Foi interessante a referência do Manuel Castro Caldas à 1ª estada de Júlio Pomar em Nova Iorque, que ocorreu em 1981 e em que o acompanhou na visita aos museus. Numa sessção realizada no dia 4 no Atelier-Museu, falou do contacto admirativo com os grandes formatos dos expressionistas abstractos aí vistos, sublinhando a propósito (ou a despropósito?) a importância da ruptura que a Pop trouxera à pintura ocidental, ausente em Pomar. É uma interpretação algo estranha.
De facto, os anos 60 em Paris (JP chegou em 1963) contaram com uma circulação considerável de exposições norte-americanas e nomeadamente de Rauschenberg na Galeria Ileana Sonnabend, duas em 1964, vencendo a Bienal de Veneza no mesmo ano. Pomar refere-se a Rauschenberg por duas vezes em entrevistas de 1966 (por ocasião da sua exp. na SNBA) e aponta-o, a par de Velazquez, como um seu artista de referência. "Em pintura, a descoberta da América foi decisiva" disse então a Mário Dionísio. Sobre Rauschenberg afirmava que "É a integração da imagem num novo conceito plástico. Quando a arte abstracta se preocupa com não distinguir o céu da terra, ele, partindo dos elementos mais corriqueiros, imagens gastas, batidas, consegue conferir um valor plástico àquilo que os nossos olhos anteriormente não viam. Uma roda, um movimento, funcionam da mesma maneira que um azul-cobalto. Uma refusão total do mecanismo da visão."
Para vários críticos essa é a ruptura (proto-pop) mais decisiva - depois da invenção da colagem que se associa ao cubismo e ao ready-made, nas primeiras décadas do século XX. Em cartas ainda inéditas Pomar refere-se ao apreço pelos pintores Pop britânicos e norte-americanos, e à distância face à "nova figuração" narrativa francesa. A mutação que conhece a sua pintura a partir de 1966-67, com as séries dedicadas ao Rugby e Maio 68 e com o posterior ciclo dedicado a Ingres e aos retratos, de óbvia relação com a Pop, mas então ignorada, é contemporânea de uma grande destruição de pinturas anteriores existentes no atelier (reproduzidas em Void* vol. III) e da realização das primeiras assemblages.
A "descoberta da América" ocorreu na 1ª metade dos anos 60 e não em 1981.
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Comuniquei por mail ao Manuel CC o meu comentário à sua intervenção, colocado no Facebook e no blog, e ele respondeu logo depois. (O meu 1º texto era público e ele não me pediu reserva, pelo que me parece oportuno divulgar a sua resposta. Há poucas oportunidades de conversar sobre estes temas)
«Sim, mantenho tudo o que disse (não foi inventado em cima do joelho ontem...). Ter "descoberto" alguma coisa no Rauschenberg, gostar dele, ou dizer que gostava de Pop e de Matisse e que os artistas Pop admiravam Matisse, nada disso tem a ver com o facto da pintura do Júlio não ter um feeling Pop (idem para os objectos). Ele manobrou bem para não ser um pintor de Paris, mas não é por isso que se tornou subitamente numa pessoa que se encontrou (como os Pops, americanos, sobretudo) encurralado nas suas estratégias e encurralado nos seus procedimentos por causa de uma geração anterior heróica e nacionalmente (politicamente) erigida em mito, como eram os Expressionistas Abstractos.
O Rauschenberg sabia o que fazia quando apagou um desenho do De kooning: abria caminho para poder respirar. É uma situação histórica, sociológica, económica a milhas do que se passava na Europa e em Paris. E não era por "ver" em Paris trabalhos vindos dos EUA que ele podia encarnar nessa situação que não era e nunca seria a dele nem a dos franceses (nem dos portugueses). Semelhanças formais, iconográficas e outras, tal como afirmações ditas ou escritas, não nos dizem nada se as separarmos de uma análise dos procedimentos compositivos - no sentido mais lato - que o trabalho plástico deixa ver. Trata-se de responder à questão "O que é uma pintura?" num determinado momento. E o Pop respondeu de uma certa maneira, mais claramente nuns casos do que noutros, e o que mostravam é que achavam que uma pintura podia e devia prescindir de muitos dos procedimentos e pressupostos da geração anterior. As pinturas e trípticos (inteiramente) brancos e negros do Rauschenberg - que acompanharam de perto o gesto de apagar o desenho do De kooning - são gestos de libertação, nos quais o pintor prova a si mesmo que não responde da mesma maneira que os seus antecessores à pergunta "O que é uma pintura?". Só depois desse gesto pôde seguir para os Combine Paintings, etc.
Os franceses, todos estes anos passados, ainda não perceberam o quanto de "francês" ainda subsiste na sua maneira de fazer as coisas. Se italianos como o Clemente se safaram de ficar subjugados pelo peso histórico da sua herança cultural, foi porque outras tradições (a Índia e depois NY) vieram ajudá-los a fazer uma verdadeira secessão - um corte, também existencial. Não se trata de falar de misturas formais ou outras, trata-se de modos de encarar a missão de pintor num momento histórico determinado. O resto são as "aparências", isso que jaz na superfície das telas e dos objectos e que está lá para esconder coisas, não para mostrar. Há sempre muitas camadas nas obras de arte, mas elas têm uma ordem (ou uma hierarquia) e chegam ao nosso olhar segundo essa ordem, que se torna mais ou menos sistemática no interior de um dado estilo. Essa ordem diz-nos o que é prioritário e orienta o sentido. Enfim, é como eu vejo....»
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É óbvio que discordo absolutamente. O desenho apagado (pedido ao De Kooning) é um gesto neo-dadaísta e não abre qualquer caminho. É uma atitude relacional que marca relações entre artistas e entre gerações de artistas de um mesmo meio local e intelectual. Tal como as pinturas brancas ou negras refazem os russos apagando os norte-americanos da época. O que importa são as pinturas seguintes e as combine paintings, que integram iconografias mediáticas.
De facto não entendo o q diz o MCC; não se pinta para "responder à questão "O que é uma pintura?" num determinado momento". É tudo um pouco mais complexo e menos programático. Julgo que é tudo mais experimental, mais vivencial.
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