Em 1955 despede-se do neo-realismo. Não existe declaração formal, apenas uma resposta em entrevista ao Diário de Notícias (1), onde fica dito que o movimento não teve nenhum resultado prático. «De resto – acrescenta – não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público».
Na pintura, a viragem manifesta-se em quatro obras (ou cinco, uma desconhecida) que poderão ter surpreendido quem seguira o período de militância renovada que vai de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951 (Salão da Primavera) aos retratos de Maria Lamas (VIII EGAP) e José Cardoso Pires de 1954, cumprindo-se a recomendação comunista-internacionalista do culto das personalidades.
Esse fora o tempo do Ciclo “Arroz” (VII e VIII EGAP) e dos quadros-manifesto Marcha (só exposto em 2021) e Os Carpinteiros (VII EGAP: os controleiros do PC deslocavam-se de bicicleta por razões de segurança conspirativa), com que esconjurava o “desvio lírico” (o lirismo complacente, o maneirismo e formalismo, a renúncia dos objectivos...) do fim da anterior década, condenado no artigo de balanço e reafirmação do neo-realismo que publicou no Comércio do Porto em 1953 (2). Esta crítica motivou a ruptura com Mário Dionísio (3) com quem partilhara desde início a condução do movimento, juntando-se a fulgurante energia juvenil ao prestígio do crítico literário e militante do PC dez anos mais velho. Dionísio afasta-se das Gerais nesse ano, e da SNBA, por recusa da alegada cumplicidade com o SNI por ocasião da 2ª Bienal de São Paulo, e desliga-se do partido, discordando do sectarismo que condenava a revista Ler, edição da Europa-América, onde os Lyon de Castro e Piteira Santos trocavam Estaline por Tito e por Browder.
Em simultâneo, foram também anos de indispensáveis produções decorativas (encomenda para o Restaurante Vera Cruz, 1952; vitrais para a igreja da Pontinha, de Victor Palla e Bento de Almeida instalados em 1954), mas era igualmente a ocasião fugaz de ensaios privados, pequenas paisagens de férias nas Azenhas do Mar e vistas da Ericeira (Barcos nº 94) e de Lisboa (?), onde mais se aproximou de desvios surrealistas, com árvores vermelhas orgânicas (CR I nº 93). As muito pequenas paisagens das Azenhas eram vistas abstractas de rochedos em close-up, de construção vigorosa e áspera. Pinturas não mostradas todas elas, enquanto num texto francês, “O assunto não é o conteúdo”, tradução se afirmava independente de todos os papas (4). Parece haver diferentes identidades sobrepostas numa prática que se questiona. Diferentes vozes no tempo neo-realista, na polifonia sugerida por Diogo Ramada Curto (5), mas só nesse tempo.
Será significativo que dois dos quatro quadros de viragem - O Baile e Rua de Lisboa, 1955 e 56 - tenham sido expostos na terceira das colectivas da Galeria Pórtico (1955-57), dinamizada por uma nova geração ou promoção de artistas surgidos na ESBAL e de próxima partida para o estrangeiro. Iam publicando irregularmente a revista escolar Ver (1953-57, de início organizada por António Lopes Alves, René Bertholo e Sebastião Fonseca) e viriam a editar em Paris a KWY (de 1958 a 1964). Além do singular Catatuas, certamente nunca exposto, conhece-se Circo (1º Salão dos Artistas de Hoje), e desconhece-se o chamado Quarto andar (não localizado nem fotografado, apresentado na 2ª Exposição de Pintura Moderna, em Luanda, dinamizada por Manuel Vinhas e Cruzeiro Seixas). Todos eles são cenas ou vistas urbanas, burguesas, não proletárias. Não parece ter havido testemunho crítico do que se veria com surpresa.
Com a estranha melancolia de O Baile e Circo, duas festas tristes, despede-se o artista desses anos mais aguerridos e também opressivos. Viaja então com mais assiduidade, até Paris (56, de carro com o amigo de sempre Manuel Torres, pelas Astúrias, Altamira, Chartres, etc) e pela Itália (58 e 60, Bienal de Veneza), depois de ter visitado Madrid em 50 (“A romagem ao Prado e Santo António de La Florida. Contacto ao vivo com Goya, e depois Columbano, duplo encontro...” - Nota 6) e Paris em 51, de onde trouxera os pincéis japoneses com que passará a desenhar. (7)
Dez anos depois da afirmação geracional do pós-guerra, o meio da arte voltava a mudar. As Exposições Gerais chegavam ao fim com a 10ª edição, já retrospectiva, de Junho 1956, precedida em fevereiro pelo Salão dos Artistas de Hoje, o qual é antecedente da primeira exposição Gulbenkian de dezembro 1957, ainda na SNBA, havendo perspectivas de bolsas desde 56. A criação da cooperativa Gravura também em 1956 é outro pólo com efeitos de mercado e de convivência de correntes.
O Movimento de Renovação da Arte Religiosa tinha sido fundado em 1952. José-Augusto França conduzira a Galeria de Março de Março de 1952 a 1954, onde lançou o Prémio da Jovem Pintura e a colectiva Pintores Portugueses Contemporâneos, ambos em 1953, mas que encerrou por falta de compradores. Vale a pena registar que Bértholo comparece na EGAP de 1953 convidado por Pomar e no Salão de Arte Abstracta da Galeria de Março em 1954 a convite de JAF. Era um dos elementos mais activos da nova conjuntura, em torno da ESBAL, da Ver e da Pórtico, com José Escada, Costa Pinheiro, Lourdes de Castro. O impacto público destas aparições ficou assinalado pela reportagem de capa do Século Ilustrado (6 Abril 1957) com Lourdes de Castro e intitulada «Os jovens pintores sem bênção».
À exposição da Gulbenkian leva Maria da Fonte, vinda das ilustrações para a vida de Camilo, que tornava bem visível a nova caminhada (é uma nova Marcha, a 3ª, vontade de pintura de história), mas também foi vista como obra culminante do neo-realismo. Mostrou também desenhos, as primeiras etreintes, teriam longa continuidade - e foi premiado por gravuras. Pelo meio tinham ficado várias obras indecisisas, incluindo paisagens vistas a partir da casa da Rua da Alegria e continuidades do neo-realismo anterior.
- “De atelier em atelier - O pintor J P fala de neo-realismo”, Diário de Notícias 22 setembro 1955, p.7.
2. “A tendência para um novo realismo entre os novos pintores portugueses” 22 dezembro 1953 ; in Estrada Larga 2 e Notas sobre uma arte útil, AMJP / Documenta 2014.
3. Ver Júlio Pomar. Depois do Novo Realismo, Guerra & Paz / AMJP 2022., p. 132-134, em “Marcha, 1952. Rever o Neo-Realismo”, e p.228.
4. In “Le premier bilan de l’art actuel 1937-53”, Le Soleil Noir. Positions, Paris 1953, p. 314. Notas sobre uma arte útil, AMJP / Documenta 2014, p. 241.
5. “Júlio Pomar e a arte polifónica”, Expresso Revista E 19 Abril 2024, p. 58-59.
6. Helena Vaz da Silva, Com Júlio Pomar, Ed. António Ramos, 1980, p. 84
7. JP, “A mão contraditória”, 2010, in Júlio Pomar. Depois do Novo Realismo, p. 247-252.
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