o capital cultural
DESENHOS DE MODIGLIANI
ENCONTROS AFRICANOS
Culturgest/CGD - EXPRESSO 7 jan 95
Caso único entre nós de grande mecenato de empresa, a CGD, através da Culturgest, iniciou ontem o ano pós-capital cultural com duas importantes inaugurações internacionais: «Modiglini — Desenhos da Colecção Paul Alexandre», uma exposição que teve a sua estreia em 1993 no Palácio Grassi de Veneza e que no último ano se apresentou na Royal Academy de Londres, no Museu Ludwig de Colónia e ainda em Bruges e Tokio, e «Encontros Africanos», uma co-produção do Instituto do Mundo Árabe, de Paris, e da Fondation Afrique en Création, também já mostrada em Joanesburgo, e que reune artistas do Magreb e da zona sub-sahariana.
A primeira reune 250 trabalhos (desenhos e aguarelas) dos primeiros anos da obra de Modigliani, entre 1906, data da sua chegada a Paris, e 1914, com o interesse particular de permitir acompanhar exaustivamente a definição do estilo próprio do pintor, através de séries completas de estudos e de pesquisas temáticas. Em Lisboa, a exposição foi ainda acrescentada com uma secção dedicada a Amadeo Souza-Cardoso, documentando a amizade entre os dois artistas, a sua exposição conjunta de 1911, no atelier do português, e as possíveis influências mútuas entre as suas obras.
Amigo e primeiro mecenas de Amedeo Modigliani, o médico Paul Alexandre conservou na sua posse, até à morte em 1968, uma acervo de desenhos que é um documentário sem paralelo sobre a evolução e a coerência de uma pesquisa plástica pessoal. Reagindo à fama póstuma de Modigliani, morto em 1920 e imediatamente apresentado como exemplo romantizado do artista boémio, de vida atormentada e autodestrutiva, Paul Alexandre manteve sempre o projecto de escrever uma outra biografia fundamentada pelo seu conhecimento directo do pintor. A revelação dessa extensa colecção de desenhos e também de fotografias e outros documentos biográficos, reunidos num volumoso livro-catálogo importado pela Culturgest, viria no entanto a caber ao seu filho, Noel Alexandre, com a presente exposição.
Os retratos, os nús, como estudos académicos ou desenhos de observação, os desenhos de cariátides e de cabeças esculturais, estes marcados pela descoberta da arte africana e pela influência de Brancusi, constituem os sucessivos núcleos da mostra.
Depois de, há um ano, a Culturgest ter apresentado os desenhos de Egon Schiele, seu quase exacto contemporâneo, esta é uma outra oportunidade de revisitar uma obra feita voluntariamente à margem dos estilos colectivos do tempo, num momento em que as vanguardas pareciam aplicadas no puritano exercício de fazer desaparecer do campo da arte a experiência do corpo. Nesta medida, e também enquanto redescoberta da importância do estilo individual e do talento ou dom artístico, que se exprime num modo particular de captar o visível e o vivido, Modigliani pode ser visto hoje como um dos polos essenciais de uma linhagem afinal ininterrupta que passa por Soutine, Picasso, Giacometti, Balthus, Bacon, Freud e Aricka.
Entretanto, a coincidência das duas exposições no mesmo local permite também reflectir sobre o significado de dois momentos decisivos do encontro da arte de tradição europeia com outras expressões culturais: na obra de Modigliani, primeiro, enquanto exemplo do interesse formalista pelos códigos não realistas da «arte negra» e, hoje, como abertura à alteridade e questionamento do olhar etnocêntrico.
«Encontros Africanos» é uma iniciativa nascida na sequência de «Magiciens de la Terre» (Centro Pompidou, 1989) e que em parte responde a algumas das críticas que provocou essa mostra. No caso presente, a que Jean-Hubert Martin está também associado, a responsabilidade da selecção dos autores representados foi confiada a dois artistas africanos e o projecto constitui uma interrogação eficaz sobre as diversas possibilidades de compreensão e de relacionarmento com a produção artística não europeia.
Farid Belkania, um marroquino com formação artística europeia, seleccionou através de uma pesquisa feita na África negra quatro artistas da Costa do Marfim, da Etiópia, Kénia e Benim, cujo trabalho está profundamente enraizado em tradições regionais, sendo indissociável de práticas religiosas, terapêuticas e de revelação cósmica ou de expressão dita «naif». Pelo contrário, a escolha feita por Abdoulaye Konaté, um artista do Mali com formação escolar em Cuba, incidiu sobre os países do Magreb (Argélia, Egipto e Tunísia) e sobre artistas que têm circulação internacional ou adoptam processos criativos (já) informados pela tradição ocidental.
As questões da autonomia, miscigenação e hegemonia cultural, ou da recontextualização das produções africana como objectos integrados pelo seu exotismo na diversidade da arte contemporânea, e, em alternativa, da identificação e preservação de tradições regionais, eventualmente como polos de uma irredutível verdade da arte, são bem afirmadas por esta mostra e prolongam-se ainda em dois debates de grande interesse recolhidos no catálogo original, a que a Culturgest acrescentou ainda um artigo de José António Fernandes Dias publicado no «jornal da exposição».
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ENCONTROS AFRICANOS
21-01-95
Atrasos imputáveis a um dos coprodutores da exp., a Fondation Afrique Création, não permitiam ainda, na semana que passou, mostrar todos os artistas anunciados (aguardavam-se as obras de Kivuthi Mbuno, uma das presenças mais fortes da montagem que se pôde ver no Instituto do Mundo Árabe, em Paris). O catálogo original, que inclui textos indispensáveis para compreender a originalidade e a radicalidade deste projecto, não estará igualmente disponível, por não cumprimento das relações contratuais estabelecidas com a Culturgest.
MODIGLIANI e ENCONTROS AFRICANOS
11-02-95
Duas exp. de circulação internacional, a primeira revelando um nome mítico do modernismo, através de um extenso acervo de desenhos que permite assistir à gestação do seu estilo, e, em particular, ao confronto com a descoberta da «arte primitiva»; e uma segunda, uma colectiva de artistas africanos de hoje, que, por coincidência, permite reflectir sobre uma muito recente revisão da problemática do multiculturalismo. Ao apresentar, como artistas contemporâneos de parte inteira, autores africanos que prosseguem tradições regionais ligadas a práticas cultuais, mágicas e terapêuticas, transferidos ou não para suportes de influência europeia, um dos seus comissários, o marroquino Farid Balkahia, propõe uma concepção da gravidade da arte que desautoriza as leituras formalistas a que os «primitivos» continuam a ser sujeitos e também a generalidade das iniciativas expositivas assentes na globalização da informação.
ENCONTROS AFRICANOS
25-02-95
Quanto a «Encontros Americanos», trata-se de uma abordagem da questão da multiplicidade cultural que tem o mérito de cair na moda e nos logros do multiculturalismo, com que o centro se recentra devorando as diferenças emergentes da periferia — esta não é uma exp. «politicamente correcta». Dedicada à produção africana e confrontando dois olhares africanos, do Magrebe e da África Negra, a exp. revela algumas obras de grande interesse e coloca problemas de real importância, quando restringe a escolha da produção do sul a obras marcadas por funções sociais e por expressões tradicionais, ligadas à magia e à intervanção terapêutica, mas entendendo-as, por isso mesmo, como plenamente integradas na contemporaneidade. Não é o exotismo que com essa selecção se promove, mas, pelo contrário, a compreensão da respectiva identidade com uma tradição essencial da produção ocidental, numa linhagem múltipla que passa por Malevitch, Klein, Beuys ou Tapiès.
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