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era directora do MNAA e ministra a Isabel Pires de Lima, a srª da sucursal do Hermitage e do Museu da Língua Portuguesa no MAP, mandava Sócrates
[Revista Atlântico de Junho de 2007 . Nº 27]
Conversas Atlânticas
DALILA RODRIGUES em entrevista:
“O modelo de gestão dos museus incentiva a indigência”
por FÁTIMA VIEIRA
Nos museus portugueses a situação é de “dependência paralisante”, “pobreza orçamental” e “precariedade total”. Praticamente nada vai mudar com a lei orgânica para o novo Instituto dos Museus e da Conservação, resultante da fusão do Instituto Português de Museus e Instituto Português de Conservação e Restauro. Dalila Rodrigues, directora do Museu Nacional de Arte Antiga, não esconde o forte desapontamento e reclama "a autonomia do Museu". [Pouco tempo depois desta entrevista foi afastada pela ministra que se diz da Cultura]
Qual a sua opinião sobre a nova lei orgânica para o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) na qual depositava tantas expectativas?
Numa avaliação global, penso que não resolve os actuais problemas dos museus portugueses, uma vez que se mantém uma igualitária e paralisante dependência estatutária da tutela para os 29 museus, como se todos tivessem a mesma importância, o mesmo mérito e o mesmo desempenho. Há dois aspectos positivos nessa nova lei orgânica, que de facto correspondem às minhas expectativas, e que são a possibilidade de gestão dos apoios mecenáticos directamente angariados pelos museus e a retenção da receita gerada pelo aluguer de espaços. Embora a lei seja muito mais abrangente, no que respeita à vida dos museus portugueses estes são os dois únicos aspectos positivos a destacar, sendo que tudo o resto se mantém.
Portanto estamos ainda muito longe da autonomia que reclama?
Estamos muito longe da autonomia de que este museu precisa para se desenvolver e afirmar tanto a nível nacional como a nível internacional.
Segundo o director do IMC, Manuel Bairrão Oleiro, a autonomia financeira é uma utopia, só faz sentido quando as receitas são muitíssimo mais elevadas do que as obtidas pelos museus portugueses.
É uma utopia pensar que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) terá um dia o número de visitantes que tem, por exemplo, o Louvre. Tenho consciência, evidentemente, da diferença de escalas. Mas não tenho dúvida de que a falta de visitantes e as magras receitas geradas são também o resultado do actual modelo de gestão, que não só não premeia o mérito como incentiva a indigência. E a nova lei orgânica não altera esta situação. O processo de comercialização da imagem, hoje um sector decisivo, mantém-se na estrita dependência da tutela, ficando os museus privados dessa fonte de receita. O mesmo sucede com a totalidade da receita mensal proveniente da bilheteira e da loja (o resultado da venda não apenas do merchandising, mas também de catálogos e livros). Ora, retirar a totalidade da receita mensal ao organismo que a gera, independentemente do seu desempenho, é injusto e desmotivante. Confesso que me surpreendeu o facto de se manter a gestão centralizada das lojas, sem que os directores tenham qualquer poder decisório. De resto, discordo também da actual política normalizadora quanto aos produtos. Cada museu deveria apostar num merchandising próprio. Não me interessa nada ter no MNAA réplicas de azulejos do Museu do Azulejo, sobretudo quando não tenho um postal do apostolado de Zurbarán.
Bairrão Oleiro minimizou as reivindicações de autonomia, dizendo que a questão não é consensual, que as queixas são apenas de um ou dois directores. É assim, está praticamente só nas suas reivindicações?
Eu reclamo a autonomia do MNAA porque tenho a responsabilidade de o dirigir e de o defender, e sou de opinião de que alguns museus deveriam ser entregues às autarquias. Compreende-se, portanto, que não seja a totalidade dos directores de museus a reclamar a autonomia; de resto não concordo que os 29 museus fiquem autónomos. Os exemplos internacionais são, neste aspecto, muito claros: em toda a Espanha, por exemplo, só o Prado e o Rainha Sofia são autónomos.
Este ano manifestou a sua indignação pela redução do apoio mecenático que angariou para o MNAA, (que recebeu apenas 360 mil euros do montante atribuído pelo Millennium BCP, em vez dos 500 mil entregues no ano passado). Como é que será essa distribuição no próximo ano?
Não faço a mais pequena ideia.
Também este ano, a falta de vigilantes trouxe à luz a situação de ruptura a que chegaram os museus. Considera que o problema foi devidamente resolvido?
O problema foi resolvido apenas temporariamente, uma vez que, no caso do MNAA, se efectuaram dez contratos de tarefa, por um período de três meses, neste momento em fase de renovação por mais três meses.
E depois volta tudo ao mesmo?
Espero que não!
Além da falta de vigilantes, quais são os principais problemas que o MNAA enfrenta actualmente?
A dotação orçamental é absolutamente deficitária, servindo apenas para fazer face a despesas de manutenção. As verbas para a programação anual, isto é, para actividades que vão das exposições temporárias à conservação e ao restauro ou à frente editorial, foram este ano de apenas 360 mil euros. Esta situação de subfinanciamento, juntamente com o défice no sector da vigilância, coloca-nos, de facto, numa situação particularmente difícil.
Podemos concluir que o MNAA está em crise?
Se falarmos em crise no MNAA, falamos em crise nos museus portugueses.
E podemos falar em crise nos museus portugueses?
Podemos falar em crise nos museus portugueses e podemos dizer que há largos anos vivem nesta situação, com crescente aceleração dos problemas que a geram. Não há como ocultá-lo. Apesar de neste momento decorrerem obras de requalificação estrutural em alguns museus, em Évora ou em Aveiro, por exemplo, tal facto não desculpa a degradação de edifícios, museografias, condições de exposição nos restantes museus, sobretudo no principal museu português.
Quando aceitou o cargo (no final de 2004) estava ciente de todas estas dificuldades, ou foi pior do que o que esperava?
Estava ciente de todas as dificuldades excepto de duas, datadas deste ano. A primeira foi o facto de não ter sido concedido ao museu a totalidade do apoio mecenático. Em pleno processo negocial, fui muito clara quando informei quer o director do IPM quer o mecenas que não aceitava menos de 500 mil euros anuais pelo mecenato exclusivo, justamente porque precisava de uma programação dimensionada à escala do museu e à expectativa dos públicos. A redução do apoio mecenático acordado foi injusta e desmotivante. A segunda dificuldade que me surpreendeu foi a situação de ruptura gerada pela falta de vigilantes. Nunca supus que não fossem tomadas medidas para evitar a situação de encerramento, que há muito se adivinhava com o fim do programa do Mercado Social de Emprego, um programa que servia para resolver, não estruturalmente, mas de ano a ano, a questão da vigilância. Nunca imaginei ter de fechar cerca de 40% do percurso expositivo do MNAA.
Quais considera que foram os seus grandes êxitos à frente do museu?
Penso sobretudo no imenso trabalho que há a realizar. Mas sinto alguma satisfação pelo trabalho diário que tem vindo a ser feito pela equipa, e que nem sequer assume visibilidade, como, por exemplo, a reorganização das reservas, a limpeza das zonas de armazenamento, a formação dos vigilantes na área de relações interpessoais e competência de atendimento, e que fazem com que sinta o museu mais qualificado. Em termos de impacto junto do público, a programação de exposições temporárias parece-me estruturada em critérios que têm tido sucesso: exposições organizadas a partir de colecções próprias, como foi a dos desenhos, ou de uma nova aquisição, como a pintura de Frei Carlos, e uma grande exposição internacional, no ano passado a Colecção Rau, e este ano O Brilho das Imagens, que lamento não ter mais público, porque é uma extraordinária exposição. Como historiadora de arte tenho imenso orgulho em tê-la programado.
Quando exposições desta qualidade não se traduzem num êxito, o que é que falha?
Falha a resolução de problemas estruturais, que são fundamentalmente dois: o actual modelo de gestão e a acessibilidade. Repare, o Prado e o Louvre têm uma clara centralidade no tecido urbano e o acesso garantido através dos mais diversos meios de transporte. O MNAA inscreve-se numa zona privilegiada da cidade do ponto de vista da paisagem, mas tem apenas como meio de acesso o autocarro e não tem estacionamento. Os públicos que aqui vêm são públicos muito esforçados. É evidente que nós, portugueses, não conseguiremos ter os públicos do circuito do turismo internacional que o Prado ou o Louvre têm. Mas também não fazemos nada para tal. Nem para garantir o acesso dos públicos nacionais escolares ao património artístico de referência. Confesso que não compreendo e não me conformo com este desinvestimento nos museus portugueses.
Como se poderia resolver o problema da acessibilidade?
Poderia resolver-se através da ligação desta zona da cidade ao rio e através da requalificação dos edifícios abandonados na zona de Santos. De resto, o arquitecto Souto Moura chegou a idealizar uma passagem pedonal, com elevador, sobre a 24 de Julho, que serviria não apenas o museu mas também o seu envolvente.
E o projecto ficou na gaveta?
Era suposto que a Câmara Municipal de Lisboa assumisse este projecto como uma prioridade. O professor Carmona Rodrigues tinha-me garantido o seu empenho na execução do projecto, e agora terei com certeza oportunidade de apresentá-lo ao novo presidente da Câmara, que espero que esteja receptivo à ideia de eleger como prioritária a resolução desta questão.
Mas mesmo resolvendo-se estes problemas haveria sempre o da falta de hábitos enraizados de fruição cultural em Portugal…
Os portugueses visitam muito pouco os seus museus, é verdade, mas fazem-no no estrangeiro. Os museus terão alguma responsabilidade nisso, mas não tenho qualquer dúvida em considerar que a principal responsabilidade resulta do desinvestimento do Estado. O Estado não pode considerar a Cultura um acessório e não pode deixar os seus museus chegar à situação a que chegaram: uma situação de sub-financiamento, de precariedade total, que evidentemente se reflecte ao nível dos públicos.
Para si qual deve ser o papel dos museus?
Entendo que os museus (de arte), além do entretenimento e do prazer, devem ser assumidos como instrumentos fundamentais de formação estética e histórica. Essa educação é, evidentemente, não formal, mas deve ser um complemento obrigatório à formação obtida nas escolas. Os museus devem considerar não apenas as exposições temporárias, mas também uma programação científica assumida enquanto tal. É fundamental também que saibam comunicar os seus conteúdos aos diversos públicos, que sejam mais assertivos nas programações e definam com muito clareza que tipo de público pretendem atingir.
O espectáculo, a festa, surge cada vez mais como estratégia para levar mais público, sobretudo jovem, aos museus, mas isso não se traduz num interesse real pelas exposições…
Nunca programei uma festa que não tivesse uma clara articulação ao museu e que não procurasse, mais ou menos directamente, funcionar como uma forma de aproximar do museu os públicos que vêm à festa. Por exemplo, este ano, no Dia Internacional dos Museus, a festa mais não foi do que o prolongamento da inauguração de uma exposição de arte contemporânea, assumida como mediadora da arte antiga.
Na programação há uma aposta forte nas colecções internacionais. O acervo do museu não tem capacidade para atrair mais visitantes?
Tem. E posso dar como indicador o livro de sugestões do museu, o feed back do público relativamente à qualidade das colecções e da programação.
Com esta pressão dos números não se está a querer transformar os museus mais em máquinas de produção de eventos que de conhecimento?
Sempre me preocupei com o aumento de públicos em proporção directa com o aumento da qualidade das programações. De resto, a lógica do aumento dos públicos por si só não me interessa nada, ainda por cima quando o museu nem sequer tem o incentivo de poder ficar com a receita proveniente das bilheteiras. Em termos financeiros, o facto de o museu ter um visitante ou ter um milhão de visitantes tem exactamente o mesmo peso. É a lógica perversa que se verifica com as lojas e o merchandising: ter como receita 1 cêntimo ou 1 milhão, significa, no final do mês, para os museus, exactamente a mesma coisa.
O que acha desta ministra da Cultura?
Não vou responder a essa questão, por motivos que são óbvios.
Então pergunto-lhe o que acha da estratégia para a Cultura… Se no panorama actual fazem sentido, por exemplo, iniciativas como a vinda do Hermitage, ou a criação do Museu Mar da Língua Portuguesa…
Enquanto os museus portugueses, e particularmente o grande museu português, o MNAA, enfrentarem problemas como os que enfrentam actualmente, não posso concordar que sejam desviados para outros fins as magras verbas disponíveis no Ministério da Cultura.
Antes de ser conhecida a nova lei orgânica, pôs a hipótese de sair do MNAA no final da comissão de serviço, em Novembro. Agora, perante uma lei que deixa quase tudo na mesma, essa hipótese mantém-se?
Desde que soube que o apoio mecenático não ia ser dado ao museu na totalidade e que as verbas do POC (Programa Operacional de Cultura) iam ser canceladas, procurei encontrar formas de minimizar os efeitos dessas perdas. No que respeita à minha permanência na direcção do MNAA depois de Novembro, a decisão cabe à ministra da Cultura.
Sobre o artigo de Diogo Ramada Curto, agradecendo a atenção crítica que dedicou ao livro JÚLIO POMAR. DEPOIS DO NOVO REALISMO, Guerra & Paz, 2023, depois de já ter participado no respectivo lançamento no Atelier-Museu (o presente artigo, há muito tempo entregue para publicação, inclui o essencial das considerações críticas que então formulara). Esta é a oportunidade para rever o conteúdo e as teses do meu livro, em diálogo com um leitor atento. CRÍTICA DA CRÍTICA sem qualquer intenção polémica, que não há razão para isso, aprofundamento de leituras esclarecendo alguns pormenores que terei deixado pouco claros.
Artigo de Diogo Ramada Curto publicado no Expresso Revista E em 19-04-2024, p.58-59.
<original a negro, anotações a azul >
(1º)
Esta obra escrita por um filho acerca do seu pai não é muito esclarecedora dos aspetos privados da vida de Júlio Pomar. Tão-pouco procura reconstituir a rede de relações em que se inseriu a atividade do artista plástico. Talvez seja descabido julgar o livro pelo que escapou à intenção deliberada do seu autor <1> . Sublinhe-se, ainda, que o mesmo propõe um argumento principal: a produção de Júlio Pomar teve um carácter experimental e heterogéneo que não se encaixa em categorizações simplistas.
Assim, a formulação de Mickhaïl Bakhtine sobre Dostoievski poderá ser-lhe aplicada: “A pluralidade de vozes e consciências independentes e distintas, uma autêntica polifonia de vozes no seu conjunto, constituem o traço fundamental dos (seus) romances.” Quando incide sobre Júlio Pomar, o argumento tem duas consequências: por um lado, torna impossível reduzir a obra de Pomar, dinâmica e polifónica, ao neorrealismo e à sua filiação no Partido Comunista; por outro, a própria categoria do neorrealismo é posta em causa no que respeita à sua filiação comunista e soviética. <2>
A polifonia em 1952-53: painel para restaurante Vera Cruz e Marcha, 1952, e Paisagem (Lisboa), de 1953
Os novos dados biográficos oferecidos por este livro não vão além de algumas cartas de Júlio Pomar para os filhos. Por isso, o contraste é grande em relação à entrevista de vida feita pela jornalista Helena Vaz da Silva, em 1980. Nela, procurou-se saber se as suas mudanças correspondiam às mulheres que tivera como companheiras. Seria ele “permeável, influenciável...” ou, pelo contrário, ser-lhe-iam periféricos “os universos das mulheres”? Em lugar de enfrentar estas questões íntimas, Alexandre Pomar limita-se a uma curta referência acerca das mulheres retratadas pelo pai — Manuela, Graça, Teresa. <3>
<1> Sim, será certamente descabido, e não se tratou de escapar..., as intenções deliberadas foram outras e estão explicitadas na Apresentação do volume, p. 11-14.
<2> Sim, não se fixou num estilo, colectivo ou individual, numa imagem de marca, numa fórmula, depois de ter promovido o neo-realismo durante dez anos, 1945-54; no entanto, em vez de polifonia logo referida no título, a qual supõe uma simultaneidade de meios ou vozes, haverá que falar na diversidade de um percurso no tempo, nas várias mutações de linguagens ou “estilos”; nas fases e nos períodos e ciclos sucessivos. Não é uma obra única, um romance, mas uma longa carreira de oito décadas. Mas poder-se-á certamente falar de polifonia, de sobreposição de camadas ou de vozes, escritas e pintadas, quanto ao último tempo do novo realismo, 1951-54, apontando a simultaneidade de pinturas militantes, trabalhos alimentares e obras pessoais não expostas - exemplificando, a pintura Marcha, painéis para o restaurante Vera Cruz e pequenas paisagens (Azenhas do Mar, Lisboa, todas de 1952) -, bem como os artigos do Comércio do Porto e da revista de Paris Soleil Noir. >
<3> O que é principal no livro, na sua parte inicial, é fazer a marcação do arranque do NR nas artes plásticas no momento do fim da 2ª Guerra e na expectativa da queda do regime, como uma afirmação geracional, afirmadamente moderna, propondo eu o reconhecimento (inédito) de uma Geração de 45, a qual depois se dividiria pouco depois em diferentes práticas ou tendências. A análise daquele arranque contraria a habitual diluição das temáticas sociais NR nos seus precedentes, naturalismos, populismos e miserabilismos, ou humanismos, e a confusão com o NR literário bem como com o realismo socialista soviético, que não foi uma influência, mas uma informação rejeitada. A afirmação dos jovens pintores em 1945 é autónoma e pioneira em relação aos realismos sociais que se afirmariam nos anos seguintes da reconstrução europeia, e ao realismo socialista: oficial chegado de França cerca de 1948. A relação com as Américas marcou a diferença.>
<3> Há seguramente muitos outros dados biográficos... desde logo, para falar só de cartas, no 2º anexo, as em que intervém o coleccionador e amigo Manuel Vinhas, influente por ocasião da partida para Paris em 1963 e responsável por encomendas e por curiosas recomendações já de 1974. O projecto é outro, o lugar do autor é diverso, de investigador e crítico, não de jornalista e amigo. “Os universos das mulheres”: é uma pista tentadora, mas a síntese é redutora e não vem ao caso; não me interessou “enfrentar questões íntimas”, nem fazer uma entrevista de vida.
O quadro de informações afigura-se mais rico ao passar para as relações de Pomar. Um campo vasto formado por colegas (artistas e escritores como Mário Dionísio, Cardoso Pires, etc.), mecenas (Manuel Vinhas, Jorge de Brito e Ilídio Pinho) ou o galerista Manuel de Brito <4>. Por exemplo, entre a adesão ao PCP, em 1945, e a sua prisão por razões políticas, em 1947, o jovem Pomar coordenou uma página artística de “A Tarde”, um jornal vespertino do “Jornal de Notícias”. A seu lado, como colaboradores estiveram Fernando Lanhas e Victor Palla, mais Júlio Resende e Nadir Afonso, estes últimos “menos interessados pela política”. Alexandre Pomar acrescenta outros nomes, como Mário Cesariny, para falar da Geração de 45, de orientações diferentes <5>. No entanto, se a página coordenada por Júlio Pomar manifestava um tom panfletário, em defesa de uma “arte socialmente interveniente”, o jornal tinha uma agenda conservadora.
Se as menções aos mecenas ajudam a pôr em perspetiva as condições em que Pomar trabalhou, a questão do mercado também é posta, com coragem. Trata-se de um desabafo a respeito da exibição das pinturas sobre os índios da Amazónia, envolvendo a Fundação Gulbenkian e o Ministério da Cultura do Brasil, que culmina no reconhecimento da fraca internacionalização do artista plástico: “Mais uma vez nada da mostra institucional entra no mercado brasileiro ou internacional porque tudo é absorvido em Lisboa, ou de Paris para Lisboa, despreocupado e inábil o artista como sempre.” <6>
Alexandre Pomar mostra a sua insatisfação em relação àqueles que reduziram Júlio Pomar ao estatuto de pintor neorrealista, sem procurar compreender a sua evolução. O livro constrói-se em função de um ‘chega-para-lá’ dos saberes impregnados do bafio académico. As farpas são, neste caso, dirigidas a José-Augusto França e à sua “descendência escolar”, representada por Raquel Henriques da Silva, sem esquecer o posicionamento do Museu do Neo-Realismo na mesma simplificação forçada. Na voragem de uma oposição aos saberes académicos, Alexandre Pomar só se esqueceu da tese, mais elaborada, de Luísa Duarte Santos, “Realidade, Consciência e Compromisso Humanista na Arte, 1936-1961” (Caleidoscópio, 2017) <7>.
Ao longo do livro, o autor quer demonstrar o lado dinâmico, experimental, heterogéneo e polifónico de Júlio Pomar. Assim, o próprio neorrealismo, longe de poder ser considerado o produto de uma influência socialista ou soviética, nasceu colado a ideias americanas (com Portinari e Rivera) e, sobretudo, norte-americanas. Depois, há que considerar, desde o início da atividade de Júlio Pomar, a colaboração com artistas conotados com correntes opostas (do surrealismo de Cesariny ao geometrismo de Lanhas). < 8>
<4> Especialmente relevante, acrescente-se, foi a relação editorial e de amizade com Joaquim Vital, em Paris, que abriu espaço para o convívio com autores e críticos parisienses, e para numerosas publicações em livro, e mesmo séries de obras desde os ano 70.
<5> Fernando Lanhas, Júlio Resende e Nadir Afonso colaboraram na página "Arte" com reproduções de obras; também colaboraram com textos Fernando Azevedo, Pedro Oom, Vespeira etc, que à data não tinham “orientações diferentes”. Juntavam-se antigos colegas de Lisboa e os novos colegas do Porto, o que reforça o carácter geracional da movimentação.
<6> mais que desabafo é uma crítica ao mercado galerístico fechado sobre o país, e à despreocupação do artista com a sua promoção - mas nos anos 60 a Galerie Lacloche assegurara uma circulação relevante, e a presença no Louvre a propósito de Ingres em 1972 foi marcante, para além da posterior divulgação da obra de J P assegurada pelas Editions de la Difference, de J. Vital, o qual esteve na origem de séries de pinturas dos anos 80-90 como o Corvo de Poe e a Caça ao Snark de Carroll. Embora tivesse clientes nacionais persistentes, a carreira de J P desenvolve--se em Paris desde 1963, o que não é reflectido por DR.
<7> Essa ‘redução‘ ao NR perdeu rapidamente eficácia crítica logo nos fim dos anos 1950, e passou a ser só a menção de um lugar de partida juvenil. Mais do que "bafio" tratou-se de uma guerrilha nacional que apostava quer na divisão entre neo-realistas e surrealistas, e depois figurativos e abstractos, sempre aplicada na importação de sucessivas vanguardas (eram os alegados “pioneiros” dos vários estilos sucessivos), quer na desconfiança face ao mercado, com que se impunha a tutela da crítica sobre a criação pessoal. Devo dizer que 'esqueci' muita outra literatura; essa tese de extenso sumário de dados e fontes ditas “humanistas” vinha reiterar a tradição escolar. A velha competição entre “humanistas” e “formalistas” foi pouco produtiva. O que mais me interessou está no título “depois do Novo Realismo”.
<8> Sobre o capítulo NR seria essencial referir a minha proposta de uma periodização inédita, seguindo a obra e a escrita de J P: 1. a afirmação militante de 45-47; 2. o “lirismo, complacente, que tende a substituir agressividade dramática das primeiras tentativas”, nos anos de 49 a 51 (a respectiva autocrítica motiva ruptura com Dionísio); 3. o novo vigor interventivo dos anos 51-54, no diferente contexto da Guerra Fria e das campanhas da paz soviética.
(3)
A partir daqui, identificam-se três domínios em que Alexandre Pomar constata a referida heterogeneidade ou polifonia. O primeiro diz respeito à variedade de suportes ou de técnicas com base nos quais o pai efetuou diferentes experiências: fotografia, livros ilustrados, gravura ou tapeçaria — esta última, por solicitação de um arquiteto como Conceição e Silva. O segundo domínio é relativo aos anos Pop, sobre os quais se defende que a breve série de pinturas sobre os Beatles foi a primeira em que o pintor abordou o tema, sem ter estado presente. Corrijo: o mesmo já teria acontecido com “Histórias da Terra Negra” de 1960, livro sobre cultura africana e colonialismo de Castro Soromenho, um dos maiores escritores anticoloniais. Pomar ilustrou-o a meias com a sua companheira, Alice Jorge.
O último domínio foca a relação entre prática artística e escrita, para a qual Alexandre Pomar carreia elementos importantes que se prestam a diversas interpretações. O envolvimento com a escrita terá sido substituído, a partir de 1950, por uma ligação a dois tipos de projetos editoriais. Por um lado, encontra-se um conjunto de obras ilustradas por Pomar, que fazem parte do cânone da literatura ocidental, como “Guerra e Paz”, de Tolstoi (1957), o “Dom Quixote”, de Cervantes (1959-1963), o “Pantagruel”, de Rabelais (1967) ou as xilogravuras para o “Purgatório”, de Dante (1961), publicadas mais tarde. A própria série conhecida pelos tigres, pintada em redor de 1982, é para o filho indissociável da leitura de um conto de Jorge Luis Borges.
Por outro lado, há que ter em conta as obras de autores portugueses que Pomar ilustrou, a começar pelo “Romance de Camilo” (1957), de Aquilino Ribeiro; a referida obra de Castro Soromenho; “Emigrantes”, de Ferreira de Castro (1966); a que se seguiram livros de José Cardoso Pires, Eça de Queirós e outros. Aliciante será imaginar que o envolvimento de Pomar com a literatura corresponde a um apagamento da sua própria prática da escrita. E que, ao mesmo tempo, se teria dado uma cada vez maior aproximação a obras que configuraram uma identidade nacional e europeia — só contrariada pela atenção às populações africanas, como sucedeu no livro de Castro Soromenho; e, nos anos 1980, aos índios da Amazónia, também em luta pelos seus direitos.
Em conclusão, Alexandre Pomar escreveu sobre o pai um livro que, além de ter um argumento forte, põe em causa interpretações anteriores. Ao insistir numa visão dinâmica e polifónica da obra de Júlio Pomar, sugere pistas situadas na contracorrente das visões da crítica e da história de arte, que tendem a reduzir o pintor à categoria de neorrealista, pondo de lado outros aspetos.
De um ponto de vista mais pessoal, só tenho a acrescentar uma nota em relação àquele que é um dos maiores pintores portugueses da segunda metade do século XX. Reconheça-se que a sua grandeza experimental terá alcançado a sua maior consistência na fase dita neorrealista. Para isso, contribuiu uma espécie de convergência entre o muralismo americano e o expressionismo alemão. Porém, foi na técnica pictórica que essa grandeza, primeiro dita neorrealista, se transferiu para outras fases: entre a ilustração, o pop, os tigres, os índios e as colagens.
Enfim, será sempre difícil reduzir Júlio Pomar a qualquer tipo de categorias, quer as do neorrealismo, quer a da polifonia. Tão-pouco a técnica do desenho ou pictórica, em que foi exímio, terá sido por ele submetida a um projeto ideológico. Conforme o próprio pintor escreveu a Menez, em janeiro de 1980: “Como é difícil, céus! Há vezes em que dá cada desalento com a tinta a escorregar sobre os pincéis, tudo viscoso ou papa aguada. Nunca se sabe nada. A recomeçar de cada vez.”
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Tags: Depois do Novo Realismo, Diogo Ramada Curto, Júlio Pomar
Em 1955 despede-se do neo-realismo. Não existe declaração formal, apenas uma resposta em entrevista ao Diário de Notícias (1), onde fica dito que o movimento não teve nenhum resultado prático. «De resto – acrescenta – não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público».
Na pintura, a viragem manifesta-se em quatro obras (ou cinco, uma desconhecida) que poderão ter surpreendido quem seguira o período de militância renovada que vai de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951 (Salão da Primavera) aos retratos de Maria Lamas (VIII EGAP) e José Cardoso Pires de 1954, cumprindo-se a recomendação comunista-internacionalista do culto das personalidades.
Esse fora o tempo do Ciclo “Arroz” (VII e VIII EGAP) e dos quadros-manifesto Marcha (só exposto em 2021) e Os Carpinteiros (VII EGAP: os controleiros do PC deslocavam-se de bicicleta por razões de segurança conspirativa), com que esconjurava o “desvio lírico” (o lirismo complacente, o maneirismo e formalismo, a renúncia dos objectivos...) do fim da anterior década, condenado no artigo de balanço e reafirmação do neo-realismo que publicou no Comércio do Porto em 1953 (2). Esta crítica motivou a ruptura com Mário Dionísio (3) com quem partilhara desde início a condução do movimento, juntando-se a fulgurante energia juvenil ao prestígio do crítico literário e militante do PC dez anos mais velho. Dionísio afasta-se das Gerais nesse ano, e da SNBA, por recusa da alegada cumplicidade com o SNI por ocasião da 2ª Bienal de São Paulo, e desliga-se do partido, discordando do sectarismo que condenava a revista Ler, edição da Europa-América, onde os Lyon de Castro e Piteira Santos trocavam Estaline por Tito e por Browder.
Em simultâneo, foram também anos de indispensáveis produções decorativas (encomenda para o Restaurante Vera Cruz, 1952; vitrais para a igreja da Pontinha, de Victor Palla e Bento de Almeida instalados em 1954), mas era igualmente a ocasião fugaz de ensaios privados, pequenas paisagens de férias nas Azenhas do Mar e vistas da Ericeira (Barcos nº 94) e de Lisboa (?), onde mais se aproximou de desvios surrealistas, com árvores vermelhas orgânicas (CR I nº 93). As muito pequenas paisagens das Azenhas eram vistas abstractas de rochedos em close-up, de construção vigorosa e áspera. Pinturas não mostradas todas elas, enquanto num texto francês, “O assunto não é o conteúdo”, tradução se afirmava independente de todos os papas (4). Parece haver diferentes identidades sobrepostas numa prática que se questiona. Diferentes vozes no tempo neo-realista, na polifonia sugerida por Diogo Ramada Curto (5), mas só nesse tempo.
Será significativo que dois dos quatro quadros de viragem - O Baile e Rua de Lisboa, 1955 e 56 - tenham sido expostos na terceira das colectivas da Galeria Pórtico (1955-57), dinamizada por uma nova geração ou promoção de artistas surgidos na ESBAL e de próxima partida para o estrangeiro. Iam publicando irregularmente a revista escolar Ver (1953-57, de início organizada por António Lopes Alves, René Bertholo e Sebastião Fonseca) e viriam a editar em Paris a KWY (de 1958 a 1964). Além do singular Catatuas, certamente nunca exposto, conhece-se Circo (1º Salão dos Artistas de Hoje), e desconhece-se o chamado Quarto andar (não localizado nem fotografado, apresentado na 2ª Exposição de Pintura Moderna, em Luanda, dinamizada por Manuel Vinhas e Cruzeiro Seixas). Todos eles são cenas ou vistas urbanas, burguesas, não proletárias. Não parece ter havido testemunho crítico do que se veria com surpresa.
Com a estranha melancolia de O Baile e Circo, duas festas tristes, despede-se o artista desses anos mais aguerridos e também opressivos. Viaja então com mais assiduidade, até Paris (56, de carro com o amigo de sempre Manuel Torres, pelas Astúrias, Altamira, Chartres, etc) e pela Itália (58 e 60, Bienal de Veneza), depois de ter visitado Madrid em 50 (“A romagem ao Prado e Santo António de La Florida. Contacto ao vivo com Goya, e depois Columbano, duplo encontro...” - Nota 6) e Paris em 51, de onde trouxera os pincéis japoneses com que passará a desenhar. (7)
Dez anos depois da afirmação geracional do pós-guerra, o meio da arte voltava a mudar. As Exposições Gerais chegavam ao fim com a 10ª edição, já retrospectiva, de Junho 1956, precedida em fevereiro pelo Salão dos Artistas de Hoje, o qual é antecedente da primeira exposição Gulbenkian de dezembro 1957, ainda na SNBA, havendo perspectivas de bolsas desde 56. A criação da cooperativa Gravura também em 1956 é outro pólo com efeitos de mercado e de convivência de correntes.
O Movimento de Renovação da Arte Religiosa tinha sido fundado em 1952. José-Augusto França conduzira a Galeria de Março de Março de 1952 a 1954, onde lançou o Prémio da Jovem Pintura e a colectiva Pintores Portugueses Contemporâneos, ambos em 1953, mas que encerrou por falta de compradores. Vale a pena registar que Bértholo comparece na EGAP de 1953 convidado por Pomar e no Salão de Arte Abstracta da Galeria de Março em 1954 a convite de JAF. Era um dos elementos mais activos da nova conjuntura, em torno da ESBAL, da Ver e da Pórtico, com José Escada, Costa Pinheiro, Lourdes de Castro. O impacto público destas aparições ficou assinalado pela reportagem de capa do Século Ilustrado (6 Abril 1957) com Lourdes de Castro e intitulada «Os jovens pintores sem bênção».
À exposição da Gulbenkian leva Maria da Fonte, vinda das ilustrações para a vida de Camilo, que tornava bem visível a nova caminhada (é uma nova Marcha, a 3ª, vontade de pintura de história), mas também foi vista como obra culminante do neo-realismo. Mostrou também desenhos, as primeiras etreintes, teriam longa continuidade - e foi premiado por gravuras. Pelo meio tinham ficado várias obras indecisisas, incluindo paisagens vistas a partir da casa da Rua da Alegria e continuidades do neo-realismo anterior.
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