A década de 70 é um tempo quase desaparecido na obra e na carreira de Paula Rego. Porquê? A actual exposição da Casa das Histórias permitirá reflectir sobre esse facto. Percorrer demoradamente todo um período da obra de um grande artista de longa carreira, aqui os anos 70, que não são um período maior da sua obra como é consensualmente aceite, é um excelente programa para um museu monográfico.
É a década mais difícil da obra e também da vida da Paula, e elas nunca foram independentes; seguindo a exposição de Cascais vai-se tornando evidente, até ao final da década, a necessidade crescente de mudar a sua pintura. Ela repete-se e torna-se mais "deliberada" (palavra da autora) que expontânea ou livre na suas construção
Se atendermos à retrospectiva que teve lugar no Reina Sofia, vemos que não se mostraram obras dos anos 70 - passou-se de 1966 (Os Bombeirors de Alijó) a uma cena do Macaco Vermelho (que "...bate na mulher"), acrílico sobre papel de 1981. Outras antologias e edições fizeram um salto semelhante. Na 1ª grande antologia, 1988, CAM e Serralves, tb na Serpentine, Londres, as obras, em especial colagens de papeis recortados sobre tela vão de 1959 a 1969, com 19 títulos, com mais 7 óleos sobre papel sem colagens. Seguiam-se 6 pinturas da série Contos Populares Portugueses, col. CAM, do tempo de bolseira, c. 1975, e apenaas duas telas com colagens de 1977 e uma grande Anunciação de 1981, do mesmo ano do 1º desenho-pintura não recortado.
Na década de 70, PR expôs em Portugal (individualmente na São Mamede e Alvarez, 71 e 72; na gal. da Emenda, 74; na Módulo, 75 e 77; na 111, 78) e participou em colectivas institucionais no exterior (representou Portugal na Bienal de São Paulo de 1969 e de novo em 1975, embora limitasse a exposição do seu trabalho no contexto português). Só em 1981 e em especial em 1982 arrancou a sua projecção em Londres, já com trabalho diferente das anteriores colagens, apesar de em 1965 ter sido apreciada na mostra "Six Artists" no ICA: Poster, catalogue and invitation card for her first show in London. Six artists Jocelyn Chewett, Richard Humphey, Edward Piper, Paula Rego, Bernard Schottlander, Anna Teasdale. I.C.A. London 28th April-29th May 1965. Designed by James Meller, custa hoje £1,800.00 (https://www.roeandmoore.com). Entre os 6 só PR viria a ter notoriedade.
Foi o mercado (embora lentamente) e a crítica nacionais que "sustentam" nos anos 60/70 o trabalho da PR, até à "descoberta" inglesa, e é essa década alargada que está mais presente nas colecções nacionais como esta mostra comprova, para além das muitas obras que ficaram no espólio da pintura - sem terem especial reconhecimento britânico. Essa relação entre mercados nacional e internacional é sempre um importante elemento de análise das carreiras. Depois de ter estudado em Londres (na Slade, de 1952 to 1956, distinguida com um prémio escolar significativo em 55) há um espécie de exílio em Portugal por razões da vida pessoal, num regresso temporário que lhe permite afirmar-se a seguir em Londres. A rectaguarda familiar e a cumplicidade de Vic Willing foram apoios certos.
A partir de 1957, PR reside e trabalha na Ericeira com o pintor Vic W. e 3 filhos. Em 1963 passa a dispor de uma casa em Londres comprada pelo pai, e em 1976 instala-se aí em permanência, perdendo o apoio financeiro familiar. Bolseira da Gulbenkian em 1962-63 e de novo em 1975-76 (pesquisa sobre contos tradicionais, num momento de crise pessoal e da carreira).
Ao sair da Slade, PR afasta-se dos modelos escolares. Refere o interesse por Henry Miller e pelos seus relatos eróticos, assume a influência de Dubuffet e da Art Brut, a que se liga o gosto pelo surrealismo e em especial Miró (a associação livre, a dimenção onírica, o espalhamento de formas e sinais). Desde o início, em desenho e pintura (colagem de desenhos recortados e repintados), as obras são narrativas, projectam histórias ou inquietações pessoais e os títulos referem histórias mesmo que de legibilidade inviável.
Em vários aspectos a pintura de PR nos inícios dos anos 60 encontra-se com a de artistas do grupo Cobra, surgido nos anos 40/50 mas com itinerários posteriores : a herança surrealista e proximidade Bruta, a intenção política, a espontaneidade "irracional" ou convulsiva, uma figuração que toma vias da arte popular e depois dos comics, no contexto alargado da procura de novas figurações sem modelo realista. Nos anos 60 e 70 de PR há cruzamentos do seu trabalho com a figuração narrativa (Telemaque e Bertholo, por exemplo), com os imagistas de Chicago (Jim Nutt e Gladys Nilsson), com Peter Saul, e com o Batarda dos anos 70, o qual por essa altura partilha as mesmas referências. O universo Pop inclui estas derivas que comunicam com a banda desenhada e o cartoon, as artes populares, o humor crítico. PR distancia-se dos artistas Pop britânicos na busca de um caminho pessoal, mas não está sozinha.
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