua construção sobre ficções e fantasmas.#fantasmasdoimperio #visoesdoimperioo trailer: https://www.youtube.com/watch?v=Egd7hiYq99M&t
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