https://www.monitoronline.org/eugeniamussa-releasethechicken/
“Venham daí as críticas” desafiou a Eugénia Mussa. Sim, alguém que arrisque a crítica - mas, sem rede (?!), não é fácil enfrentar essa subtil e sábia facilidade aparente, e para mais cada pintura foge para o seu lugar singular que lhe coube na montagem. Não há rede, para além da que formam, talvez, mas já à distância, outras pinturas suas que antes vimos, sempre em seguro crescendo. Sem um formulário alheio e colectivo, sem um código oferecido ou previsível, secretas mas explícitas, enfrentamos cada pintura (diferentes também nos formatos, nos suportes e nos materiais) como um acontecimento a explorar sem mapa ou agenda.
Esta pintura "diz", mostra, mas não saberemos o que ela narra. “Release the chicken!” / Soltem as galinhas!, o título, é um desafio - não perguntarei o que significa (Soltar a franga vem no dicionário - fui depois ajudado). São espaços onde acontecem "coisas", onde acontecem imagens com títulos mais ou menos precisos e descritivos (Eden, Floresta Vermelha/The Red Forest, Familia de Patos/Duck Family, etc) que reflectem o que vemos sem "explicar" o que vemos - são uma discreta chave para seguirmos por aí a percorrê-los.
Agora E.M. afasta-se da referência fotográfica que se reconhecia em pinturas anteriores como aparente transcrição de apropriações fotográficas, em versões irónicas de consumos vários, para tornar mais enigmática a desconhecida origem de cada obra - donde vêm estas imagens de imaginação, e que importa a dúvida? Que vemos nestas imagens? - e aqui não há que fugir ao que se nos oferece. Não se trata de reconhecimento de imagens prévias, mas de surpreender a sua invenção, são paisagens, e de percorrer espaços povoados com figuras onde a matéria do óleo, preciosa e rude, leve ou densa, se dá a ver em diferentes superfícies e respectivas preparações sobre tela, cartão, esmalte - quase sempre de pequeno formato, o que as torna mais íntimas, mais cúmplices. A cores, sempre intensas, fluidas ou firmes, são cores imaginadas.
São lugares (Eden, Floresta Vermelha, Palmeiras/Palm Trees), que não pretendem ser “vistas” e descrições, e são presenças. E são acções, episódios surpreendidos, suspensos, onde se partilham o enigma e o humor (Família de patos, A Carruagem/The Carriage, Mar alto/Open Water), também paisagens diversas de uma geografia (e um tempo) a adivinhar: o mapa e a cronologia não têm guia. Num caso único a artista actualiza - ilumina com uma luz de incêndio - a visão da Descoberta da América pelo pintor e viajante alemão J.M. Rugendas, Inspired by the painting ‘Discovery of America’ (de 1820-29, séculos depois, séculos antes; é uma pintura colonial e E.M. vem de Maputo...) Não está longe a cor onírica da Floresta Vermelha e de Welcome.
As exposições de pintura, ou fotografia, são em geral a sequência de uma obra única, através de variações, continuidades, sucedâneos, que nas melhores hipóteses se vêem como um filme, um romance, uma série. Aqui, na diversidade dos lugares singulares de cada quadro, de cada paisagem e de cada episódio, penso num livro de contos ou short stories. Tudo recomeça página a página, invenção a invenção, surpresa a surpresa, sem que se disperse ou confunda o mundo original que aqui se mostra.
Galeria Monitor / Monitor Art Gallery, Rua da Páscoa 91 - Rua do Sol ao Rato 41. Até dia 22 junho
Floresta de vermelhos, e o chão também, mais do que castanho, mar amarelo/verde, céu roxo/violeta. Percorre-se um quadro, mesmo que seja de pequeno formato. A contemplação é activa e pode ser interminável. Interroga-se um quadro. A imagem, a superfície pictórica, material, e o título também, quando existe, já passado o século dos “sem título”. Interpreta-se, mesmo que a procura de sentidos e as pistas interrogadas não devam substituir-se à presença imediata da obra, à sua intensidade visível fulgurante, imagem e matéria. Há que suster as elucubrações.
The Red Forest lembra-me Friedrich, um pequeno vulto solitário na paisagem, diante e dentro da paisagem, visto certamente de costas, numa mancha única e pouco definida, diante do mar e do céu. Friedrich, mas hoje não precisamos de chamar Metafísica ao que é pensar a vida, a existência, a identidade própria. (Há sobre a linha do mar (linha do horizonte, chão do palco) uma sombra sugerida, talvez outro vulto à distância que pode ser um desdobramento do primeiro vulto, que assim se observa a si mesmo, ou se vê como um espelho, ou com quem pode estabelecer um diálogo ou só a respectiva promessa. Não sabemos).
O vulto (quase quase) central assenta num rochedo que o mar amarelo-verde contorna, como a foz de um rio, num amarelo solar, uma fenda de lava, que rasga até aos bordos o espaço inferior do quadro. A certa altura lembrei-me da pequena sereia de Copenhaga, a partir de um conto de H.C. Anderson - é também uma figura meditativa, feminina essa, e por aí o conto e o escritor prestam-se a leituras psicológicas que aqui podem ser dispensadas. Fui sondar as mulheres solitárias de Vilhelm Hammershøi, outro dinamarquês, mas são quase sempre interiores, presentes de pé e de costas - não é o caso.
A floresta é vermelha e este é o nome (procuro no Google*) da floresta contaminada de Chernobyl - não será por acaso, é uma referência possível para esta floresta irrealista, incendiada mas não queimada, de facto vibrante e onde permanecem pequenas manchas vivas de verde, iluminada a fogo, como será (adiante, depois do pequeno vermelho Welcome na passagem entre espaços da galeria) a pintura relativa à Descoberta da América a partir de Rugendas. Por aí, lembrando Chernobyl, esta é uma pintura de actualidade, de intervenção, de alerta, não romântica.
Mas a floresta que rodeia o mar/rio e a pequena personagem fecha-se no topo, envolve o espaço aberto e este vê-se como um céu e ao mesmo tempo como espaço de teatro, um palco, um pano de cena. Estamos diante do palco, espectadores num teatro à italiana, dentro da paisagem, ou vemos diante de nós, ao contrário, desde o fundo central, de uma galeria “abstracta”, a cena aberta, o espectáculo, sugeridos. E a cortina (e/ou céu) quase roxa é uma superfície animada, que vibra e ondula, preenchida pela pincelada visível, por escorridos, empastados, transparências, vestígios de formas. Parede e horizonte. Estamos como espectadores dos dois lados da cena-paisagem desenhada pela cor. Vemos e viajamos. O pequeno formato, o bastante, íntimo, o óleo brusco e leve à superfície da tela.
The Red Forest 2024 óleo / tela 41 x 33 cm
* que já ajudou a pensar o título “Release the chicken!” (Soltem as galinhas - Soltar a franga...)