À volta das pinturas do José Miguel Gervásio.
"A invenção das telecomunicações" (2021). Óleo s/ tela de linho. 114,5 x 98 cm.
nota de J.M.Gervásio no fb: Diz Arasse no final do texto "O olhar do Mestre", incluído no livro "Não se vê nada", edições KKYM: "(...) O Quadro da Família, mais tarde As Meninas, demonstra que o pintor não precisa de ser um intelectual para pensar. Tudo se passa como se fosse o próprio quadro a produzir um sentido visual independente e exterior às ideias que o pintor e o seu comandatário pudessem fazer dele - e muito depois do desaparecimento de ambos. Também neste sentido, o quadro é sem dúvida, uma obra prima."
Eu: O R.B. Kitaj escrevia longos textos a acompanhar os quadros (a história, as referências, as condições...) - era uma das marcas de um artista genial (1932 – 2007). O Gervásio escreve títulos que não são menos enigmáticos que os seus quadros; eles fazem parte de um puzzle ou colagem de imagens, citações ou alusões, pistas, indícios, que se "entendem" ou não: os quadros são para ver, não para ler, são para ver tudo. "Não se vê nada!" (título de Daniel Arasse, referido abaixo por ele) - não se percebe nada? - ou vai-se vendo, percorrendo, procurando?
Um aliás dois dos seus modelos/actores/personagens, uma vista de Montemor certamente, uma das suas construções-esculturas, os objectos-adereços de uma cena teatral (candieiro e manequim) -- os dois personagens comunicam?; o céu e a terra quase vermelhos, as nuvens-fumo (a envolver a árvore sem folhas ou como folhas), um espaço de céu e terra intranquilos e em que entramos ou escorregamos - lava ardente?; as línguas de cor ou balões de BD : mensagens-comunicação sem texto.
A pintura é "maximalista", ficcional sem história, diferente do habitual design preferido dos de-curadores, inalcansável, sedutora e incómoda, e é pintura mesmo, pintura a fazer-se e a ver-se. Desta pintura não se encontra aí pelas colecções públicas.
Perguntei: (não estou a asneirar? escrever é difícil...)
G - está tudo muito bem. Escrever sobre o que não tem, aparentemente, programa é complicado. Poderíamos viver a vida inteira ao lado disto e mesmo assim escaparia alguma coisa. Agradeço a atenção.
A - anoto "o que não tem, aparentemente, programa". É isso, há um programa, certamente móvel, in progress.
G - Pois, móvel, pelo facto de cada quadro ter uma espécie de autonomia. Um momento que se conquista a partir da incerteza. É um trabalho complexo, provavelmente um trabalho de composição; de composição que se faz em cima do plano do quadro. É uma espécie de ética. Se não for assim não serve, não funciona.
Por outro lado, é preciso ir mudando, ir alterando. Sem mudança as coisas acabariam por adormecer. Mas não sei descrever a inquietação dos quadros. Só sei que me aborreceria se fossem todos iguais.
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