«Não sou pintor de naturezas-mortas» escreveu o pintor - e essa foi a tradição que menos praticou. Mas existiram algumas, são obras maiores e ficaram a marcar uma transição brusca entre ciclos, dos retratos íntimos para os recortes de figuração erótica. São também um momento forte do diálogo sempre procurado com a arte dos museus*, que vários artistas da Pop norte-americana praticavam e então o interessavam, desde a longa relação com Ingres e com Matisse, no início da década de 1970.
Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. E lá me encontrei: situação sem conforto, de que há que partir. Isto vale para a pintura e para o resto. Nota (p. 27)
Três magníficas natureza mortas a partir de Chardin, em 1976: “Vá-se lá saber porque é que o meu período de retratos (1968-1976) se afoga em naturezas-mortas. E a verdade é que nunca me apetecera tentar o género”. Confessa todavia a “admiração sem limites por Chardin (que) sempre me entusiasmou diante das suas pirâmides de fruta e da carne miraculada dos seus utensílios, ditos humildes” - “um pintor obcecado pelo lado carnal da presença”. Nas mesmas páginas de Da Cegueira dos Pintores em que reflectia sobre o fazer da pintura, “relacionava também... os seus belos vazios com aqueles tempos tão densos que Morandi assinala entre os frascos e as cafeteiras anónimas”.
A natureza-morta é um “micromundo ou inacabável modelo do mundo... (e a tradução literal de nature morte repete a estupidez da expressão original (francesa), a opacidade que still life, vida silenciosa ou quieta, não tem): o silêncio nas coisas ou a quietude destas não é obrigatoriamente apanágio de cadáver. “
Enquanto se ocupava de uma difícil paisagem*, Belle-Isle-en-Mer, e elas foram sempre raras, “a lembrança de Chardin começou a mexer em mim. Iniciei um estudo a partir de La Raie (mais um rosto!), e outro a partir de Le Chaudron de cuivre. Seguiu-se Le Pot d’étain. A partir de Juan Gris, arrisquei as duas telas que foram mais tarde distinguidas com o título Table des matières.”
“Nessa altura... precisava de uma espécie de terreno neutro.” “Vivia então uma espécie de purga. Escolhera os simples e confiara aos seus poderes o cuidado de disciplinar a libertinagem, enquanto o olhar desperto guardava as suas distâncias. O rigor pretendia-se impermeável ao tremor da mão. Uma geometria cortante. Dei comigo a fabricar quadros que pareciam ter sido paridos por luvas assépticas. Nenhum sinal de temperamento na pincelada, a escrita artística eliminada deliberadamente, nenhuma subtileza de feitura, tréguas na transparência. Tudo se pretendia exacto, seco, impessoal.”
O “lado carnal da presença” em Chardin, era igualmente ausência, vazio dos espaços de formas e fundo liso: “O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença.” Falou em “ordenação das emoções”. “Pintura que parte da coisa para se tornar pintura do vazio, do vazio como coisa; pintura da coisa grávida do seu vazio, da coisa chamada ausência, da coisa semelhante à sua ausência. Pintura que apresenta o vazio que a forma deixou, contra o vazio que a teria rodeado. A forma era assinalada como ausente, no vazio que teria habitado. O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença.”
São só cinco telas, a Raia d’après Chardin, o caldeiro de cobre em que a tela crua interior desenha um corpo e o humilde pote de estanho no fundo vermelho; a par das duas apropriações de Jean Gris em que aparecem guitarras e sexos. Em 1976, depois dos Maios’68 e de Ingres, de Van Eyck e Courbet revisitados até 1973. A par da essencial Belle-Isle-en-Mer.
Da Cegueira dos Pintores, tradução de Pedro Tamen, ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1986, de Discours sur la cécité du peintre, ed. Différence, Paris 1985. Reed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta 2014.
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