Sobre a Paula Rego diz-se muita asneira, um chorrilho de disparates. Corrijo, transcrevo-me, desabafo, provoco, acrescento: (do facebook)
ela não fugiu, o pai mandou-a estudar para Londres (Slade, 1951-56, 16-20 anos) voltou grávida e por cá ficou com o pai das crianças e marido e professor (o seu crítico pessoal), a viver nas casas dos pais, Estoril e Ericeira. Foi em Portugal que trabalhou e fez carreira, no pequeno meio e mercado nacional, em poucas exposições muito bem escolhidas, por vinte anos, até voltar em 76 para Londres (quando a fábrica da família se perdera...) e, depois de grandes dificuldades económicas e uma oportuna bolsa Gulbenkian, fez a 1ª exp. individual só em 1981, numa galeria pública.
Foi um talento muito precoce mas teve um reconhecimento inglês muito tardio, embora fulgurante. O sucesso inglês disparou apenas em 1988, depois da 1ª retrospectiva na Gulbenkian levada à Serpentine. Passou então à maior galeria comercial, a Marlborough, foi comprada pelo publicitário Charles Saatchie (New British Painting), e pela Tate, teve mostras itinerantes na GB, foi muito apoiada pela crítica feminina e pelas escritoras feministas, disparou como grande artista inglesa (circulou integrada na Escola de Londres, com Bacon, Freud e outros), mas a grande projecção internacional foi também recente, até à actual destacada presença na Bienal de Veneza, com um espaço individual na mostra colectiva.
Sempre determinada e muitíssimo profissional, foi capaz de assegurar a grande produção exigida pelo mercado de topo. Grande pintora, hábil e privilegiada, praticando a pintura como ficção e exorcismo (como manifesto e intervenção também) sempre com grande inteligência, coincidiu com o "regresso" à pintura e à figuração dos inícios pós-modernistas da década de 80. Um "destino" de excepção, único. Aliás, com traços idênticos à Vieira da Silva: a família abastada, os estudos fora, o marido grande pintor mas discreto, a carreira internacional com alguma rectaguarda nacional. A Paula é inglesa, a Vieira é francesa, nascidas em Portugal. E as grandes carreiras fazem-se nas grandes metrópoles. Aqui o pessoal gosta de ser enganado e de viver de mitos.
Como artista, a Paula nunca participou de um estilo colectivo, o que é raro acontecer aos artistas, e mais difícil para a recepção crítica, por não se acolher ou integrar o artista às conhecidas regras de grupo (ou inventando-as, por vezes), e ela foi sempre atravessando sucessivas fases quanto à expressão formal, mantendo uma reconhecível continuidade temática, sem se fixar num "estilo", numa travessia solitária por sucessivas maneiras ou linguagens. No início dos anos 80 deu uma nova legibilidade à figuração e à narração que antes ocultava nas colagens, passando a criar personagens e histórias: "contar" histórias (a relação com a literatura) era um dos interditos do formalismo moderno. Encontrei-a no atelier a estudar a perspectiva em maquetes (nunca aprendi a fazer a perspectiva..., disse) e vivia então um processo de aprendizagem do desenho e em especial de desenho do natural, com a presença do modelo vivo, que continuou no estudo directo dos "clássicos" propiciado pelo seu tempo de artista residente na National Gallery de Londres. Esse foi certamente o mais importante tempo de viragem, ultrapassando a fase anterior de uma figuração simplificada, de aparência infantil, em que se relacionava com a ilustração e a banda desenhada, para alcançar um novo domínio da composição e uma grande densidade dos seus sentidos. Em tempos de "bad painting" a sua pintura distinguia-se, qualificada pela revisitação dos grandes precedentes.
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