Júlio Pomar. 1942-2018. Depois do neo-realismo
Apresentação ou Prefácio
Reuni neste volume textos de vários destinos e diversos temas, com predomínio do capítulo neo-realismo / novo realismo, mas alargando o horizonte até aos últimos anos da obra de Júlio Pomar, sem a pretensão de abordar todas as décadas, e foram oito... O neo-realismo é só o começo, muito referido quando se fala do artista, por fixação cómoda aos estilos colectivos, como uma marca indelével, que muitas vezes cega ou esconde, como se fosse um lugar fixo na história. Mas também acontece que ela, a história, é mal contada. É por isso de uma correcção de versões académicas e correntes que em grande medida por aqui se trata, propondo diferentes pistas. O neo-realismo não é o que dele se disse. Como exemplo, a abordagem de algumas obras então trocadas com outros artistas (Fernando Lanhas, Victor Palla, Mário Dionísio, João Abel Manta) serve de eloquente ilustração
Quase tudo aconteceu na obra de Pomar depois do neo-realismo, e por isso o título.
Nos anexos acrescentei 24 textos dispersos não incluídos nas recolhas publicadas em 2014 pelo Atelier-Museu - porque eram então desconhecidos. Prefácios para catálogos seus e de outros, uma palestra sobre o desenho e o pincel japonês («A mão contraditória»), apresentações, homenagens a amigos e lembranças de circunstância ou de oportunidade – desde 1947 a 2017, com uma gravação de ignoradas data e intenção que ficou a abrir a sequência por tratar da infância. E no segundo anexo publico a pouca correspondência com interesse que sobreviveu às mudanças da vida, sem ser coleccionada: cartas singulares da Galerie Lacloche antes da partida para França, dos amigos Mário Dionísio, Manuel Vinhas, Paula Rego, José Cardoso Pires, mais os extractos de duas dezenas enviadas aos filhos Alexandre e Vitor que percorrem os primeiros anos de Paris, e uma última escrita no Xingu. Outras cartas trocadas com Menez na viragem dos anos 70/80 já tiveram edição própria do Atelier-Museu: ficou a saber-se que a pintura não é produção fácil para alguns pintores e isso raramente se escreve (só em cartas privadas?) e menos ainda se divulga.
Destaco um primeiro texto analítico mais longo que abriu o volume I do Catálogo Raisonné, em 2004, onde identifiquei a Geração de 45, a emergência simultânea e cúmplice de jovens artistas em Lisboa e Porto no fim da 2ª Guerra, e a originalidade do neo-realismo português no contexto dos realismos sociais e socialistas do mesmo tempo internacional – e aí se seguiu também brevemente a mudança sequencial da obra até 1968, fim desse volume. A informação vinda das Américas e a atenção cosmopolita, fortalecida pela falta de qualquer tradição realista nacional e moderna que fosse reconhecida pelos novos, determinaram a excepção do caso nacional, que teve logo depois, para outros artistas de uma geração plural, derivas por surrealismos e «abstracções» próprias da época. Recordo também um muito anterior escrito polémico sobre a grande exposição Os Anos 40 (Gulbenkian, 1982), que sumariou questões críticas não desmentidas e teve uma decisiva consequência pessoal – fiquei comprometido nestes terrenos, e os reparos permaneceram a desafiar o status quo. Aliás, os anos 40 perduraram por várias décadas, a vários níveis. São a grande ruptura do século XX, pela actualização da informação, o contacto internacional e a aparição de grandes artistas modernos com longevidade.
A investigação sobre as referências internacionais presentes nos escritos da época e o inventário possível da biblioteca sobrevivente de Pomar, desde 1942 (16 anos), documentou aquela tese. A propósito, acrescento uma breve digressão internacional sobre realismos. Também é inédita a valorização de um segundo período do novo realismo de Pomar, já no início da década de 50, no contexto de uma renovada mobilização partidária que falava de Paz no tempo das Coreias em guerra, com diferentes relações francesas mas sempre com desejada independência estética. Este capítulo, o do Atelier da Praça da Alegria (dez anos depois do da Rua das Flores, ambos de grupo), quando Pomar condena o seu «desvio lírico», foi propiciado pela primeira apresentação pública da Marcha de 1952, o grande painel com o retrato (premonitório?) de José Dias Coelho, e fica prolongado até às obras maiores do Ciclo do Arroz. No que contesto a leitura de Mário Dionísio, depois de antes ter recusado a versão do neo-realismo estabelecida por José-Augusto França, esta com larga descendência escolar. Face à circulação habitual de informação em segunda mão, nunca escrutinada, é preciso ir às fontes com alguma minúcia.


A seguir abordam-se temas sectoriais, como os frescos do Batalha, agora com nova actualidade, a confirmar o seu lugar mítico sem paralelo, o desenho inicial e vindo de Caxias, a tapeçaria, a obra gráfica. E esclarecem-se momentos de afirmação colectiva que foram sendo vítimas de equívocos: a exposição de 1942, que não recobria paredes com folhas do Diário da Manhã, como passou a contar-se, seguindo um Vespeira tardio; os supostos «Passeios à Ribeira» antedatados e exagerados, outro mito; a dinâmica de uma afirmação geracional vibrante no imediato Pós-guerra (página «Arte», Missão Estética de Évora, Independentes do Porto, etc); logo as Exposições Gerais até 1956, a sua larga abrangência e o seu termo. Não se trata de empolar no espaço das artes plásticas a história do neo-realismo ou, melhor, do novo realismo, como logo passou a dizer-se. Foi em muito grande medida um episódio político e para alguns um breve caminho inicial, embora com obras desde logo reconhecidas e marcantes, em especial no caso de Pomar. Foi também a sequência nacional bem informada e possível dos realismos anti-fascistas internacionais dos anos 30/40, antes da sua deturpação às mãos de soviéticos e alemães, e da respectiva ocultação num Pós-guerra demasiado norte-americano. Paradoxalmente, ou não, é muito pouco exposto (é certo que há pouco para expor, em quantidade e qualidade) mas é demasiado falado, como um fantasma persistente.

Passando adiante no tempo, Depois do novo realismo..., abordo o que pode chamar-se a inspiração Pop, que se manifesta pelo final da década de 60, a seguir a indecisões no trabalho da pintura e destruições de quadros: fechava-se então um caminho vivido num contexto pessoal sempre sensível a mutações globais, que já tinha sido o de uma primeira ou mesmo segunda maturidade. Essa inspiração passa pelos Beatles (o ar do tempo), pelo ultimo Catch e os Rugby’s (a fotografia apropriada) e Maio’68, para seguir dos Banhos Turcos d’après Ingres aos Retratos, sempre sem ser a adesão explicitada a um estilo colectivo, que aliás a Pop não foi. Do interesse pela cultura popular ao diálogo com a arte dos museus, que vários Pop praticavam – em especial nas três magníficas natureza mortas a partir de Chardin, de 1976. Foi cedo testemunhado, mas discretamente, o interesse do artista pelo que de novo via em Paris (uma carta de 1965, duas entrevistas de 66): Rauschenberg e a Pop anglo-saxónica – embora falando mais de Matisse, que, aliás, também interessava aos novos pintores, Warhol, Wesselmann e Lichtenstein, que o citam com frequência. A reorientação foi da gestualidade em que as formas se dissolviam sem remédio para as superfícies recortadas de cores lisas, onde a figura se refaz, inteira ou fragmentada mas emblemática. Eram novos realismos. Antes de passar a outra «fase», erótica, mais austera parecendo o contrário, numa circulação rápida que fazia desorientar a apreciação crítica.
Os períodos dos Retratos das décadas de 70 e 80 têm uma rápida abordagem própria, a propósito da antologia que foi exposta no Atelier-Museu; houve muitos retratos desenhados no início da carreira e marcaram também o final, estes pintados, em geral retratos relacionais, cumplicidades. Passou-se do retrato-cartaz Pop (Viana e Almada) e da figura mais presente e íntima, a do retrato nu, tal como o auto-retrato, já depois dos dois notáveis retratos de cerimónia e encomenda dos 60, mais um livre por opção, para a liberdade lúdica do retrato literário, de imaginação e ilustração, a qual vai conduzir às figuras das mitologias, com que se configura um último e longo período tardio, que ainda foi interrompido e fecundado pelo encontro com os espectáculos brasileiros, Marcarados e Índios, 1987-90. Chegando ao presente, ao ritmo das exposições recentes do Atelier-Museu, a longa relação com a literatura, ilustração, pintura literária, pintura narrativa, contra os tabus do tardo-modernismo formalista (essencialista também), é questionada em «Ver histórias, ler quadros». Reflexão que deu origem à proposta da exposição seguinte, para rever ficções e mitos que não seguem livros e inventam enredos, a produção mais tardia, pouco conhecida. Num tempo derradeiro de pintar a «Comédia Humana» que Helmuth Wohl baptizou em 2004, e que se apresentou no Atelier-Museu em 2022 como «Pintura de Histórias», e de História, onde incluímos a permanência de D. Quixote e memórias da Amazónia, quando também aconteciam retratos dos amigos no retorno do pintor a Lisboa e convívios com o Fado.

O alinhamento segue a cronologia dos temas, não a das publicações, e todos os textos, quando não são inéditos, foram alargados, revistos, actualizados e anotados, mais ou menos profundamente. Não é a edição original, por vezes jornalística, que aqui importa, a qual pode ser consultada nos sites/sitios próprios, mas sim o estado presente das questões tratadas – em certos casos raros acrescentei adendas e alterações entre parêntesis rectos quando se mudaram opiniões vencidas respeitando a prosa anterior. Há informações que por vezes se repetem em textos diferentes, para sistematizar a informação, mas a leitura do volume não será corrida e deve ser segura, sobre factos e referências. Cumpre agradecer convites para colaborar em edições várias, a Joaquim Vital das Éditions de la Différence, a António Redol e à directora do Atelier-Museu Júlio Pomar, Sara Antónia Matos, para além do que foi como ponto de partida trabalho no Diário de Notícias e no Expresso.