NA ABERTURA DA SEDE DA CULTURGEST/CGD
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EXPRESSO - 9 out 93
"constituição de um acervo prioritariamente orientado para a actualidade, acompanhando os desenvolvimentos mais interessantes da criação artística dos nossos dias», Rui Vilar
Fernando Calhau (vindo da SEC e da antiga DGAC) à frente da colecção *
agrupando «autores que, embora pratiquem formulações estéticas diferentes, se aproximam conceptualmente»
a mesma área da «actualidade», entendida como a produção dos artistas afirmados desde meados de 70, e alargada a um ou outro artista tido por «precursor”, em que estão a actuar as várias instituições com intervenção neste terreno (Gulbenkian, Serralves e FLAD)
*(sobre Fernando Calhau, 1948-2002: foi artista (da geração de Júlião Sarmento e dele mt próximo; em sintonia com os programas da arte conceptual e minimalista, segundo a Wikipedia) e foi desde cedo funcionário da antiga SEC - actividade que a biografia no site da colecção Gulbenkian omite. Na administração cultural, ocupou cargos na Direcção-Geral de Acção Cultural, na comissão organizadora do Museu de Arte Moderna do Porto, na orientação da Colecção de arte contemporânea da Caixa Geral de Depósitos e no Instituto de Arte Contemporânea, que dirigiu entre 1997 e 2000. (** ver abaixo)
A PRIMEIRA exposição da colecção da Caixa Geral de Depósitos aconteceu em 1989 por iniciativa do Governo, num momento em que este promovia uma política muito voluntarista de estímulo do mecenato. O próprio Ministério das Finanças, a pretexto do seu bicentenário, reunira uma colecção própria (com contribuições alheias...) e mostrara-a sob as arcadas do Terreiro do Paço, antes de apresentar o acervo da Caixa. Na FIL, por esse tempo, a SEC montava uma Feira das Indústrias Culturais que não teria continuidade.
Serralves, que dava os primeiros passos, já tinha realizado exposições dedicadas às colecções da União de Bancos Portugueses (em 87) e do Banco Português do Atlântico (88). Nesse mesmo ano de 89, o Banco Hispano Americano fazia coincidir a sua ofensiva no mercado nacional com uma vasta exposição na Gulbenkian.
Outras operações do mesmo tipo se seguiram com a visita, também à Gulbenkian, da colecção da Telefónica de Espanha (um conjunto excepcional de obras de Chillida, Gris, Tàpies e Luis Fernández), e com a apresentação em Serralves da arte espanhola dos anos 50-80 pertencente à Caixa de Barcelona («La Caixa»), ambas em 91.
As colecções de empresa afirmavam-se então como uma realidade internacional de alguma importância, que se justificava por razões de representação social e publicidade de imagem, por opções de investimento e, em especial, por recentes concepções de responsabilização cultural que pareciam substituir parcialmente o tradicional coleccionismo mecenático praticado pelos ricos amadores de arte. Tal circulação de exposições abrandou nos anos seguintes (como muitas outras coisas no domínio da Cultura), mas já no início do programa de Lisboa'94 se irá ver no CCB a colecção de arte francesa contemporânea da Caisse des Dépots et Consignations, de Paris.
O QUE a CGD mostrou em 1989 era uma escolha de 60 pinturas e esculturas de outros tantos artistas contemporâneos (ou, pelo menos, ainda vivos), seleccionados do total de 204 (!) autores representados na sua colecção. A montagem inábil agravava a dificuldade de entender uma exposição que parecia guiar-se, tal como a colecção, pelo princípio de não fazer escolhas: seguia-se o princípio de mostrar apenas uma obra de cada artista, maior ou menor, ao longo de uma sucessão de gerações que vinha dos anos 30 até às revelações da década de 80.
Alguma crítica lamentou o que através dessa mostra se podia reconhecer como uma ausência de critérios de colecção, dispersando-se as compras com a ambição de incluir um pouco de tudo e de todos, de modo a satisfazer os vários níveis que estruturam o mercado da arte e sustentam a diversidade dos gostos. Era também possível considerar, então, que uma instituição financeira com a dimensão da Caixa tinha obrigação de se aventurar no mercado internacional, trazendo para o país obras e autores ignorados ou fora do alcance dos museus nacionais.
A colecção tinha-se iniciado em ritmo lento sete anos antes e cresceu com o «boom» da segunda metade da década, mas esforçara-se por evitar a exposição pública e a curiosidade jornalística. As aproximações tentadas pela Imprensa esbarravam com a vontade de evitar controvérsias críticas, bem como com o receio de chocar os «clientes» sujeitos às duras mensalidades dos empréstimos com a aplicação das suas economias em obras de ostentação mais ou menos artística.
Com a inauguração da nova sede, pesadelo faraónico cuja absurda arquitectura se espera que seja para sempre inultrapassável, esse segundo tipo de preocupação deixou de ter pertinência. Pelo contrário, tornou-se até necessário contrariar, graças ao lançamento de um programa de actividades que possam ser consideradas socialmente úteis, a péssima imagem pública que a CGD adquiriu com o gigantismo exibicionista do edifício. É com a criação de um centro cultural na sede da CGD - que será gerido pela Culturgest como um conjunto de equipamentos também parcialmente rentabilizáveis na área dos congressos e serviços afins - que a colecção de arte, remodelada nos seus critérios, volta a surgir a público.
Entretanto, com a abertura do edifício vai tornar-se bem visível que o universo da CGD é atravessado por sensibilidades ou opções culturais contraditórias. Para além da própria arquitectura, a decoração interior, na qual se fizeram avultados investimentos em obras de arte (encomendadas a Lagoa Henriques, Sá Nogueira, Júlio Pomar, Júlio Resende, Sebastião Rodrigues, Eduardo Nery, Graça Morais, Fernando Conduto, Charrua, etc., com resultados de muito desequilibrada eficácia), é o resultado de critérios estéticos manifestamente divergentes dos que se revelarão na exposição a inaugurar na segunda-feira.
DE FACTO, é a uma profunda reformulação da colecção de arte da CGD que se irá assistir. A parir de 1991 e já por iniciativa de Rui Vilar, procedeu-se à inventariação e reavaliação do património antes reunido, tarefa de que se encarregaram Fernando Calhau e Margarida Veiga, funcionários da SEC com intervenção no sector das artes plásticas. No ano seguinte, as aquisições foram reactivadas sob a responsabilidade de F. Calhau e com base nas recomendações resultantes desse estudo. A orientação actual definiu-se “no sentido da constituição de um acervo prioritariamente orientado para a actualidade, acompanhando os desenvolvimentos mais interessantes da criação artística dos nossos dias», conforme escreve Rui Vilar no catálogo.
São agora 14, apenas, os artistas expostos, mas com várias obras cada um: Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, Pedro Sousa Vieira, Rui Sanches, Álvaro Lapa, Graça Pereira Coutinho, Gaetan, Gerardo Burmester, João Jacinto, Michael Biberstein, José Pedro Croft, Pedro Casqueiro, Alberto Carneiro e Vítor Pomar (a ordem segue a do percurso expositivo). Segundo F. Calhau, o conjunto constitui-se como «uma opção pessoal assumida mas não estática», agrupando «autores que, embora pratiquem formulações estéticas diferentes, se aproximam conceptualmente». Outros núcleos e diferentes abordagens da colecção surgirão em exposições futuras.
A responsabilização individual de um único comissário e a clarificação das opções postas em prática são dados abertamente positivos da nova orientação. Mas, enquanto se aguarda o contacto directo com a exposição, há algumas interrogações a colocar:
Não é precisamente na mesma área da «actualidade», entendida restritivamente como a produção dos artistas afirmados desde meados de 70, e alargada a um ou outro artista tido por «precursor”, que estão já a actuar as várias instituições com intervenção neste terreno (Gulbenkian, Serralves e FLAD)? Não é esse mesmo o campo mais acessível ao coleccionismo de pequena escala, em termos de disponibilidade de obras e de prelos de mercado?
Não está em curso uma uniformização das colecções em torno de um pequeno núcleo de artistas «dos nossos dias», os quais serão certamente as primeiras vítimas do excesso de visibilidade institucional? Não caberá às grandes instituições uma prática aquisitiva menos dependente das conjunturas, ou mais distanciada da lógica das consagrações, revelações e promessas? Não terá uma instituição como a CGD, com a imensidade dos seus recursos, a responsabilidade de intervir num plano menos circunstancial da circulação artística, definido já não pelas regras de uma actualidade apenas sazonal mas pela avaliação da excepcionalidade e importância histórica das obras concretas? Não lhe caberia actuar decididamente como comprador no terreno de um coleccionismo menos imediatista, em vez de o deixar, mais uma vez, à responsabilidade dos grandes colecionadores privados e inviabilizar assim o destino público dessas mesmas obras? Num nível de ambição e de responsabilidade cultural ainda mais elevada, não seria possível que a Caixa definisse também uma vocação forte no campo da arte internacional?
Não são excessivamente modestas as ambições do gigante?
publicado no dossier
MERCADOS: Empresas na infância da arte, Alexandre Coutinho / Vitor Andrade
“Bem publicitar”, Vitor Andrade
“A maioria das empresas e instituições continua a investir pouco na aquisição de obras de arte. Caso especial, se bem que discutível, é o da CGD"
Pp. 41-44
** F. CALHAU: uma longevidade gestionária com mais de 20 anos, que atravessou sucessivos governos a partir da Divisão de Artes Plásticas da Direcção-Geral de Acção Cultural da antiga SEC, criada em 1976.
Um itinerário que passou pela «Alternativa Zero», em 1977; pelas Bienais Internacionais de Desenho de 79 e 81; «Depois do Modernismo», em 83, e os primeiros anos da galeria Cómicos, continuando com intervenção em opções de subsidiação, aquisição e selecção coordenadas ao longo dos anos.
Toda uma história de animação e gestão pública centralizada, que se identificou com orientações estéticas determinadas e também com cumplicidades pessoais e geracionais, graças à coesão inicial de uma equipa que contou com Julião Sarmento, Margarida Veiga, Cerveira Pinto e outros. (Também com João Vieira, Nikias Skapinakis, Rogério de Freitas, Victor Belém (?) e outros.) Ainda em funções na SEC, Calhau, Margarida Veiga e Delfim Sardo criam a empresa Modus Operandi que prestaria serviços de produção (espécie de braço executivo de várias entidades) - os dois primeiros deixam a empresa por outras actividades e D. Sardo continua-a por algum tempo.
As intervenções de F. Calhau nas comissões de compras de obras para a SEC, para Serralves, depois também para a CGD, bem como a concertação de acções com outras entidades públicas, mantiveram uma condução crescentemente unificada das políticas do sector, já ao longo dos anos 90.
Tal continuidade traduziu-se por um lado em êxitos de promoção de artistas no país e no estrangeiro, mercê da concentração de investimentos em calculadas estratégias de longo prazo. Mas por outro lado foi-lhes subordinados o crescimento e a abertura pluralista do campo da arte, bem como a consolidação de uma retaguarda histórica e esteticamente informada, prejudicando-se a transparência dos critérios de selecção em favor de segmentos oficializados da arte nacional, que se apoiaram em anos mais recentes em chocantes situações de promiscuidade entre artistas, críticos, funcionários e directores, exercendo papéis rotativos. A concentração dos meios teve êxitos, mas instalou um clima de suspeição face aos poderes oficiais, estreitando a capestreitando a capacidade de diálogo com outros agentes. Adaptação de "O estado da arte do Estado", Expresso Cartaz 24/2/2001.
Uma viagem ao acidentado mundo da Colecção SEC
a <agora designada Colecção do Estado, então> Colecção SEC, estava sob tutela da Direcção-Geral de Acção Cultural (DGAC), criada em 1976 e contendo a Divisão de Artes Plásticas, onde trabalharam os artistas Fernando Calhau e Julião Sarmento. No instável período pós-25 de Abril, foram eles os grandes impulsionadores da ideia de constituição de um património artístico público num país com escassos redutos de contemporaneidade e onde, com o mercado parado, urgia apoiar os artistas.
https://www.publico.pt/2015/07/25/culturaipsilon/noticia/conhecemos-mesmo-a-coleccao-sec-1702945
Uma viagem ao acidentado mundo da Colecção SEC
As primeiras aquisições da DGAC deram-se a partir das exposições da Galeria Nacional de Arte Moderna da Sociedade Nacional de Belas-Artes. Depois a ambição cresceu: começaram a adquirir-se obras em todas as mais importantes exposições feitas no país. Uma viagem ao acidentado mundo da Colecção SEC
Julião Sarmento deixaria rapidamente a função pública para se dedicar exclusivamente à sua carreira como artista. Fernando Calhau continuaria sempre – até à morte, em 2002. Ao longo dos anos, há quem se lembre de o ver de exposição em exposição a comprar para o Estado. Ele, Fernando Pernes e Fernando de Azevedo – “os três Fernandos” que compunham o comité de aquisições públicas, nenhum deles hoje vivo.
Pernes seria o grande impulsionador da criação do Museu de Serralves, com o qual o Estado estabeleceria o primeiro protocolo de depósito de obras em 1990. Calhau seria o mentor da criação do Instituto de Arte Contemporânea, fundado em 1997.
Uma viagem ao acidentado mundo da Colecção SEC
Em 1997 tinham-se passado cinco anos sobre a extinção da DGAC. Alguns dos que então lá trabalhavam lembram-se do caos da saída das instalações na Avenida da República, quando as diversas competências deste organismo foram dispersas por outros. Esses antigos funcionários lembram-se também do descontrolo da saída das obras de arte da garagem que até então as acolhia. Um deles contou ao PÚBLICO ter ligado pessoalmente a Pernes a pedir-lhe que levasse para Serralves todas as obras que pudesse. Mais do que as protocoladas. E mesmo que não interessassem especialmente ao museu portuense. O receio era que, por entre o caos, se perdessem por completo. Tal como veio a acontecer com muitas."
ENTREVISTA F. Calhau : Não há lugar para desperdícios: EXPRESSO 7- 12 -96
FERNANDO Calhau é pintor e preside à Comissão Instaladora do Instituto de Arte Contemporâne. Tem uma longa embora discreta carreira nesta área, já que trabalha há vinte anos na administração pública do sector das artes plásticas, designadamente na antiga Direcção-Geral de Acção Cultural, extinta com a «reforma» de Santana Lopes. Aliás, essa dupla condição de artista e agente cultural, ou gestor cultural, iniciara-a já antes com a participação nas direcções da Cooperativa Gravura e da Sociedade Nacional de Belas Artes. Nasceu em Lisboa em 1948 e licenciou-se em 1973, tendo feito uma pós-graduação na Slade School de Londres, como bolseiro da Gulbenkian.
Observa-se no caso de Fernando Calhau, como acontece com Margarida Veiga, que também chefiou a Divisão de Artes Plásticas da antiga SEC e dirige agora o Centro de Exposições do CCB, uma curiosa situação de continuidade de percursos que atravessaram muitos governos diferentes, mas ele sublinha que «pela primeira vez há um reconhecimento por parte do Governo da importância desta área da arte contemporânea, que era tratada como parente pobre».
Por outro lado, Fernando Calhau tem também um extenso «curriculum» como coleccionador institucional, tendo integrado as comissões de compras da SEC e da Fundação de Serralves, e mantem-se ainda à frente da colecção da Caixa Geral de Depósitos, considerando que apenas existirá uma incompatibilidade de funções no caso de vir a ser convidado para a presidência do IAC.
Na rede dos serviços do actual Ministério da Cultura, a intervenção no domínio da arte contemporânea, que antes fora incluida nas competências do Instituto Português de Museus, deu lugar a um novo Instituto, cuja lei orgânica se aguarda. Não será, diz F. Calhau, uma instituição burocrática devoradora dos seus proprios recursos financeiros, mas uma estrutura ligeira. Nem terá funções de coordenação ou tutela sobre outras entidades da mesma área da criação contemporânea, como os museus do Chiado, com o seu futuro pólo de Alcântara, e de Serralves, no Porto, ou o Centro Cultural de Belém, onde ficarão em depósito as peças da Colecção Berardo que não couberem no Sintra Museu de Arte Moderna e que será igualmente o destino do novo programa de aquisições agora anunciado. (...)
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