« novembro 2022 | Main | janeiro 2023 »
Posted at 19:58 in 2022, Berardo, CCB, Museu Berardo, Museus | Permalink | Comments (0)
Graça Morais, "Anjos e lobos - Diálogos da Humanidade", São Roque, até 28 jan. -- Catalogo Graça_SãoRoque.pdf
Jorge Queiroz /Ashily Gorki, "To go to...", Gulbenkian -- https://gulbenkian.pt/cam/agenda/jorge-queiroz-e-arshile-gorky-to-go-to/
Mistifório, Fidelidade - Chiado. cur. Natcho Checa, até 20 jan. -- https://www.fidelidadearte.pt/eventos/mistiforio/
Amor Veneris, Palácio Anjos, Algés, prolongada até 8 março -- https://musex.pt/amor-veneris/
Colecção Teixeira de Freitas, “Outras Lembranças, Outros Enredos”, Cordoaria: uma insólita exp. para discutir o que é a "arte contemporãnea" como género ou estilo -- https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2022/12/cordoaria-col-teixeira-de-freitas.html
Eureka!, Centro de Arte Oliva, São João da Madeira, Porto, até 5 março -- org. António Saint Silvestre -- https://centrodearteoliva.pt/exposicao/eureka/
José M. Rodrigues, “Sem título, original”, Palácio D. Manuel, Évora + "Vi gente", Igreja de São Vicente, Évora (retratos) + "Amanhã será ontem" (antologia e inéditos), Auditório Augusto Cabrita, Barreiro, até 29 jan.
A Família Humana, org. Jorge Calado, Museu do Neo-Realismo, Inaugurada em 2021, foi tendo novas remontagens e novas obras -- https://www.museudoneorealismo.pt/exposicoes/evento-564/a-familia-humana
Pintura de Histórias, Atelier-Museu Júlio Pomar, cur. Alexandre Pomar e Sara Antónia Matos
máquinas e a memória da Cordoaria Nacional, exp. imprevista e não "curada" que permitiu conhecer o recheio bem conservado da antiga fábrica, pertencente à Marinha, alertando para a necessidade da instalação de um núcleo de arqueologia industrial (ou um museu, alargado a mais património)
Posted at 10:26 in 2022 | Permalink | Comments (0)
“O tempo do sr. Berardo acabou”, diz o ministro da Cultura. Espero que o Pedrito se arrependa desta afirmação infantil e injuriosa. Sabendo-se que o Berardo está doente, a frase, se a disse, é ainda mais chocante. A Colecção continuará a ter o seu nome, o que é da mais elementar justiça; o contrário seria um escândalo também internacional. Mas o Museu deve continuar também a ter nome Berardo, mesmo que acolha o que resta da colecção BPP / Rendeiro / Elipse.
O Expresso é aqui sem inquérito e sem vergonha cúmplice do governo, mas no último parágrafo da notícia (recado?) ajeita a mão e confirma que está tudo em aberto. Leia-se:
"Questão não despicienda: ainda está por saber-se a decisão judicial que resultará do pedido de revogação do arresto das obras interposto pelos advogados de Berardo, e como é que a mesma afeta o futuro da Coleção e do Museu de Arte e Moderna e Contemporânea a nascer no CCB em 2023. “Não faço cenários. Será sempre uma decisão judicial no contexto de um processo em que o Estado não é parte”, diz Adão e Silva, frisando que, “clarificada esta situação e reconhecendo o valor único da coleção, o Estado estará empenhado em negociar com quem for o seu titular. Trata-se de uma coleção privada, que será ou do senhor Berardo ou dos bancos. Vamos garantir a fruição pública até haver uma decisão e, depois, negociar com o proprietário quando a coleção estiver livre de encargos”.
Guiados o MC e a CGD por um personagem equívoco, que foi há muitos anos um dos cérebros da lavagem do cupão (absolvido) e que concebeu a engenharia financeira da compra inicial da Coleção, assente nos lucros do grupo de imprensa e em especial do Record, como me dizia à época (agora insinua outras manigâncias, como se não fosse ele o agente), estão a meter-se por caminhos duvidosos. Não haverá decisões rápidas sobre a colecção, que poderá ficar no CCB na qualidade de activos dos bancos, com valorização assegurada, ou ser transferida pelo fundador e proprietário para instalações que estão prontas para isso.
Nota: o Expresso anda mt encostado ao Pedro Adão e Silva, por razões que alguns sabem, mas tem vindo a rasteirá-lo levianamente, a metê-lo em complicações. Inabilidades. Incompetências.
Posted at 01:13 in Berardo, CCB | Permalink | Comments (0)
20/12/2022
A "arte contemporânea" já não é actual! Isto é, o género ou estilo "arte contemporânea" (com aspas) já não é a actualidade, não é a arte do presente, a arte contemporânea. É uma categoria a que corresponderia a desvalorização, recusa ou subalternização das obras actuais que não cabem nessa suposta classificação. Existe a arte dita contemporânea que cumpre uma suposta e fatal linha evolutiva que vem do modernismo de Manet ao formalismo tardio de Greenberg, passando pelo ready-made de Duchamp, e segue depois (contra o mesmo Greenberg, o arguto e influente crítico do século norte-americano, primeiro paradoxo), da Pop Arte até à obediência conceptual-minimal com que a ideologia das vanguardas se dissolve sem gerar novos estilos (70 anos depois não há mais estilos novos a sucederem-se), mas (segundo paradoxo) sem que essa suposta "arte contemporânea" como ideologia deixe de fazer dividir a produção artística em arte de vanguarda e arte convencional, conservadora ou kitsch, já só por efeito da palavra dos agentes do mundo da arte, os intermediários.
Essa é uma palavra ligada ao contexto de apresentaçãoi (o museu, a galeria, a colecção, a teoria), palavra imposta e garantida pela institucionalização das vanguardas, as quais foram críticas da “arte burguesa” e passaram, pós-68, a ser a arte oficial, que se articula com a teoria especulativa da arte e com o mercado especulativo sobre a plataforma cúmplice dos museus e “galerias-lider”, e os seus serviços de comissários, dealers, críticos e coleccionadores “de ponta”. De vez em quando, para dar exemplos nacionais, rompe-se a rede instituída com os escândalos Rendeiro-BPP (Museu do Chiado e Gal. Cristina Guerra), Espírito Santo / Colecção BES e BES Photo, com Manuel e Alexandra Pinho e respectivas colecções privadas, ou Oliveira Costa-BPN (Miró e outros restos), mas a máquina e as máfias absorvem tudo, apagam tudo, sobrevivem a tudo (não confundir com a Colecção Berardo que nada tem a ver com os acidentes da bolsa, ou com outro grande coleccionador que foi o Jorge de Brito, um grande colecionador dos anos 60/70, inteligente aventureiro das finanças que o pós-25 de abril conduziu à falência).
Isto é, a "arte contemporânea" que segue o figurino conceptual-minimal, na linha duchampiana da apropriação-apresentação (em alternativa à representação, dito em traços gerais), é só uma parte da arte contemporânea, mas há quem tome a parte pelo todo. E é uma parte envelhecida e oficializada, depois de se ter exposto como novidade, ruptura, crítica do consumo conformista, etc. A sobrevalorização descontextualizada e resistente das vanguardas, desvalorizando e ocultando o que foram os modernistas não vanguardistas, e também os não modernistas, os itinerários pessoais e paralelos, prolonga-se e apoia-se na defesa militante das neo-vanguardas, em muitos casos sustentando revivalismos e versões anedóticas. Não existem mais vanguardas, hoje, e os neo-vanguardismos são revivalismos que fizeram o seu tempo e se esvaziaram de sentido, mas há artifícios argumentativos que os usam de um modo gestionário: são termos e lógicas caducadas mas com uso instrumental para dividir, escolher, administrar e comissariar, comprar e vender.
No entanto, é essencial observar que não há fronteiras nítidas e substanciais entre os objectos e artistas apresentados como "arte contemporânea" e os reconhecidos como arte actual, contemporânea. Por um lado, a circulação de objectos e artistas entre categorias e entre museus mercados é acidental, ao sabor de conveniências tácticas e oportunismos. Por outro o que se mostra em contextos restritivos de "arte contemporânea" (por exemplo a Col. Teixeira de Freitas) inclui obras e artistas com importância e qualidade, mesmo se a acumulação indiferenciada, a lógica do vale tudo, dificulta ou impede a avaliação e a escolha.
O objecto encontrado eventualmente alterado (escolhido e nomeado, assinado e exposto) está numa linha de produção que vem do início do século, com as colagens cubistas, que se singulariza com o urinol (fonte: o objecto banal mais o seu contexto de apresentação, indispensável) de MD, e que chega a uma nova condição (e diferente realidade objectual) com AW, quando a caixa Brillo dita e tomada como arte (situada no espaço e no mercado da arte - e hoje num super-mercado especulativo) não em nada se desligue da embalagem Brillo do supermercado corrente - essa indistinção é o ponto de chegada (um fim da arte que continua como arte). Ou seja, o objecto de arte indescernível do objecto corrente insere-se numa tradição que vem já do início dos anos 60 sem novidade maior, mais pobre (povera) ou mais sofisticada ou tecnológica, com as suas variantes pintadas na tradição do monócromo: o novo já tem muita idade e a ruptura já é, afinal, uma tradição - afinal paralela a outras tradições, à pintura, à figura, à representação, que não se extinguiram (pelo contrário...) apesar de terem sido condenadas pelo que se quis afirmar como a vanguarda . E as vanguardas são sempre fundadas na exclusão, ou seja, tomam a afirmação de uma novidade como caminho de futuro inevitável (como a vanguarda fascista ou comunista).
Por exemplo, uma pintura da Graça Morais (exposta agora na São Roque, a não perder) não cabe no género ou estilo arte contemporânea, com aspas, mas é arte contemporânea, arte actual, e da melhor que se faz. Dentro do género "arte contemporânea" com aspas há obras apreciáveis (candidatas à apreciação e bem recebidas), porque surgem como atitudes críticas, como gestos de humor, como novidade (efémera), com qualidades visuais e sensíveis, qualidades estéticas (MD no início do ready-made procurava a indiferença artística e não o prazer ou o reconhecimento estético), com significados comunicativos e relevantes, paródicas ou inventivas. Há objectos de arte (mesmo que não pareçam arte) estimulantes ou idiotas; há obras interessantes e inventivas e outras oportunistas e medíocres. Não há que fazer uma rejeição em bloco, mas sim escolher, apreciar e defender, sendo caso disso, e também recusar e denunciar. Valorizar ou depreciar. Este é um terreno de crítica e de combate, de diferindo e dissidência, e não se pode dizer que gostos não se discutem, porque é exactamente o gosto, o juízo estético, e o gosto informado, que sustentam a disputa argumentada, não para exigir um consenso definitivo (um lugar inquestionável na história), para impor um saber especializado que silencia o profano, mas para avaliar razões aprofundando a recepção das obras.
A “arte contemporânea” é uma questão de contexto, apresenta-se em espaços próprios e de configuração garantida (o museu de algum arquitecto-estrela, Serralves, ou o armazém de preferência semi-arruinado, a Cordoaria), enquadrada e justificada por um discurso especializado e específico de carácter tautológico, mesmo se exíguo (como é o caso), que exige do seu público crente ou do espectador profano um respeito reverente, beato, de que deve estar ausente o juízo de gosto e a vontade crítica. Tudo se equivale entre consagrados e emergentes.
Na exposição do MNE ou da Cordoaria ou da colecção Teixeira de Freitas é o contexto que apaga a diferença, o que é anedota e variação ou o vestígio breve de práticas (pesquisas?) que devem ser positivamente reconhecidas, e o objecto que se impõe ao olhar, se possível olhar cultivado.
Acontece que a arte que é hoje ainda oficializada por alguns agentes e instituições perdeu a sua credibilidade. Outras artes actuais ganham uma nova visibilidade...
(em revisão, in progress)
17/12/2022
https://coleccaoteixeiradefreitas.com/index.html?#salas
PATÉTICO
Posted at 00:55 in 2022, crítica | Permalink | Comments (0)
De mal a pior. É certamente uma estreia no espaço que devia ser o da crítica de arte, a seguir às páginas de crítica de cinema, música, livros... Ou não foi uma estreia, mas os assuntos ou o calendário justificavam a solução precária ou expedita. Agora (23 dez.), a página Exposições do Expresso é ocupada por uma jornalista não qualificada para o efeito, substituída aos críticos habituais, certamente por uma contestável imposição das chefias, e o texto não questiona nem elucida, serve. A promoção, o discurso publicitário de encomenda, o frete imposto por um chefe ignorante e autoritário substitui o exercício da crítica responsável (se ainda era responsável). Percebe-se que os dois titulares da secção não quereriam dedicar uma página à Armanda Passos, mas outros poderes se impuseram certamente (não tenho inside Information). A respectiva pintura, que não irei ver à Fundação Champalimaud, desagrada-me desde sempre, é uma fórmula popularucha repetida, poupando aqui outras apreciações. Para os leitores vão-se confundindo valores, cresce a incompreensão e vence a indiferença.
Há poucas semana (9 Dez.), o Balanço do Ano da área das exposições contara só com a escolha de um crítico habitual entre três autores de escolhas, anunciando-se assim a degenerescência da cultura da revista. A lista dos melhores não era credível, para além das divergências de gosto.
A desaparição da crítica de artes plásticas, ou artes visuais, na imprensa generalista é uma situação a agravar-se há algum tempo, e cada vez mais acontece, por exemplo no Público, que exposições relevantes são passadas em silêncio, enquanto supostas "emergências" e galerias amigas vão tendo algum espaço. Lembro, no Público, as exposições actuais de Graça Morais (uma das melhores do ano), o Mistifório do Natcho Checa na Fidelidade, uma boa surpresa, e a recente Colecção Teixeira de Freitas, uma imensa exibição de "arte contemporânea" (com aspas) apresentada pelo MNE na Cordoaria, pouco ou nada divulgada mas que abria caminho a questionamentos necessários, ou a anterior Pintura de Histórias que co-comissariei e foi a mais importante antologia de Júlio Pomar desde as de 2004. O que tem lugar nas páginas é aleatório, sem qualquer padrão inteligível, um calhar suspeito.
A crítica não é só vítima, ela foi preparando o terreno para ser enterrada.
Posted at 00:54 in 2022, crítica, Expresso | Permalink | Comments (0)
Posted at 10:24 in Berardo, CCB | Permalink | Comments (0)
Mercado Santa Clara. Inauguração (À esq. Rui M. Pereira, co-comissário. Fotos Mário Bastos)
https://www.academia.edu/1542548/As_%C3%81fricas_de_Pancho_Guedes_uma_colec%C3%A7%C3%A3o_africana
Posted at 00:26 in 2010, Africa, Pancho Guedes | Permalink | Comments (0)
exposição "Anjos e lobos - Diálogos da Humanidade", galeria São Roque #graçamorais22
Abaixo, Sines 2006
Graça Morais, Sem título, 2022, 80x120 cm, acrílico s. tela
Duas pistas devem ser seguidas para ver a pintura de GM. Uma é a sua relação com o neo-expressionismo que se manifesta nos inícios dos anos 80, e de que se conhecem melhor Clemente ou David Salle ou Lupertz ou Sarmento, este de passagem. Sem seguidismo, mas partilhando um mesmo espírito no campo do chamado "regresso à pintura" e das suas novas figurações (com companhia de Dacosta, Paula Rego, Menez e Pomar, que então recomeça o primeiro e os outros mudam a sua pintura). A que se chamou também transvaguarda e pos-modernismo, sublinhando-se a descoberta e valorização da expressão das culturas locais e identidades nacionais (o genius locci) sobre a universalidade abstracta do "moderno". As suas melhores obras ombreiam com aqueles e ultrapassam JS (mais mediatizado sempre e dispondo do controle dos espaços institucionais, ainda hoje), num "estilo" pessoal afirmado na presença dos corpos e suas metamorfoses, animais e humanos. Com informação e heranças das culturas populares do norte.
Aproximações a Picabia (as sobreposições, o palimpsesto) e Picasso (Guernica).
Outro tópico é a dimensão e intensidade da sua relação com os males do mundo - parece que GM carrega por vezes toda o drama da existência humana, como inquietação, medo e revolta. Alguma retórica menos feliz aflora por vezes mais nos títulos que nas obras, mas estas ficam como questões abertas e feridas expostas na vida das pessoas, em especial nas mulheres. Aqui os 4 Migrantes desenhados, notáveis, e em "A Caminhada do Medo" e "As Sombras do Medo". É uma pintura de explícita intenção e de grande ambição nos seus assuntos e nas expressões formais, de grande persistência de carreira, alheada dos processos de marketing das imagens e de facilidade decorativas.
2011 e 12 13 O medo, a morte, desastres da guerra - a s´ria
Migrantes e Refugiados 2018 e 19
a Ucrânia Misha 2022
A fortuna crítica (ou infortúnio crítico) e as condições da carreira
Longe dos pólos do novo poder nos anos 70, que se organiza a partir da SEC com escala na Alternativa Zero 1977 (+ LIS 79 e 81) e passagem ao Depois do Modernismo (83) que se estrutura no eixo Cómicos SEC/IAC Frágil.
Figura maior dos anos 80 é excluída das "selecções" da década, com exemplo maior nos 10 Contemporâneos de Alexandre Melo em Serralves 90.
ausente na exp. sobre o Retrato no MNAA em 2018 depois da exp de Cascais em 2005
Sem Serralves, CCB, CAM FG sem prémio Aica
A política "geracional" dos anos 90 (Isabel Carlos, João Fernandes, Pedro Lapa)
Porto 67-71 (Puzzle 76-77) // PARIS 76-79 // Vieiro 81-83
Gal. 111 de 1983 a 2006-8
Paris FG: 77 - 88 - 2001 - 2017
97 Soares dos Reis - Culturgest (Pernes)
19 Soares dos Reis - MNAC
Champalimaud 2017: 20 de Jan e 27 jan 2017
Considerar que a crítica que defendeu GM vem da lógica formalista dos anos 50/60, e é depois substituída por um outro contexto geracional.
uma obra de maturidade, num tempo em que os (novos) artistas são aparições de desgaste rápido, para usar e deitar fora; em que se coleccionam miudezas, coisas baratas; em que as aquisições do estado são programadas como bolsas assistenciais e realizadas como jogos de cumplicidade.
A pintura não tem de ser fácil, nem deve ser design. GM pinta os males do mundo.
A estranheza de um mundo real (rural, local), retratos e alucinações, uma pintura rude, crua, difícil certamente, sem concessões ou amabilidades. Aquela gente existe como um desafio, impõe-se na sua distância vivida longe da nossa cidade cega. Olha-nos de frente, interpela-nos, também como pintura, intensamente imagem e pintura. Sobreviventes e radicais, ferozes por vezes, fantasmas vivos. Máscaras, memórias, raízes, assombrações. Graça Morais ocupa agora um lugar único, sem parcerias na sua geração de 70.
Por vezes há problemas de escolha nas exposições da Graça, e há estudos que deviam ficar pelas gavetas, mas aqui há um vasto conjunto de obras de 1ª escolha, excelentes, marcantes, vindas de anteriores mostras (tb a da Fund. Champalimaud em 2017) ou inéditas. Uma excelente montagem
(As batatas. À direita, pequenas pinturas de 2022.)
Migrantes I a IV, 2018, carvão.
Um exposição de excepção na São Roque. Depois da magnífica mostra na Fund Champalimaud em 2017. Quem faz melhor nos dias de hoje? 1
#
O espírito do lugar
07-01-2006
O mar de Sines na pintura de Graça Morais
O que parece ser, em fotografias e nas peças da exposição do Atelier Aires Mateus patente no CCB, um excelente exercício de abstracção arquitectónica revela-se um obstáculo à visão das obras de Graça Morais que inauguram as galerias do Centro de Artes de Sines. As calhas dos néons reflectem-se nas primeiras obras, o percurso avança por uma rampa ascendente onde se mostram, sem o recuo necessário, os trabalhos de maior formato e volta depois atrás, perdendo-se o visitante num espaço modular labiríntico e mal sinalizado. Pode ser que o edifício resolva com sucesso outras valências, mas a galeria subterrânea que atravessa o pequeno «CCB» de Sines, de tecto baixo e volumes muito recortados, não se utilizará com facilidade - a exposição da arquitectura impõe-se ao que nela se mostra. Ao dizer o presidente da Câmara que «este novo centro foi também pensado como uma obra de arte contemporânea», levanta-se uma pista para discutir a dimensão mais formal da arquitectura, as vias especializadas da sua mediatização e a respectiva habitabilidade.
Graça Morais enfrentou uma segunda dificuldade ao localizar os temas da exposição na cidade que a convidou, sem recorrer à facilidade do «site-specific». Instalou o ateliê no castelo e procurou «inspiração» nos motivos da pesca, ignorando o complexo industrial que rodeia a baía (há vestígios de guindastes numa das obras e noutra um cargueiro atravessa o mar). Representar um lugar e a sua gente, interpretar uma realidade específica e transcrevê-la em pintura como visão de um olhar pessoal tornou-se um desafio pouco frequente, que alguma doutrina considera inútil ou impossível - a fotografia cumpriria a tarefa, e a arte actual ter-se-ia afastado do regime da representação para se pretender «reflexão sobre» e experiência dos seus limites. Esse é o academismo contemporâneo, que raros artistas desmentem, à margem dos trilhos oficializados.
Não se trata, na obra de Graça Morais, de propor uma descrição realista de lugares, e a paisagem está ausente como género, surgindo apenas, e só às vezes, como espaço habitado pelas figuras. Estas, entretanto, têm assumido numa parte crescente do seu trabalho a ambição e responsabilidade do retrato (como também acontece em obras de Sines), mesmo quando à regra do reconhecimento dos retratados se sobrepõe a procura de identidades colectivas, eventualmente matriciais ou míticas, como sucede no já longo projecto de identificação da artista com a sua região transmontana de origem. De facto, Graça Morais transforma a disciplina do retrato num campo aberto ao imaginário e à memória, num processo de derivas e mutações (às vezes pela sobreposição de imagens, como palimpsesto) onde podem surgir a máscara, a metamorfose em formas animais ou o próprio rosto da artista.
Toda essa dinâmica se pode observar ainda na mostra «Retratos e Auto-retratos», que constitui uma importante antologia temática, com obras recentes e algumas outras que vêm já dos anos 80. As três telas da série «Deusas da Montanha», de 2001, e o grande tríptico Auto-retrato?, de 2002, na direcção da alegoria, ou as sequências de desenhos e pinturas concentrados na dureza de rostos camponeses são argumentos de grande força. A recente mostra «Visitação», na 111 do Porto, e o álbum Uma Geografia da Alma (edição Bial) são outros passos dum momento de grande visibilidade do seu trabalho.
Nas obras de Sines, reunidas em Os Olhos Azuis do Mar, com texto de António Mega Ferreira, que há 20 anos já tinha escrito uma primeira monografia editada pela Imprensa Nacional, as gaivotas são as primeiras intérpretes de uma alegórica referência à pesca. Pássaros humanos (anjos profanos?) acorrem ao Festim, à Festa da Abundância, que se repete à chegada dos barcos, e ingurgitam ou vomitam peixes em cenas desenhadas com crueza.
Depois, os retratos de pescadores prolongam-se na estranheza mutante dos «Homens-peixes», e uma raia torna-se Menina do Mar, sempre pela via da metamorfose das figuras. Referências históricas (Vasco da Gama) e míticas (a lenda da cabeça de São Torpes) vêm cruzar-se com os dados do visível, ou o que dele impressionou a artista, e talvez não chegue a resolver-se, nas obras de maior formato, a integração dessa soma de informações em composições unificadas. O grande projecto de uma nova História Trágico-marítima, com mais de cinco metros, aparece como uma espécie de sumário dos motivos individualmente trabalhados, onde as figuras vogam à deriva sobre o azul do mar. No entanto, mais do que saber se essas obras sustentam a sua ambição talvez desmesurada, importa reconhecer a coragem do desafio.
«Os Olhos Azuis do Mar»
Centro de Artes de Sines, até 3 de Abril
«Retratros e Auto-retratos»
Centro Cultural de Cascais, até domingo
https://centroartegracamorais.cm-braganca.pt/pages/158?event_id=201
2014 Julho 28 DN - Graça Morais expõe na SNBA obras que vão para S. Paulo, DN
nota GRAÇA MORAIS, 111 - 9 Fev. 91
https://expresso.pt/cultura/2017-02-26-Uma-luta-continua-chamada-arte
#
discordância:
"A liberdade da pintura é total, convida a contemplar a obra numa perspectiva puramente pictórica, como se a pintura se tivesse libertado da sua função de representar e fosse só pintura em toda a sua força expressiva." Sílvia Chicó, catálogo.
JLP não se interessa pelos temas (migrantes, desalojados...) e faz uma abordagem só formal à volta da transformação e mertamorfose.
Posted at 12:17 | Permalink | Comments (0)
Com um notável projecto de arquitectura de Artur Andrade (1913-2005), o Cinema Batalha foi inaugurado em 29 de Maio de 1947, encontrando-se à data não concluído o fresco da parede maior, o hall. Júlio Pomar tinha sido detido a 27 de Abril, em Évora, por pertencer à Comissão Central do MUD Juvenil, como todos os seus outros elementos, excepto Octávio Pato devido a uma confusão de nomes. A 2 de Maio, o arquitecto (Empresa Forum) pediu por carta dirigida à PIDE que se autorizasse o artista a vir ao Porto concluir o trabalho; o mesmo fez a empresa do cinema, que era orientada por Luís Neves Real (1910-1985), matemático afastado do ensino e cineclubista. Não tiveram êxito.
O diário portuense O Primeiro de Janeiro de 28-05-1948 (pág. 4) incluiu uma pequena notícia, «O Cinema Batalha é inaugurado amanhã», onde refere que «foi decorado com motivos ligeiros de arte modernista». Em Setembro-Outubro desse ano, libertado o artista a 26 de Agosto, o fresco foi terminado. Por essa altura realizava no Porto, na Galeria Portugália, a sua primeira exposição individual, de desenhos, alguns realizados na prisão e vários reproduzidos no álbum XVI Desenhos, prefaciado por Mário Dionísio e iniciativa da revista Vértice.
Foi já em 1948 que o governador civil Antão Santos da Cunha, antes subdirector da Policia Judiciária do Porto, depois deputado, impôs a eliminação das pinturas. Segundo uma carta enviada ao artista em 17 Junho pela empresa Neves & Pascaud, proprietária até hoje, «uma determinação das autoridades» obrigava-a a «eliminar da decoração do seu Cinema Batalha as pinturas murais», fixando 25 de Junho como data limite para o efeito – mais de um ano depois da inauguração. Cconhecido recentemente um ofício dirigido ao ministro do Interior pelo presidente da Câmara do Porto, Luís de Pina Guimarães, tentando contrariar o ordem de ocultação ou destruição: «que [Sua Excia] se digne de considerar o caso relativo à legalização das obras executadas no Cinema Batalha, visto ter chegado ao meu conhecimento, por informações fornecidas pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que as pinturas existentes no Interior do edifício foram já devidamente modificadas de modo a poderem ser consideradas aceitáveis.» Tem a data de 15 de Julho e refere um anterior ofício no mesmo sentido enviado a 6 de Março. Desconhecem-se pormenores do desentendimento entre as autoridades do Porto e não há indicação de qualquer modificação da obra, depois da troca inicial do tema, dos trabalhos do vinho no Douro (de que existe um estudo) pelo dos arraiais do São João. Mas o cumprimento da ordem pelo cinema terá sido cauteloso, recobrindo-se o fresco sem o destruir, talvez contando com uma próxima recuperação: não se previa que o regime se eternizasse.
Nenhum escândalo público ou teor figurativo dos frescos justificavam a eliminação de uma obra não panfletária e assumidamente decorativa, mas onde a presença do povo em liberdade e em festa podia desafiar a razão repressiva. Se não tiver sido uma arbitrariedade do cacique local, é possível ter-se tratado já de uma retaliação do regime no contexto repressivo contra a candidatura de Norton de Matos à Presidência. O general apresentava-se então oficialmente às eleições, sendo o seu Manifesto «À Nação» distribuído a 9 de Julho. Pode não passar de uma coincidência em tempos que eram mais lentos. A campanha eleitoral começou formalmente a 3 de Janeiro de 1949, e as eleições realizaram-se em 13 de Fevereiro, com a desistência do candidato. O retrato do general desenhado por Pomar teve uma grande presença na campanha e nesse ano ele foi demitido do lugar de professor de desenho do ensino técnico, o último emprego que teve. Disse o artista numa entrevista: «O acto censório que manda destruir o meu mural no cinema Batalha, no Porto, é deliberado e, do ponto de vista de quem exerceu essa autoridade, acho-o perfeitamente coerente. Se esse acto de mandar destruir uma obra era coerente com o que pensavam os poderes públicos, não quer dizer que aceitemos esses poderes. No fundo, embora não houvesse um conteúdo revolucionário evidente — não havia foices e martelos — os homens e as mulheres que lá andaram e que eu pintei na parede não tinham a ver com as imagens estereotipadas que eram fornecidas como imagem do chamado povo. Eram outra coisa, mas nessa altura as autoridades perceberam perfeitamente que as personagens que eu lá pus não eram ranchos folclóricos. Era uma outra verdade, inconveniente – in «O que a vida me ensinou», entrevista de Valdemar Cruz, Expresso / Única, 05-03-2005.
A realização dos murais do Batalha foi encomendada e iniciada em 1946. A revista Horizonte, Jornal de Arte, Lisboa, nº 2, de Novembro, informou: «A decoração mural (11x6 metros) que Júlio Pomar vai realizar para o 'hall' do cinema Batalha, do Porto, da autoria do arq. Artur Andrade, foi fixada pelo preço de 30.000$00». Outra notícia, referente ao que foi uma conspiração contra os murais em execução, que não tinha a ver com a posterior ocultação, mas sim com movimentações de artistas mais conceituados que detestaram ser preteridos a favor de um estudante, foi publicada por Manuel de Azevedo: «Um escândalo artístico – Está ameaçado de destruição o painel do Cinema Batalha, do Porto», numa destacada página inteira do Mundo Literário, Lisboa, nº 37, 18 de Janeiro 1947 (inclui 2 fotografias das obras em execução). Era um jornalista amigo do pintor, cinéfilo e cineclubista, vindo já da página «Arte» do jornal A Tarde, ao qual o artista pedira a intervenção cúmplice.
As pinturas murais eram muito frequentes ao tempo, até aos anos 60, a fresco ou não, em estafes temporários na Exposição do Mundo Português, de que ainda restam poucos exemplos menores, nas gares do Almada, a preencher as galerias do Museu de Arte Popular, por coincidência inauguradas também em 1947, com outro povo, etnográfico ou folclórico; em instituições públicas, escolas, cinemas, pousadas. Os artistas que não conviviam mal com o regime viviam bem das decorações e eram professores, o mercado de quadros vinha por acréscimo (1).
Artur Andrade projectara pouco antes o Café Rialto no edifício de Rogério de Azevedo, à Praça D. João I, um inédito arranha-céus. Era uma primeira obra onde o espaço interior se desenvolvia numa galeria de dois espaços articulados, um café luxuoso onde se aplicava o ideal da integração das três artes com um grande mural desenhado a carvão por Abel Salazar em que, «a traço vigoroso, está simbolizado o esforço da Humanidade através da História», O Século, 1944. Está agora entaipado numa loja de gadgets, o que é um escândalo. Havia também frescos de Dordio Gomes e Guilherme Camarinha (ocultados ou já destruídos?) e um baixo-relevo de João Fragoso, este desaparecido. Logo depois (1944) projectou a Livraria Portugália, na Rua 31 de Janeiro, com «um hall magnífico, que vai do passeio ao segundo andar, decorado com alegorias dos principais ramos das especialidades de obras que a casa vai representar» (A Tarde, 1945), em dez altos relevos do escultor Américo Braga, e duas pinturas executadas por Augusto Gomes. Victor Palla acompanhou o projecto, propôs a instalação de uma galeria no andar superior, activa de 1945 a 1951, e acrescentou as montras que circundavam o hall (2).
A que se seguiu o Batalha, onde integrou um muito grande relevo do escultor Américo (Soares) Braga na fachada (à data retirou-se o martelo, agora reposto em metal, mas deixara-se a foice), os frescos de Pomar, frisos decorativos de Augusto Gomes e António Sampaio, que lembravam criações de Walt Disney, mais uma estátua, nu feminino, Flora, de Arlindo (Gonçalves) Rocha, então seguidor de Maillol e depois escultor 'abstracto', a qual se conservou e agora se mostra.
Era insólito que uma encomenda de tal envergadura (11x6 metros no ‘hall’ e 6x3m no bar) fosse entregue a um jovem que acabara de fazer 20 anos, sem carreira escolar (andava no 2º ano da Escola de Belas Artes), embora reconhecido desde as Exposições Independentes e as pinturas de Évora (o Gadanheiro), e que por essa altura organizava a Exposição da Primavera no Ateneu Comercial do Porto. A ordem pública e política andava ainda alterada desde o fim da 2ª Guerra. Na realidade, já em 1945, quando dirigia a página “Arte”, onde se afirmava o neo-realismo, Pomar realizara estudos de projectos decorativos (incluindo pelo menos um baixo relevo documentado) previstos para os empreendimentos turísticos de Ofir, nomeadamente de Alfredo Ângelo de Magalhães, outro colaborador da página, e para Vianna de Lima. Vários desses desenhos conservam-se nos acervos de Ernesto de Sousa e do Atelier-Museu. Pomar contou ter desistido dos projectos para Ofir perante a oportunidade da IX Missão Estética em Évora com Dordio Gomes.
Ernesto de Sousa anunciou os frescos do Batalha sem os identificar, no artigo «A arte e o público» Seara Nova, 28-09-1946 (3): «Quais as superfícies em que os artistas pintarão para a maioria do povo? Aqui se verá mais uma vez o encontro desses dois factores determinando-se reciprocamente: por um lado, uma vida colectiva mais intensa e em formas mais evoluídas, está oferecendo ao pintor vastas construções colectivas, com vastas superfícies; por outro, essa cultura que vimos ser a da maioria dos homens, a do povo, determinará uma pintura que não se poderá contentar com os quadros de cavalete, mais interessantes para as intimidades recônditas de quem se isolou dos homens. Estes dois factores concorrerão para uma nova pintura mural – o que já começou a acontecer.»
Os frescos do Batalha ficaram conhecidos por fotografias feitas por Ernesto de Sousa, certamente para corresponder a um pedido de José-Augusto França. Tornaram-se essenciais para os trabalhos de restauro realizados em 2022. Uma carta do futuro historiador, de 29 de setembro de 1947, justifica essa hipótese: «Passei ultimamente pelo Porto e fui ver os frescos de Júlio Pomar ao Batalha. A coisa agradou-me debaixo de muitos pontos de vista e gostaria de fazer um pequeno estudo sobre eles. Para tal, e supondo que o seu amigo Pomar ainda não está ‘visível’, pretendia eu que você me facilitasse alguns ‘dados históricos’ e pretendia o Horizonte algumas fotografias ou estudos, etc, para publicar também». Tinha urgência na resposta porque partia para Paris dentro de dias. França, que se subscrevia aí como «camarada às ordens», tinha então interesse pelos realistas modernos como Fougeron (artigo em Horizonte, Abril 1947). Não escreveu o texto, mas na sua História do séc. XX, lembrava-se de que tinha ainda podido ver no local «o mural [...] que seria coberto com escândalo»: ele «dá-nos a medida do seu talento e da sua originalidade, definida por um desenho de grande potência barroca com a expressão espacial das suas curvas e línguas de fogo que ligam dinamicamente figuras e fundo» (A Arte em Portugal..., 2ª ed., pág. 367).
Invisíveis depois, a fortuna crítica foi escassa. Manuel de Azevedo apresenta o Batalha na Seara Nova de 21-06-1947: «um cinema de feição moderna, rasgado para o exterior por largos espaços envidraçados onde funcionam varandins, terraços e escadas sem paredes. E assim temos que o elemento humano, a própria multidão, é o primeiro elemento decorativo chamado a colaborar com a arquitetura. O contacto entre o espectador e o mundo exterior mantêm-se e a multidão faz parte da própria ideia do conjunto. [...] O arquitecto procurou valorizar o seu trabalho chamando a colaborar com ele uma equipa de artistas novos, novos como ele, o que acabou por fazer do Cinema Batalha um caso sem paralelo em Portugal. O pintor Júlio Pomar foi encarregado de pintar a fresco duas superfícies enormes que quase concluiu e que, mesmo incompletas como se encontram, o afirmam um artista de largos recursos técnicos e invulgares dotes decorativos, sabendo retirar daquele género a força e o efeito impressionantes da sua habitual personalidade, mercê de processos hábeis e originais de usar as tintas a água que o fresco implica.» Ernesto de Sousa, que foi sempre divulgando as suas fotos, considerou que «a história destes frescos pontua o fim da fase de formação e o alcance da maturidade» do pintor, a iniciar-se com o Almoço do Trolha e Farrapeira. Referindo a «firmeza de um primeiro impulso para a linha sinuosa dos motivos» presente em obras anteriores às «inéditas coordenadas de um novo realismo», diz que «o arabesco retomava em parte os seus direitos, em parte cedia-os à nova paixão, nos luminosos frescos do cinema Batalha.» (Pomar, ed. Artis, 1960, pág. 9).
Podemos hoje percorrer detidamente os murais, seguindo as figuras que se destacam ou organizam em grupos a circular pelo largo espaço dinâmico da festa, entre as ondas das formas decorativas que organizam os fundos. No fresco maior, em cima à esquerda há quatro pares enlaçados que dançam, e em baixo está um casal sentado com tambor, grandes mãos que o tocam, rostos tristes. E logo cinco figuras em movimento que se dirigem para o centro da composição, eles com bonés de operário, como quem vai à luta. Pelo meio fica um miúdo agachado que come da gamela – alguém apontou aí uma referência à fome, o que teria desagradado. Há um largo intervalo central flamejante, onde arde uma fogueira e sobem balões. Mais figuras à direita, três mulheres sós, outro par dançante, talvez artistas de circo com fatos aos losangos, um homem agachado que é arlequim ou mendigo, e logo em baixo os dois homens do tambor e da concertina, que são figuras poderosas, e mais outro balão a subir da fogueira.
As figuras são corpos e não vultos, e são rostos expressivos e individualizados, e não máscaras, muitos deles rostos firmes, decididos, e há muitos pés descalços, o que era impróprio. É mesmo povo quem invade a grande parede, e entende-se a recepção repressiva.
Em cima, no bar, está o alongado painel dos músicos, num palco, por entre as curvas de panejamentos com ramagens. São vistos com as suas sombras, os dois da esquerda com chapéus que parecem herdados do regionalismo norte-americano (um camponês de Thomas H. Benton) e o outro que olha o céu cujo perfil vem obviamente da Guernica, da mãe com o filho morto. À direita, bem separado da festa, um grupo de mãe e filhos, ela com um olhar frontal que inquieta, um miúdo descalço. São os pobres. Pomar entendia a grandeza do desafio, citando Picasso, afirma as suas ambições e as suas referências. O famigerado governador civil não se deixou enganar, e cumpriu o seu papel.
Note-se que é durante a realização dos frescos que escreve o artigo «O pintor e o presente», reflexão íntima e prudente sobre a pintura mural, onde parece justificar a condição decorativa que não podia cumprir o «programa máximo» do neo-realismo:
As grandes pinturas que sonhamos são de amanhã, só um amanhã bem diferente dos dias de hoje as tornará possíveis na escala desejada — um amanhã para a realização do qual devem incidir todas as nossas tarefas actuais. E o problema que hoje se põe ao artista deve cifrar-se, sim, em achar, no presente, quais as suas tarefas específicas — como, a seu modo, poderá desde já participar na marcha dos homens do seu tempo. (...) A questão da pintura mural está, entre nós, mais francamente na ordem do dia das discussões do que na ordem do dia das realizações. Algumas paredes se têm pintado, outras se virão a pintar. Cremos que, quer as já pintadas, quer as que se venham por agora a pintar, nada adiantam quanto ao problema da utilização popular da pintura: pintura de intuitos apenas decorativos, ou pouco mais, filha, em regra, de uma série de compromissos de difícil libertação — eis o que, por agora, se nos oferece, tudo bem longe daquela arte francamente popular, esclarecedora e construtiva, para a qual a razão nos norteia. – Seara Nova, 11 janeiro 1947, reed. in Notas sobre uma Arte Útil, pp. 109-113.
O Almoço do Trolha é contemporâneo e foi pintado no Porto, «O quadro aconteceu porque, na realidade, era uma cena com que eu me deparava todos os dias, nos intervalos da pintura do mural do Batalha. De lá de cima, enquanto parava para fumar, espreitava cá para fora e via, todos os dias, as mulheres dos trolhas a levarem-lhes as marmitas e a partilharem com os maridos a refeição. Foi um quadro que me impressionou e passei-o para a tela.» – “Nem olhei para trás para pintar o mural do Batalha”, entrevista, 21-02-2008, Jornal de Notícias. Estava também por concluir quando foi apresentado na II Geral de Artes Plásticas e só foi terminado para a primeira individual de pintura, em 1950 na SNBA, já visto como uma obra de excepção (note-se o preço de catálogo: 10 mil escudos) e não foi ao Porto para a mostra seguinte na Galeria Portugália.
Era persistente a dúvida sobre a sobrevivência dos murais, várias vezes questionada depois de 1974. Em 2005/06 foi feita uma tentativa de desocultação dos frescos, mal conduzida e sem êxito, por iniciativa da Associação Comercial do Porto, num programa chamado Comércio Vivo financiado por compensações pagas pelo Grupo Amorim pela construção do centro comercial Via Catarina. A intervenção foi bárbara. Atravessando as camadas de tinta (o fresco e as posteriores aplicações de pintura que o ocultavam) encontraram-se apenas vestígios dos desenhos prévios (sinópias). Admitiu-se que os murais teriam sido eliminados, ou pretendeu-se que não eram mesmo frescos e desapareceram. Feita a «pesquisa» sem quaisquer condições de rigor, rasgaram-se grandes janelas em lugares centrais, antes da operação ser denunciada na imprensa e suspensa. O IPPAR veio fiscalizar a intervenção e produziu um incompetente relatório onde confirmava a impossibilidade do restauro por inexistência da superfície pintada. Errou também. O Batalha fechara em 2000. Reabriu entre 2006 e 2010. Voltou a arruinar-se.
Em 2016-17, por ocasião de um novo projecto de reabilitação do edifício, a realizar pela Câmara do Porto e a cargo dos arquitectos Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez (Atelier 15), considerou-se, com a participação do artista, o uso de meios fotográficos e de peças documentais para devolver à cidade a memória dos frescos. Mas, a seguir, uma empresa de restauro então convocada, Signinum, de Braga, fez novas pesquisas e alertou: «Após as diligências e dos trabalhos concretizados, é possível afirmar a existência do mural com elevado grau de correspondência com as fotografias a preto e branco do que seria o original, atribuído a Júlio Pomar». A informação não foi então divulgada, mas a recuperação foi incluída no orçamento das obras do Batalha. Do restauro se encarregou mais tarde a empresa Nova Conservação, de Lisboa, que descascou por processos químicos as camadas de tinta sobrepostas aos murais e propôs soluções técnicas para o preenchimento das lacunas existentes, algumas de larga dimensão e estas mediante a colocação amovível de superfícies de fibra de carbono revestida a resina com capacidade para receber pintura a aguarela. Tratar-se-á de «uma restituição gráfica fidedigna, dado que o desenho é impresso a laser sobre a resina a partir das imagens de Ernesto de Sousa, sendo o acabamento / policromia realizado a aguarela» (relatório técnico). A operação pôde acompanhar-se (e aprovar-se) em outubro e novembro, realizada com entusiasmo e competência, ao que julgo, e o agora designado Batalha Centro de Cinema inaugura-se em 9 de dezembro com os murais já visíveis.
.
Agradeço informações e documentos comunicados por Isabel Alves, Paula Parente Pinto, Sónia Moura, e Maria João Revez e João Aguiar (Nova Conservação).
(1). Ver Maria Catarina V. Figueiredo, Patrimonializar as pinturas murais da cidade de Lisboa na época do Estado Novo, tese de doutoramento, Lisboa 2017 ( http://www.museologia-portugal.net/files/upload/doutoramentos/catarina_figueiredo.pdf ).
(2) Sónia Moura, Portugália, Um galeria moderna no Porto dos anos 40, tese de mestrado, Porto 2013 ( https://sigarra.up.pt/faup/pt/pub_geral.show_file?pi_doc_id=36782).
(3) http://ric.slhi.pt/Seara_Nova/visualizador/?id=09913.099.004&pag=7.
Posted at 18:38 in 2022, Júlio Pomar, Porto | Permalink | Comments (0)