O Mário a falar da sua colecção na Pequena Galeria em 2014.
DOAÇÂO PROMETIDA, DOCUMENTAÇÃO PRONTA A ASSINAR, MORTE, RECUSA/RECUO DA HERDEIRA - UM CASO A ACOMPANHAR
1. A família de Mário Teixeira da Silva decidiu não cumprir a sua intenção de doar a respectiva colecção ao Museu do Chiado (MNAC), contrariando o que o próprio repetidamente anunciara, também em públicio, e o que estava praticamente formalizado em documentos que ficaram à sua morte por assinar - como, aliás, divulguei por ocasião do funeral.A família, ou melhor a sua herdeira, a irmã, confirmara de início, junto do Museu, a vontade de cumprir o desígnio do galerista da Módulo e mais tarde mudou de comportamento, segundo informou a directora do Museu no lançamento do catálogo da colecção que em 2022 o Chiado apresentou. Estão em jogo valores avultados, para além da importância estética das obras coleccionadas, mas os bens imobiliários deixados pelo Mário deveriam ser suficientes para tranquilizar a herdeira.
O assunto é triste, ou grave, e deverá ter continuação e debate público.
Beatriz Milhazes (exposta pela gal. Pedro Cera)
2.
Não sei se a recusa de cumprir a vontade do Mário Teixeira da Silva por parte da sua herdeira é irreversível ou negociável. A srª, presente no Museu do Chiado durante o lançamento do catálogo da colecção aí exposta há um ano, não se pronunciou quando tal foi revelado ou quando argumentei publicamente que a questão da herança deve ser abordada com atenção e firmeza pelo Estado.
Existe uma herança de que fazem parte obras de arte valiosas que têm de ser comunicadas para efeito de Imposto de Selo (para além dos bens imobiliários). A colecção era património pessoal e não da Módulo.
Pinturas de Beatriz Milhazes e de Paula Rego podem corresponder a valores da ordem do milhão de euros e de talvez 500/800 mil euros, e não podem ser negociadas por baixo da porta. O que significa, sendo a irmã a herdeira, a existência de impostos relevantes e a hipótese de os mesmos serem pagos através de uma Dação - segundo o advogado que acompanhou a intenção e os documentos relativos à doação das obras ao Chiado, por morte do coleccionador-galerista (e que não quis pronunciar-se agora sobre a situação presente). A hipótese de Dação como pagamento de impostos tem de ser colocada pelo herdeiro e não pode ser imposta pelo Estado.
Sucede que o Museu do Chiado/MNAC não tem autonomia para intervir nesta situação, devendo o caso ser acompanhado ao nível do Ministério da Cultura. Mas o MC estará atento e interessado em intervir, ou deixa correr, perdendo assim a recepção (total ou parcial?) de uma importante colecção prometida ao Estado?
Estará o MC atento à declaração de Imposto de Selo (já não há imposto sucessório) e aos pagamentos devidos pelas obras de arte e pelos bens imobiliários, que são também significativos?
Se o incumprimento de uma anunciada intenção do Mário, que fora expressa em público e preparada juridicamente até à assinatura dos documentos exigidos, não pode (ou puder?) ser legalmente contrariada, o acompanhamento rigoroso da situação fiscal da herança pode propiciar a recuperação negociada e pelo menos parcial por via de uma Dação. O MC deve intervir em colaboração com o Ministério das Finanças - e a sorte de outras colecções como as do BPP, BPN, Rendeiro e Oliveira Cruz pode, apesar das diferenças, servir de exemplo.
#colecçãomódulo
O caso é lamentável em termos morais e pode ser questionado.

JOÃO MIGUEL GERVÁSIO e ANA MATA, dois dos seus melhores pintores (onde anda o Gervásio, que o Mário deixou de expor sem razão?)

3
A história da arte em Portugal deveria abrir um espaço também académico para, ao lado dos habituais silêncios e hagiografias (e erros factuais), inquirir carreiras, realidades, êxitos e sombras. O que foram ou são as galerias reconhecidas com notoriedade e influência devia ser um terreno de investigação e memória; as situações profissionais paralelas dos artistas e galeristas, bem como as relações de privilégio institucional, são uma zona oculta. Ao lado dos caso da Módulo de Mário Teixeira da Silva, como "descobridor de talentos", haveria que recordar a 111 de Manuel de Brito, nomeadamente como retaguarda local de artistas internacionais; a Cristina Guerra como candidata a líder do mercado ligada a Julião Sarmento, João Rendeiro e os Amigos do Chiado; a Cómicos / Luís Serpa vinda do Depois do Modernismo e da cumplicidade dos artistas da SEC/DGArtes; a Nazoni e a Atlântica, galerias dos anos 90 depois perdidas em vertigens bolsistas (o overnight...) e no final na circulação de falsos; e noutro pólo do mercado do luxo, a Cordeiros com o seu andar de marfins e pratas, com as tardes do Porto social ao sábado, até à falência do negócio. Gonçalo Pena começou em 1994 uma boa história no catálogo de uma antologia dos anos 60, mas ficou sem continuidade.
No caso do Mário, que foi professor do ensino secundário até à reforma, a par de galerista, inquieta-me que a colecção apareça de facto sobreposta à actividade corrente da Módulo, desviando o que teria de ser o investimento na divulgação dos artistas: que catálogos e livros produziu ou apoiou o Mário? A proverbial austeridade ou avareza (cumprindo o estereótipo da condição de judeu, em vez de o contrariar) tinha um lado por muito tempo oculto: a colecção, e esperava-se mais de um galerista.
E se a descoberta de novos artistas e artistas novos foi uma constante até final, isso significava uma permanente rotação de nomes, abandonando os seus artistas por razões inconsequentes (mas era um galerista exigente e culto) ou fazendo-os abandonar por questões de preços, ou só de pequenos trocos que desviava - os preços baixos eram uma marca da casa, para o bem e para o mal, assegurando assim as compras regulares de um grupo de fieis. O papel de divulgador, nomeadamente na área da fotografia, prejudicava a continuidade, a consolidação dos seus artistas e, por isso, a verdade do mercado.
Por outro lado, ou não, apesar dos muitos elogios que se lhe fazem, a Módulo não era um local acompanhado pelas compras institucionais, ou era mesmo hostilizado, e são numerosos os casos em que as aquisições dos museus e fundações só começavam depois dos artistas deixarem a Módulo. Esse era um dos temas das nossas conversas, e o Mário era o galerista com que eu mais conversava.
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