COM A LITERATURA
Desde os retratos dos poetas nos anos 50 para a colecção “Cancioneiro Geral” do Centro Bibliográfico (Mário Dionísio, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, etc, na edição especial de 40 exemplares), ou mesmo desde a primeira capa em 1946 para “Maria I - Escada de Serviço”, de Afonso Ribeiro, até às interpretações e ilustrações de “A Caça ao Snark” de Lewis Carroll, 1999, ou ao retrato de Vasco Graça Moura em 2014, a obra de JP avançou sempre associada à literatura, em desenhos, pinturas e também esculturas, com intervalos abertos para outros interesses e ciclos de trabalhos. Uma exposição e um livro de 1991 ("Pomar et la Littérature" / "Les Mots de la Peinture", Charleroi, Bélgica; ed. Différence) fizeram uma primeira aproximação ao tema da literatura, por iniciativa de um editor parisiense, Joaquim Vital, que esteve na origem de muitos convites para ilustrações. Em 2002, o Atelier-Museu actualizou o assunto também em exposição e livro,"Os Livros de Júlio Pomar" / The Books of Júlio Pomar", com organização de Mariana Pinto dos Santos.
Júlio Pomar pintor literário, sem que a sua pintura seja ilustrativa ou livresca. Também escritor*: crítico, ensaísta e poeta.
Se a relação com a literatura era visceral (ficaram livros assinados Júlio 1942), a ilustração - e a decoração*, de maior ou menor ambição - foi em certas épocas uma importante retaguarda financeira, quando a pintura se vendia pouco num mercado estreito (Pomar viveu sempre do trabalho de pintor, só com dois anos de bolsas da Gulbenkian já depois de se instalar em Paris em 1963; a cerâmica* e depois a gravura* cumpriram o mesmo papel de acessível suporte económico), e as leituras eram igualmente oportunidade de se encontrar com novos temas, necessários a um pintor sempre figurativo e sempre em mudança.
Já vimos (...) que os poetas - Camões, Bocage, Pessoa e Almada - desenhados no Metro de Lisboa e os autores das versões de “O Corvo” de Edgar Allen Poe, Baudelaire, Mallarmé e Pessoa, estiveram no início do estilo tardio da sua obra. E veremos que, de facto, toda a sua produção, no neo-realismo à Pintura de História* se partilhou entre a observação de cenas vistas, o real (os espectáculos do trabalho: debulhas, pisas, pesca, lotas; das Tauromaquias e Corridas de cavalos, do Catch, dos retratos e corpos) e a imaginação literária, por livros lidos e invenções sobre os mitos*. Até a longa série dos Tigres tem origem em ilustrações para um conto de Borges, em que aparece um tigre invisível, seguindo depois o pintor o seu caminho em total liberdade de figurar.
Com uma excepção confessada, a relação com a literatura resulta de propostas e encomendas, que em vários momentos resolviam a procura de assuntos a que um pintor se poderia dedicar, quando ele não se fixa na natureza morta* ou na paisagem*, ambos géneros raros, ou não se entrega à “abstracção”.
“D. Quixote” foi o livro mais trabalhado, em duas épocas bem distanciadas, os anos 1959/63 e 2005/12. No primeiro caso, as ilustrações para uma tradução de Aquilino Ribeiro (30 pequenas pinturas a preto e branco sobre cartão) prolongaram-se em quadros, gravuras e esculturas em ferros soldados, num tempo especialmente criativo (foi uma primeira maturidade). No segundo caso, uma ambiciosa edição em fascículos de iniciativa do semanário Expresso incluiu centenas de desenhos de variadíssimos formatos e processos, quando o contrato exigia só 10 por fascículo, e deu origem a uma nova série de pinturas que foram fotografadas ‘in progress’ e depois mais ou menos retrabalhadas, expostas em 2009 e em 2012 (“Navio Negreiro” e “Cartilha do Marialva”, estão já mais ou menos distanciadas do pretexto cervantino). Note-se que Quixote e mais ainda Sancho Pança foram uma espécie de alter-egos do pintor que neles por vezes se retratou.
Para além da série O Corvo, Fernando Pessoa aparece envolvido na série da “Mensagem”, e antes em retratos que começaram em 1973, em contacto com a Pop, e que depois foram até aos anos 2010, então na companhia de Marceneiro: dois emblemas nacionais no contexto do interesse pelo fado* e os fadistas. A música estava até aí ausente na obra, mesmo se era muito ouvida no atelier.
Lewis Carroll está presente, com o seu humor e gosto pelo absurdo lógico, num conjunto de grandes telas que excederam o propósito de ilustrar o poema "The Hunting of the Snark"/ “La Chasse au Snark” para a Différence, em 1999, o que motivou uma série paralela de desenhos e litografias para a edição prevista.
E também a Carta do Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha foi assunto de uma encomenda, surgindo uma Mãe Índia, que já se instruía com a estada na Amazónia. De um quadro de 1999, para o centenário da “descoberta”, surgiu depois uma série de outras Mães e filhos (“Mères Indiennes / Meridiennes”), em álbum e exposição. Juntavam-se, muito depois da viagem ao Xingu, a pintura de observação e a literatura, e também o mito.
Regressando ao princípio das oito décadas têm de referir-se as ilustrações desenhadas para “O Romance de Camilo” de Aquilino Ribeiro, 1957, e para “Guerra e Paz” de Tolstoi, 1956-58; “O Purgatório” de Dante, 1961 (e 2006), e o Grande Fabulário de Portugal e Brasil” 1961 (ambos em gravuras); “Terra Negra” de Castro Soromenho, 1960, e “O Cristo Cigano” de Sophia de Mello Breyner Andresen, 1961, já desenhados com o pincel japonês, tal como “Pantagruel” de Rabelais, 1967, que foi, segundo lembrou o autor, o único projecto ilustrado pela sua própria iniciativa. Seguiram-se grandes projectos associados a Ferreira de Castro, “Emigrantes” e “A Selva”, 1966 e 1974, e logo “Uma Abelha na Chuva” de Carlos de Oliveira, 1976, praticados como pinturas de pequenos formatos.
Em Paris, com Joaquim Vital, destacam-se os pequenos livros de Malcolm Lowry, 1976, e Jorge Luis Borges, 1978, com papeis recortados seguindo o exemplo de Matisse, e os desenhos eróticos (hardcore) para Gilbert Lely, o biógrafo de Sade, 1977, mais alguns grandes projectos até 2003, incluindo capas para Eça de Queiroz, 1985-1991.
Duas edições para um público juvenil, que foram únicas no género, ficaram a marcar o princípio e o fim da relação com a literatura: “Bichos, Bichinhos e Bicharocos” com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1949, e “O Cão que Comia Chuva”, de Richard Zimler, 2016.
No volume “Les Mots de la Peinture”, Différence 1991, dividiu-se a sequência das obras reproduzidas em Retratos de escritores, Quadros de leitura e Quadros sem história. Se de facto, o pintor já ia abordando e subvertendo os mitos e a Pintura de História, por vias da ilustração, aconteceu que na série Elipses de 1984, rapidamente pintada nos intervalos d’ “O Corvo” de Poe, foram surgindo Salomé, Leda, o Rapto de Europa, o Julgamento de Páris, Diana e Acteon. Foram ocupando um lugar crescente no seu trabalho.
("in progress", A.P. 28.11.23) + Citações e Bibliografia. * indicam tópicos previstos
1991, Différence; 2006, Tavira ; 2022 e 2023, Atelier-Museu