20/12/2022
A "arte contemporânea" já não é actual! Isto é, o género ou estilo "arte contemporânea" (com aspas) já não é a actualidade, não é a arte do presente, a arte contemporânea. É uma categoria a que corresponderia a desvalorização, recusa ou subalternização das obras actuais que não cabem nessa suposta classificação. Existe a arte dita contemporânea que cumpre uma suposta e fatal linha evolutiva que vem do modernismo de Manet ao formalismo tardio de Greenberg, passando pelo ready-made de Duchamp, e segue depois (contra o mesmo Greenberg, o arguto e influente crítico do século norte-americano, primeiro paradoxo), da Pop Arte até à obediência conceptual-minimal com que a ideologia das vanguardas se dissolve sem gerar novos estilos (70 anos depois não há mais estilos novos a sucederem-se), mas (segundo paradoxo) sem que essa suposta "arte contemporânea" como ideologia deixe de fazer dividir a produção artística em arte de vanguarda e arte convencional, conservadora ou kitsch, já só por efeito da palavra dos agentes do mundo da arte, os intermediários.
Essa é uma palavra ligada ao contexto de apresentaçãoi (o museu, a galeria, a colecção, a teoria), palavra imposta e garantida pela institucionalização das vanguardas, as quais foram críticas da “arte burguesa” e passaram, pós-68, a ser a arte oficial, que se articula com a teoria especulativa da arte e com o mercado especulativo sobre a plataforma cúmplice dos museus e “galerias-lider”, e os seus serviços de comissários, dealers, críticos e coleccionadores “de ponta”. De vez em quando, para dar exemplos nacionais, rompe-se a rede instituída com os escândalos Rendeiro-BPP (Museu do Chiado e Gal. Cristina Guerra), Espírito Santo / Colecção BES e BES Photo, com Manuel e Alexandra Pinho e respectivas colecções privadas, ou Oliveira Costa-BPN (Miró e outros restos), mas a máquina e as máfias absorvem tudo, apagam tudo, sobrevivem a tudo (não confundir com a Colecção Berardo que nada tem a ver com os acidentes da bolsa, ou com outro grande coleccionador que foi o Jorge de Brito, um grande colecionador dos anos 60/70, inteligente aventureiro das finanças que o pós-25 de abril conduziu à falência).
Isto é, a "arte contemporânea" que segue o figurino conceptual-minimal, na linha duchampiana da apropriação-apresentação (em alternativa à representação, dito em traços gerais), é só uma parte da arte contemporânea, mas há quem tome a parte pelo todo. E é uma parte envelhecida e oficializada, depois de se ter exposto como novidade, ruptura, crítica do consumo conformista, etc. A sobrevalorização descontextualizada e resistente das vanguardas, desvalorizando e ocultando o que foram os modernistas não vanguardistas, e também os não modernistas, os itinerários pessoais e paralelos, prolonga-se e apoia-se na defesa militante das neo-vanguardas, em muitos casos sustentando revivalismos e versões anedóticas. Não existem mais vanguardas, hoje, e os neo-vanguardismos são revivalismos que fizeram o seu tempo e se esvaziaram de sentido, mas há artifícios argumentativos que os usam de um modo gestionário: são termos e lógicas caducadas mas com uso instrumental para dividir, escolher, administrar e comissariar, comprar e vender.
No entanto, é essencial observar que não há fronteiras nítidas e substanciais entre os objectos e artistas apresentados como "arte contemporânea" e os reconhecidos como arte actual, contemporânea. Por um lado, a circulação de objectos e artistas entre categorias e entre museus mercados é acidental, ao sabor de conveniências tácticas e oportunismos. Por outro o que se mostra em contextos restritivos de "arte contemporânea" (por exemplo a Col. Teixeira de Freitas) inclui obras e artistas com importância e qualidade, mesmo se a acumulação indiferenciada, a lógica do vale tudo, dificulta ou impede a avaliação e a escolha.
O objecto encontrado eventualmente alterado (escolhido e nomeado, assinado e exposto) está numa linha de produção que vem do início do século, com as colagens cubistas, que se singulariza com o urinol (fonte: o objecto banal mais o seu contexto de apresentação, indispensável) de MD, e que chega a uma nova condição (e diferente realidade objectual) com AW, quando a caixa Brillo dita e tomada como arte (situada no espaço e no mercado da arte - e hoje num super-mercado especulativo) não em nada se desligue da embalagem Brillo do supermercado corrente - essa indistinção é o ponto de chegada (um fim da arte que continua como arte). Ou seja, o objecto de arte indescernível do objecto corrente insere-se numa tradição que vem já do início dos anos 60 sem novidade maior, mais pobre (povera) ou mais sofisticada ou tecnológica, com as suas variantes pintadas na tradição do monócromo: o novo já tem muita idade e a ruptura já é, afinal, uma tradição - afinal paralela a outras tradições, à pintura, à figura, à representação, que não se extinguiram (pelo contrário...) apesar de terem sido condenadas pelo que se quis afirmar como a vanguarda . E as vanguardas são sempre fundadas na exclusão, ou seja, tomam a afirmação de uma novidade como caminho de futuro inevitável (como a vanguarda fascista ou comunista).
Por exemplo, uma pintura da Graça Morais (exposta agora na São Roque, a não perder) não cabe no género ou estilo arte contemporânea, com aspas, mas é arte contemporânea, arte actual, e da melhor que se faz. Dentro do género "arte contemporânea" com aspas há obras apreciáveis (candidatas à apreciação e bem recebidas), porque surgem como atitudes críticas, como gestos de humor, como novidade (efémera), com qualidades visuais e sensíveis, qualidades estéticas (MD no início do ready-made procurava a indiferença artística e não o prazer ou o reconhecimento estético), com significados comunicativos e relevantes, paródicas ou inventivas. Há objectos de arte (mesmo que não pareçam arte) estimulantes ou idiotas; há obras interessantes e inventivas e outras oportunistas e medíocres. Não há que fazer uma rejeição em bloco, mas sim escolher, apreciar e defender, sendo caso disso, e também recusar e denunciar. Valorizar ou depreciar. Este é um terreno de crítica e de combate, de diferindo e dissidência, e não se pode dizer que gostos não se discutem, porque é exactamente o gosto, o juízo estético, e o gosto informado, que sustentam a disputa argumentada, não para exigir um consenso definitivo (um lugar inquestionável na história), para impor um saber especializado que silencia o profano, mas para avaliar razões aprofundando a recepção das obras.
A “arte contemporânea” é uma questão de contexto, apresenta-se em espaços próprios e de configuração garantida (o museu de algum arquitecto-estrela, Serralves, ou o armazém de preferência semi-arruinado, a Cordoaria), enquadrada e justificada por um discurso especializado e específico de carácter tautológico, mesmo se exíguo (como é o caso), que exige do seu público crente ou do espectador profano um respeito reverente, beato, de que deve estar ausente o juízo de gosto e a vontade crítica. Tudo se equivale entre consagrados e emergentes.
Na exposição do MNE ou da Cordoaria ou da colecção Teixeira de Freitas é o contexto que apaga a diferença, o que é anedota e variação ou o vestígio breve de práticas (pesquisas?) que devem ser positivamente reconhecidas, e o objecto que se impõe ao olhar, se possível olhar cultivado.
Acontece que a arte que é hoje ainda oficializada por alguns agentes e instituições perdeu a sua credibilidade. Outras artes actuais ganham uma nova visibilidade...
(em revisão, in progress)
17/12/2022
https://coleccaoteixeiradefreitas.com/index.html?#salas
PATÉTICO
ANEDÓTICO
Artist at work, Mladen Stilinovic, fotografia, 8 partes, 1978
Francisco Tropa, "Linha do Olho - Linguagem do crânio", 2003, Técnica mista (tijolo e boné)
Julião Sarmento, Alientos, 2012 (madeira, ferro, esmalte aquoso, vidro, cera, papel, fita cola, arVoluspa Jarpa, De los Artilugios Cotidianos, 2014, escultura, instalação. [ Robinson Crusoe]
Paulo Bruscky "Silence - Homage to John Cage", 1993, Cotonetes e lápis sobre papel
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