O Silêncio da Terra – Visualidades (Pós)Coloniais Interceptadas pelo Arquivo Diamang
fica guardado aqui o texto da Lucinda Canelas no Público de 20 de Junho. julgo que é o único artigo publicado sobre a exposição.
https://www.publico.pt/2021/06/20/culturaipsilon/noticia/diamang-colonialismo-portugues-cabe-neste-retrato-1967057
Diamang: o colonialismo português cabe neste retrato
Em Braga, faz-se agora a primeira apresentação pública de parte do arquivo da Companhia de Diamantes de Angola, combinando a fotografia feita na Lunda nas últimas décadas do Império Português com a arte contemporânea que reflecte sobre a experiência colonial. Trabalhos forçados, segregação racial, feridas abertas na paisagem e na memória numa exposição que não foi feita para doutrinar, mas para emocionar.
PÚBLICIO 20 de Junho de 2021 Lucinda Canelas
Foto Agostiniano Oliveira/Cortesia da Universidade do Minho
Um homem olha directamente para a câmara fotográfica tendo nas mãos três pimentos e um enorme repolho que terá acabado de colher da terra. Ao lado deste retrato que parece inusitado, dado o contexto em que foi feito, há muitas outras imagens que, à partida, julgaríamos difíceis de encontrar nos relatórios oficiais de uma empresa de extracção de diamantes. São imagens que dão conta da criação de ovelhas, porcos e perus, que mostram mulheres a moer cereais e crianças na escola, a pintar, que documentam o funcionamento de clubes de pessoal e de unidades de saúde, entre elas uma maternidade. Noutras há abacaxis siameses e orquídeas elegantes, como se o fotógrafo quisesse, apenas, registar uma raridade do mundo natural ou dedicar-se a um exercício meramente estético.
Contudo, na parcela do arquivo da Diamang – Companhia de Diamantes de Angola (1917-1975) que está a ser estudado pela Universidade do Minho, o que é inusitado depressa se torna familiar e aquilo que é expectável pode ganhar contornos muito particulares. A fotografia, bem o sabemos, tem quase sempre várias camadas de leitura, mas, quando ela é feita em contexto colonial, essas camadas multiplicam-se, adensam-se, e, com o tempo, vão desencadeando e reconfigurando memórias, interpelando quem para ela olha, inquietando.
“Não quisemos contar a história da Diamang e muito menos glorificá-la. Também não tentámos passar uma cartilha sobre o que estas imagens significam nem dizer como se deve sentir quem aqui vem. O que queremos é que as pessoas se disponibilizem a olhar à sua maneira, com a bagagem que trazem, e, se possível, que se emocionem”, diz Fátima Moura Ferreira, comissária da exposição O Silêncio da Terra – Visualidades (Pós)Coloniais Interceptadas pelo Arquivo Diamang.
Esta exposição que leva à Galeria do Paço da Reitoria da Universidade do Minho (UM, até 30 de Junho) e ao Museu Nogueira da Silva (MNS, até 11 de Setembro), ambos em Braga, 560 fotografias que documentam a actividade da maior empresa do Império Português e a vida no mundo que ela criou no distrito da Lunda, no Nordeste de Angola, até à independência do país, cruzando-as com o trabalho de vários artistas contemporâneos que têm vindo a reflectir sobre a experiência colonial, é uma primeira apresentação pública de dois espólios que foram doados à cidade.
O primeiro, com cerca de 30 mil impressões e 30 mil negativos, foi confiado à universidade em 1998 pelo último administrador da Diamang, o geólogo Bernardo Reis, hoje provedor da Santa Casa da Misericórdia de Braga; o segundo, contendo relatórios técnicos, mapas, tabelas de pessoal, plantas e outros documentos em papel, foi entregue em 2018 pela Sociedade Portuguesa de Empreendimentos e está à guarda do Arquivo Distrital de Braga, à espera que os investigadores lhe dêem atenção.
“Esta exposição é uma amostra do riquíssimo acervo que aqui temos e que é preciso continuar a explorar, pondo investigadores de várias universidades nacionais e estrangeiras, em particular africanas, a trabalhar em conjunto”, defende Fátima Moura Ferreira, professora de História Contemporânea da UM que partilha a curadoria de O Silêncio da Terra com Miguel Bandeira Duarte, Patrícia Leal e Duarte Belo, alertando para o trabalho já feito em torno da Companhia de Diamantes de Angola por muitos outros historiadores, antropólogos e especialistas em cultura material, em particular o coordenado por Nuno Porto, que desde 2008 tem vindo a disponibilizar online materiais fonográficos, fotografias e outros documentos da empresa que estão na Universidade de Coimbra. “O Projecto Diamang Digital é fabuloso, tem um manancial de informação imenso e acessível. O que queremos fazer aqui é contribuir para aprofundar o conhecimento sobre a empresa, o seu território, os seus modos de funcionamento, pondo online os documentos à medida das nossas possibilidades, para que outros, em qualquer parte, possam estudá-los.”
A exposição, que se divide em dois pólos, com financiamento do programa ProMuseus e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia — o tratamento das fotografias e dos negativos foi feito, e continua a ser, por bolseiros de investigação do Laboratório de Paisagens, Património e Território (Lab2PT) da UM no âmbito do projecto Mapeamento e Sentidos Críticos do Arquivo Fotográfico da Empresa de Diamantes de Angola —, resulta do cruzamento de uma selecção das fotografias feitas para relatórios e outros documentos oficiais da Diamang com a arte contemporânea para que, explicam as comissárias, o visitante possa ser exposto a uma contranarrativa ancorada no presente.
“A arte contemporânea permite expor a estrutura colonial implícita ao arquivo”, diz Patrícia Leal, curadora responsável pela selecção dos artistas representados, e, ao mesmo tempo, acrescenta Fátima Moura Ferreira, serve de contraponto à visão institucional promovida pela companhia através da fotografia, uma visão que silencia muitas realidades, que deixa muita coisa por dizer.
“Nada aqui foi feito com o propósito de doutrinar, mas sabemos que tudo isto é político e passível de múltiplas apropriações ideológicas. Estimular o pensamento, o imaginário, à volta destas imagens passa também por dar a conhecer o lastro que o contexto em que foram produzidas está a deixar na arte que se faz hoje”, sublinha a professora de História Contemporânea.
Um mundo à parte
Chegou a ter concessionada uma área de 52 mil quilómetros quadrados, o equivalente a mais de metade do território português, e a ter perto de 30 mil trabalhadores, integrando o ranking das cinco maiores diamantíferas do mundo. A Diamang era, à medida do Império Português, um gigante nascido em 1917 para substituir a PEMA – Companhia de Pesquisas Mineiras de Angola, criada cinco anos antes, depois de descobertos os primeiros diamantes na Lunda, região pouco povoada, terra de contrabando.
Com capitais portugueses e estrangeiros (franceses, belgas e norte-americanos) e escritórios em Lisboa, Bruxelas, Londres e Nova Iorque, a Diamang mantém de início uma ligação umbilical à belga La Forminière – Societè Forestière et Minière du Congo que a filia, pode ler-se no livro-catálogo de O Silêncio da Terra, no chamado colonialismo científico. Esta corrente justifica a conquista, a dominação e a ocupação dos territórios ultramarinos com uma missão civilizadora que se propõe substituir aquilo que os europeus definem como a barbárie e as práticas primitivas dos povos locais por um progresso assente no conhecimento, na racionalidade, que lhes é imposto sem preocupações em respeitar as suas culturas e criando brutais assimetrias entre as populações branca e negra.
Foto :Entrega de bandeiras nacionais aos sobas pelo governador do distrito da Lunda, Soares Carneiro (Dundo, 1961) Agostiniano Oliveira/Cortesia da Universidade do Minho
A Diamang celebra o primeiro contrato com o Estado em 1921, um documento que lhe permite ficar com os direitos exclusivos da mineração diamantífera em Angola, assegurar benefícios fiscais nas importações de bens e equipamentos, determinar o que se comercializa na área que lhe foi concessionada e aceder a condições especiais para a contratação de mão-de-obra. Passa, também, a ser responsável pela gestão dos seus territórios e pela segurança das populações, sem afrontar, naturalmente, a administração colonial. Em troca dos privilégios que lhe são concedidos, que muitos na colónia e na metrópole consideram excessivos, entrega anualmente ao Governo de Lisboa 40% dos seus lucros, número que sobe para 50% em contratos posteriores.
“Um dos grandes desafios que a empresa enfrentava, talvez o maior, era a fixação de mão-de-obra, já que a região não tinha, de origem, grande população e o trabalho de extracção era duríssimo”, acrescenta Moura Ferreira, lembrando que, a partir de 1937, Salazar exige que 70% dos quadros técnicos da empresa sejam portugueses.
Não quisemos contar a história da Diamang e muito menos glorificá-la. Também não tentámos passar uma cartilha sobre o que estas imagens significam nem dizer como se deve sentir quem aqui vem. Fátima Moura Ferreira
Embora se afirmasse como uma empresa moderna, a Diamang continuou a apoiar a sua actividade na força humana porque, defende o norte-americano Todd Cleveland, que estudou a estrutura laboral da companhia, era muito mais barato. “É preciso ver se, nos papéis do arquivo distrital, não há nada que rebata esta explicação do Cleveland... Certo é que os trabalhadores africanos eram mal pagos e nunca passavam das posições intermédias. Os chamados ‘assimilados’ podiam chegar a ajudantes dos enfermeiros ou dos administrativos, mas não tinham maiores responsabilidades nem recebiam formação para ter outras ambições, e isso vê-se bem nas fotografias da exposição. Eles estavam sempre em funções subalternas e a hierarquia era muito estática.”
Até ao início da década de 1960, as crianças brancas não se misturam com as africanas nas escolas, a vida é muito segregada. Há, resume a comissária, um apartheid não declarado, e uma imobilidade social mesmo dentro da comunidade branca da Diamang. “Não são só os brancos que não se misturam com os negros, são também os engenheiros brancos que não se misturam com os mecânicos brancos”, diz, explicando que os trabalhadores africanos se dividem em três ordens: os já referidos “assimilados”, “os mais próximos dos europeus e com funções um nadinha mais diferenciadas”; os voluntários e os contratados, estes últimos recrutados à força.
“A lei colonial não permite o trabalho escravo, mas o trabalho forçado é uma constante na Diamang até finais da década de 1960. E ele não se faz só na mineração, faz-se também nos campos agrícolas, onde mulheres e crianças trabalham para alimentar milhares de pessoas.”
Com o crescimento acelerado da empresa, sobretudo a partir dos anos 1950, também a população da Lunda aumentou. Assegurar-lhe habitação, alimentação, educação e cuidados de saúde era a única forma de manter a força de trabalho indispensável à actividade da empresa.
Os relatórios mensais e anuais que se faziam acompanhar das fotografias agora expostas em Braga, mas também de mapas, tabelas e desenhos, davam conta da actividade da companhia e das transformações no território, e, embora prestassem especial atenção aos dados quantificáveis relativos à exploração mineira, continham também informação sobre as populações. E é porque nos dão a possibilidade de ver como se vivia nesta bolha criada pela diamantífera que as imagens testemunham as condições infra-humanas em que trabalhavam muitos dos africanos, a segregação racial evidente e a assimilação forçada num território altamente controlado.
Proibido fotografar
Nas estações centrais de escolha, onde se separavam os diamantes dos outros resíduos de rocha, o trabalho não era tão duro, mas as fotografias destes recintos que lembram campos de concentração e onde, por lei, os trabalhadores só podiam ficar até três meses sem contacto com o exterior, período que podia ser facilmente ultrapassado, dão conta de outras formas de violência colonial.
Numa das fotografias da central de Andrada, um dos pólos vitais da Diamang, vêem-se dois homens negros de costas, nus, e não há como não pensar quase de imediato nas representações dos escravos de outros tempos do império.
“Para impedir o roubo e o tráfico de diamantes, os homens deixavam a central ao fim de meses assim, nus. A vigilância era apertadíssima e admitia este controle que nos parece completamente indigno, mas que ainda hoje se repete em muitas partes do mundo”, acrescenta a professora de História Contemporânea.
É também de uma destas centrais outra das imagens que maior desconforto podem causar nesta exposição. Documenta a passagem pela Lunda do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que em 1951-52 e a convite do então ministro do Ultramar, Manuel Sarmento Rodrigues, visita a Guiné, Cabo-Verde, Angola, Moçambique e a Índia.
Nela o arauto do luso-tropicalismo — a investigadora Cláudia Castelo, autora de “O modo português de estar no mundo”: o luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa, define-o como uma “quase-teoria” que defende a aptidão natural dos portugueses para se adaptarem aos trópicos, usada, em parte, pelo Estado Novo como uma das formas de legitimar a presença em África — assiste com outros convidados e funcionários da empresa a um momento de lazer em que trabalhadores africanos dançam uns com os outros. Separa-os uma rede que parece transformar numa jaula o pátio onde decorre o “baile”.
“Imagens como estas podiam constar dos relatórios porque, na altura, não tinham nada de polémico, eram normais”, diz Duarte Belo, comissário a quem foi confiada a selecção das fotografias, em estreita colaboração com Fátima Moura Ferreira.
As imagens que vemos nas paredes — os comissários optaram por não usar provas vintage por serem muito pequenas, fazendo ampliações sem truques digitais e apenas com pequenos ajustes em relação ao formato dos negativos, quando necessário — são, na sua maioria, da autoria de três técnicos do laboratório da empresa, que tinha no Dundo a sua sede administrativa: Renato Amorim (que fotografou entre 1943-1947), Agostiniano Oliveira (1948-1964) e Júlio Silva Pedro (1964-1975).
Estes fotógrafos tinham liberdade para fotografar o que quisessem, de acordo com Júlio Silva Pedro, que Belo e Moura Ferreira chegaram a entrevistar, mas era à empresa que competia escolher o que constava do relatório. “Havia certamente uma autocensura. Eles tinham noção do retrato que a Diamang procurava. Talvez por isso não haja no arquivo imagens de acidentes, nem do interior das casas dos africanos, nem de reminiscências das suas culturas”, diz o comissário, que na exposição quis reunir uma amostra do arquivo capaz de dar conta de múltiplos aspectos da vida no território da Diamang.
“Encontrei imagens fortíssimas da expressão do colonialismo e com uma qualidade incrível”, garante o fotógrafo que ao longo da sua carreira muito tem documentado o território, em particular a relação entre a arquitectura e a paisagem. Para este projecto, Duarte Belo começou por pegar nas 30 mil fotografias impressas que a equipa do Lab2PT tinha já digitalizado (os 30 mil negativos ficaram de fora, à espera da próxima oportunidade) à procura das mais expressivas, das que lhe permitiam montar uma “narrativa coerente”.
Foto Visita de diplomatas belgas e do governador do distrito de Benguela a um dos sectores da mina Júlio Pedro/Cortesia da Universidade do Minho
De selecção em selecção, uma estratégia que começou por reduzir o lote de 30 mil imagens para 10 mil e, depois, para 942, Duarte Belo passou à sua distribuição por 30 tipologias (mineração, maquinaria, desporto, agricultura…), chegando, assim, às cerca de 300 que hoje vemos na Galeria do Paço da Universidade do Minho, organizadas em sete núcleos temáticos, que vão dos imaginários ligados ao processo colonial, à mão-de-obra nas minas e nas centrais de escolha dos diamantes, passando, por exemplo, pelas estratégias de ocupação e de ordenação do território concessionado à empresa.
“A fronteira entre o documental e o artístico é aqui, como em toda a parte, muito artificial, mas quero acreditar que quem vir a exposição ficará com a ideia de que estes homens sabiam o que faziam e que há um cuidado na composição destas fotografias, há um cuidado ao olhar…” Algo que é tanto mais singular quanto mais pensarmos que estas imagens se destinavam a registos burocráticos da actividade da companhia.
Esse “cuidado no olhar” que se traduz na qualidade das fotografias também se reflecte, acrescenta Fátima Moura Ferreira, no que era ou não fotografado, numa certa higienização da imagem, na edição que, mentalmente, o fotógrafo faz antes de disparar.
“Todos eles conhecem a política da empresa, sabem que retrato querem que chegue lá fora. E a Diamang tem consciência do poder da fotografia, utilizada por todos os impérios desde as últimas décadas do século XIX”, sublinha a comissária, lembrando que, no território concessionado, só os fotógrafos da companhia eram autorizados a recolher imagens. “Nem os mais altos funcionários europeus da Diamang podiam fotografar ou filmar. Se queriam fotografias de um casamento ou de uma festa de aniversário, tinham de chamar um técnico da empresa. É por isso que o que aqui temos em centenas de fotografias forma um gigantesco retrato — é a imagem que a Diamang quis passar para o exterior. E é, ao mesmo tempo, um retrato do colonialismo português.”
Foto Trabalhadores da Diamang (Dundo, 1929) Sem autor/Cortesia da Universidade do Minho
O que pode a arte
Quando foi convidada a integrar a equipa de curadores de Silêncio da Terra, Patrícia Leal conhecia apenas algumas das imagens disponibilizadas pelo Diamang Digital, de Coimbra, mas vieram-lhe à cabeça, quase de imediato, os trabalhos de Kiluanji Kia-Henda e de Mónica de Miranda que podemos ver na exposição em duas fotografias. Na primeira, Lunda in the Sky with Diamonds I (2007), Kia-Henda mostra uma das cicatrizes que a Mina da Catoca, uma das maiores jazidas de kimberlitos diamantíferos do mundo, impôs à paisagem da região da actual Lunda Sul; na segunda, Springboard (2007), Miranda documenta o estado em que hoje se encontra uma piscina pública, uma das muitas infra-estruturas deixadas pelo colonialismo tardio português.
A produção artística de Ângela Ferreira, de Filipa César e de Catarina Simão, presente com os vídeos Adventures in Mozambique and the Portuguese Tendency to Forget (2015), Mined Soil (2012-2014) e Effects of Wording (2014), respectivamente, está também entre as que, logo à partida, esta curadora quis ver representados na exposição.
Com uma pergunta principal em mente — Como é que se pode “descolonizar” um arquivo através das práticas artísticas? — e a preocupação de garantir uma diversidade de meios (fotografia, escultura, desenho, vídeo, instalação) e um equilíbrio de géneros e de origens geográficas (Portugal, Cabo-Verde, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe) no lote de autores escolhidos, Patrícia Leal começou a contactar museus, galerias e outras instituições para reunir o naipe diversificado de peças que, entre as fotografias do arquivo, vão confrontando o visitante.
Kiluanji Kia-Henda, já o dissemos, correlaciona as cicatrizes que a exploração mineira deixa na paisagem e a “ferida colonial”; com uma pintura sobre catanas, Francisco Vidal (Cotton n’Katanas, 2021) refere-se directamente à revolta dos trabalhadores dos campos de algodão da Cotonang, brutalmente reprimida pelas autoridades portuguesas, em 1961; Ângela Ferreira critica as políticas coloniais fazendo zoom sobre o papel das missões etnográficas na “ocupação científica” dos territórios; Alida Rodrigues (The Secret History of Plants, 2014-2019) reflecte sobre a representação estereotipada do africano, do outro, ao anular a identidade dos ocidentais brancos numa série de velhos retratos, substituindo as suas cabeças por sementes e flores.
“Procurei juntar obras que levassem as pessoas a pensar no que é isto da contemporaneidade e como é que ela se relaciona com a herança colonial nos países que já fizeram parte do Império Português”, diz Leal, referindo-se ainda à capacidade que as peças seleccionadas têm de desconstruir a narrativa que o arquivo da Diamang propõe ao ajudarem a recuperar a história a partir do lado africano, quase sempre invisível, quase sempre subalternizado.
Délio Jasse, o escolhido para a única residência artística promovida pela exposição, concorda: “A nossa história está mal contada por nós porque continuamos a deixar que outros países, sobretudo Portugal, sobreponham a sua voz à nossa, muitas vezes sem dizer a verdade, sem falar do que realmente aconteceu. A ideia de que o que fizeram foi um colonialismo manso, suave, benévolo, está ainda na cabeça de muitos portugueses, embora as coisas tenham vindo a mudar nos últimos anos, devagar.”
O convite a Jasse para que criasse a partir deste espólio da Diamang foi óbvio, reconhece Leal, uma vez que o artista angolano nascido em 1980, que fez as suas primeiras exposições em Lisboa, onde se fixou aos 18 anos, e que hoje vive em Itália, está habituado a trabalhar com a fotografia, e em particular com a fotografia de arquivo, institucional ou familiar, que vai encontrando online ou em mercados e lojas de rua.
“Délio Jasse domina muitíssimo bem a manipulação do suporte material, físico, da fotografia. E eu sabia que o arquivo da Diamang lhe ia interessar porque tem muitas camadas e é preciso escavá-lo, despi-lo”, acrescenta.
Os “materiais fotográficos encontrados, cheios de caras anónimas”, sempre lhe interessaram porque encerram a possibilidade de recontar ou de inventar histórias, explica o artista. “Costumo dizer que compro imagens como quem compra verduras. Trago as que me enchem o olho por algum motivo. Aqui escolhi o que mexia mais comigo.”
E o que escolheu denuncia, por exemplo, a forma como a exploração diamantífera ou as estradas e pontes, barragens e centrais eléctricas construídas pela administração portuguesa alteraram para sempre a paisagem da Lunda; expõe com ironia as muitas estratégias de assimilação forçada nas imagens que, impressas em tecido de bandeira, constantemente em movimento, mostram a população negra a mimetizar os comportamentos da população branca em cerimónias de baptizado ou casamento.
Partindo das obras que se podem ver no MNS, e que incluem retratos de sobas em cianotipia encenados pelo colonizador, em trajes tradicionais que não usavam e que fazem com que pareçam “artistas de stand-up”, Délio Jasse insiste nos ecos que este passado tem no presente do seu país, lembrando que a exploração mineira com recurso ao trabalho forçado continua e que muitos dos “assimilados” estão hoje no Governo do MPLA. “A mesa mudou, mas os convidados sentados nas cadeiras são quase os mesmos”, defende este artista que se emocionou ao mergulhar no arquivo da Diamang. “Chorei. Era impossível olhar para todas aquelas imagens de homens a trabalhar como se fossem escravos, homens que podiam ter sido da minha família, e não ficar comovido. Ver a diferença que havia entre a vida dos negros e a vida dos brancos, pensar que algumas daquelas desigualdades ainda existem num país que é independente há décadas…”
Essa diferença nota-se, também, nalguns dos papéis oficiais expostos, como o quadro de pessoal dos europeus, que é nominal — os funcionários têm apelidos como Campos, Eusébio, Davies ou Bishop —, ao passo que o dos africanos é, a avaliar pelos documentos consultados até agora, apenas quantitativo. “Não quer dizer que tenha sido sempre assim. Só no seguimento da investigação poderemos apurar”, diz Fátima Moura Ferreira, sem esconder que gostaria de chegar aos nomes dos trabalhadores negros.
“Muitas das pessoas que virão têm memórias, directas ou indirectas, deste passado colonial recente. Não podemos ilidir a existência dessas memórias. Seria bom que nos disponibilizássemos a olhar estas fotografias sem as ignorar.”
E se a mão férrea da empresa controla o retrato que do seu território é feito, deixando de fora a hipererotização dos corpos, os acidentes de trabalho ou a violência sobre as mulheres, também pode excluir os hábitos das culturas locais que coexistiam com a imposição de práticas europeias, bem como a forma como essas culturas influenciaram, também, os brancos que viviam no mundo da Diamang, adverte a professora da UM. “O que é que havia para além das camadas de ocidentalização impostas pelos europeus? Será que o desígnio de domesticação das populações locais, por vezes com uma violência extrema, coexistiu com uma identidade de matriz africana? É preciso fazer uma leitura mais fina de toda esta documentação sem medo de expormos o que há de terrível no colonialismo tardio português, mas também sem recearmos mostrar que entre portugueses e africanos a relação pode ter sido mais dialógica do que aquilo que pensamos.”
tp.ocilbup@salenacl
Crítica
Quando a História ainda é possível
Livros
As fotografias são objectos difíceis e as dos impérios coloniais ainda mais
Série Fim do Império
O fim do império colonial português
https://www.publico.pt/2015/01/22/culturaipsilon/noticia/o-fim-do-imperio-colonial-portugues-1682883
O fim do império colonial português
Nas “políticas de memória” contemporâneas houve um “ajuste de contas” com o passado ditatorial mas não com o passado colonial.
António Costa Pinto
22 de Janeiro de 2015, 7:03
Comments