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Antes de 60, até 63
Deve notar-se a abrir a apresentação de “Revoluções 1960-1975” que não é a mudança de década que estabelece fronteiras dentro da pintura de Júlio Pomar. A saída do neo-realismo manifestou-se em quadros singulares e incompreendidos como O Baile e Circo, duas festas urbanas nitidamente tristes (1955). “J. P.... que converteu o Baile num verdadeiro ‘sabatt’ observa as projecções das ruas de Lisboa [Rua de Lisboa, Catálogo Raisonné (CR) nº 121] e sabe ainda arrancar à vida humana, em traços fortes, todos os seus reflexos.” Artur Portela Filho (P. F.), III Exposição Colectiva de Artistas Portugueses, Galeria Pórtico. Diário de Notícias (DN), ?-11-1954.
** Circo, 1º salão dos Artistas de Hoje, SNBA 1956.
Tal acontecia logo depois de um período mais intensamente militante, de 1951 a 54, de que Marcha e os Estudos para o Ciclo ‘Arroz’ são expressão mais forte, a par de encomendas decorativas em colaboração com os arquitectos Conceição Silva ou Victor Palla e Bento de Almeida (vitrais da Igreja da Pontinha, na Amadora, painéis para o Restaurante Vera Cruz), e também a par de pequenas paisagens intimistas (Azenhas do Mar, Ericeira): são três linhas de trabalho simultâneas e diversas, quando os quadros ainda não se vendiam.
O neo-realismo não tivera nenhum resultado prático, disse Pomar em 1955. «De resto, não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função, refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público» (entrevista DN 22-9-55). Acabavam por esse tempo as Exposições Gerais, já trocadas por novas colectivas na Galeria Pórtico, em 1954, dinamizada por uma nova geração, e na SNBA, o Salão dos Artistas de Hoje em 1956, com a Fundação Gulbenkian a gerar novas oportunidades e expectativas. Era um tempo de mudança, em ruptura com a herança de 1945.
Houve para Pomar, entretanto, hesitações paisagísticas: Lisboa vista do 4º andar da Rua da Alegria, para onde se mudara com Alice Jorge, mas também revisitações mais ou menos realistas “modernizadas” - breve série Astúrias, 1957-59, da viagem de carro até Paris, por Altamira, com Manuel Torres; e pescadores da Fonte da Telha, 1959, a praia, sempre. Mas logo esses últimos anos da década foram marcados por meia dúzia de pinturas de grande ambição e sucesso, que surpreendiam em mostras colectivas, para as quais o próprio artista e alguma crítica apontavam a procura de um desígnio ibérico, conjugar Goya e Columbano, uma fase “negra”.
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José-Augusto França escrevera em 1955: “O grupo neo-realista (...) com tais composições, dum realismo sobretudo de tipo magazinesco, parece estar a lograr as sensíveis e honestas promessas que há dez anos fizera” (Exposição de Pintura Moderna Portuguesa, Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, organizada por Rui Mário Gonçalves, ver “Comércio do Porto” 12-04-55; in Da Pintura Portuguesa, Ática 1960, p. 169 - esta é uma importante antologia de artigos nunca reeditada).
A apreciação mudou em 1958: “O quadro de Júlio Pomar [Lota], curiosamente absorvido por valores picturais abstractos, desejando uma genealogia em que Goya e Columbano se encontram de má vontade, involuntariamente se aproxima dum Lanskoy, cuja arte, suponho, o pintor ignora e nisso se realiza como obra de muito interesse e de notável qualidade. O «moderno”, insólito em Pomar, e consciente em Daciano...” (sobre o 1º Salão de Arte Moderna, “Colóquio” nº 1, janeiro 1959; op. cit. p. 206)
Segundo Artur Portela Filho, então crítico activo, “Pomar surge truculento, maciço, crispado. As suas duas largas telas <ou só a Lota?>, de temática populista e atmosfera poética, são uma prova esmagadora que estamos perante um dos artistas mais profundamente portugueses. (...) Pomar tem um forte sentido telúrico e o dramatismo dos seus climaas não exclui, antes acentua, contrapontiza, sublinha, uma poesia cheia de vibração e de intensidade. Pomar estilhaça os limites de uma estética semi-oficializada com galo de Barcelos, Sol e Tejo. Cria uma humanidade onde há um a angústia riscada de gritos e risadas e de uma troça orgulhosa e livre.” Diário de Lisboa (DL) 18-10-58
J. A. França em 1959: «Pomar vai firmemente e com extrema qualidade pictórica no caminho que o víramos no Salão Moderno da SNBA, aceitando já em perfeita consciência valores abstractizantes que o próprio ritmo do pintar lhe impõe. O encontro de Goya e de Columbano do seu ‘projecto’ é agora absorvido, reelaborado interiormente com uma ‘fugue' que a pintura portuguesa não iguala» (“50 Artistas Independentes”, “Comércio do Porto”, 23-06-59; op. cit., p. 211 - expunha Cegos de Madrid e Cena no Cais, este levado à 2ª Exposição de Pintura Moderna, promovida pelo Grupo Desportivo e Cultural da “Cuca”, em Luanda, com catálogo prefaciado por Manuel Vinhas).
Portela Filho, sobre Cegos de Madrid: “J.P. ainda goyesco no gesto largo, validamente retórico, trágico, expressionista, atinge uma força que não se encontra em qualquer outro artista na pintura portuguesa. Dir-se-á que ele não é um autêntico pintor português e que chega a ser, pela qualidade e ‘quantidade’ de pintura, pela linguagem, pelo tema, um pintor espanhol”, DL 15-6-1959.
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A anterior individual de pintura datava de 1951 e a seguinte é só de 1962 - um longo hiato de visibidade, não de trabalho, mas na época os Salões apresentavam as novas obras periodicamente (eram uma oportunidade que depois se combateu e extinguiu, perdendo-se o largo público interessado). Datam de 1957 a 1960, e estabelecem um dos patamares mais elevados na longa carreira, os quadros Maria da Fonte, Lota, o referido Cena no Cais (depois oferecido por Champalimaud para o previsto Museu de Arte Moderna de Luanda, e lá ficou, invisível, ao que se sabe) e também Cegos de Madrid?, Cena na Praia, O Carro das Mulas (estes três últimos agora expostos), mais o grande Estaleiro que respondeu a encomenda para o paquete Infante D. Henrique (agora no Museu da Marinha - “entre os objectos mais belos desta minha terra, do Pintor, da Arte Portuguesa: uma reivindicação de grandeza, um magnífico acto de resistência, pois a verdadeira Beleza é incompatível com a opressão” - escreveu Ernesto de Sousa, na monografia citada).
Coexistem com as 30 ilustrações pintadas a preto e branco, seis gravuras, quatro esculturas de ferros soldados (veja-se Guerreiro) e seis pinturas relativas a Dom Quixote, então traduzido imaginativamente por Aquilino Ribeiro, ed. Bertrand 1960 (D. Quixote e os Carneiros e outro Quixote expatriado e inédito expõem-se agora). É um primeiro capítulo literário da sua pintura de imaginação que mereceu logo pequena exposição própria na Galeria Gravura naquele ano - regressará a Cervantes em 2005 para ilustrar uma nova edição, do “Expresso”. Surgem igualmente os primeiros Touros em gravura e no quadro de 1960, Touro, oferecido a Alves Redol, como peças do vasto Bestiário e já “Tauromaquias”.
Esses anos contaram com as duas Exposições Gulbenkian de 1957 (Maria da Fonte) e 1961 (Pega, CR nº 188; Cavaleiro e Touro, nº 190; D. Quixote e os Moinhos, nº 197; Debulha, nº 205; a escultura em ferro D. Quixote II, nº 177), onde obteve respectivamente Prémios de Gravura e de Pintura, sempre ex-aequo. Seguem-se as duas individuais na Galeria DN) em 1962 e 63, já como continuidade e reconhecida maturidade, com forte notoriedade pública e crescente tensão por parte da crítica instituída. Prolongam e diversificam os exercícios de observação de figuras e de situações que estão praticava com um dinamismo gestual a conviver com a abstractização dos motivos: cenas de trabalho, espectáculos populares e públicos (as “Tauromaquias”, e também Casamento e Procissão), paisagens, sargaceiros, os grupos de Marrocos em 63, pintura de realidades vistas. Pintura de observação e também de viagem.
Artur Portela sobre Maria da Fonte: “Pomar é uma explosão de potencialidades. Artista total, personalidade variada, com um conhecimento absoluto e espantoso do seu mister, pintor de convulsões expressionistas, desenhador admirável, com provas de gravura invulgares, é uma das maiores afirmações deste certame. (...) é uma larga, uma imensa, uma movimentada e atormentada tela, povoada por uma humanidade goyesca de tons sombrios e surdos que não lhe apagam a vida, que pulsa, palpita e ascende aqui à pureza do símbolo”. DL 11-12-57
Evolui procurando sugerir o movimento das figuras com pinceladas rápidas os temas adaptam-se a uma figuração fragmentária, descontínua e repetitiva RMG, BB
A forte notoriedade mediática circula nos diários da época, atentos e influentes:
1962, exposição na Galeria DN: “J. P. lírico e telúrico, dramático e irónico”, por Manuela de Azevedo, não assinado, DN 20-5-62: “Onde parece exprimir-se o lirismo gritante de um Kandinsky. (...) Uma luta de primazias entre o abstracto, o figurativo e, até, o impressionismo. (...) Desta pequena galeria - Pomar é preguiçoso, não quer banalizar-se ou é lento na fecundação artística? - o jovem e consagrado pintor pode afirmar que, através de uma liberdade quase sem limites... se tiram sempre efeitos novos e imprevistos.
1963, exposição na Gal. DN, crítica de Fernando Rau (R.): "Movimento e cor na pintura de J.P. em vésperas de partida “, DL 10-10-63 : “o artista está em plena forma criadora e transmite-nos momentos de verdadeiro prazer a contemplação da sua pintura vigorosa nas cores, no movimento e na força anímica que irradiam todos os seus quadros.”
Ou “Sangue arena na expressão fremente da arte de Pomar”, Manuela de Azevedo, DN 10-10-63.
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As pinturas tinham deixado de ser neo-realistas, mas eram de qualquer modo documentárias, mesmo se especialmente se equacionavam, e o artista sublinhava, as questões formais. Trocavam pela densidade e teatralidade pictural a reconhecibilidade descritiva da mensagem; o “intenso dramatismo” era referido, a “inspiração espanhola” (Adriano de Gusmão, 1957). Eram motivos de espectáculos vistos, cenas observadas, registos circunstanciais e ao mesmo tempo questionamentos formais. Pintura descritiva, talvez mesmo pintura de reportagem, mesmo se o peso do formalismo tardo-moderno reinante obrigava a negá-lo: Interessam-lhe, diz, “todos os espectáculos em que os sentidos se completam, em que a imagem é múltipla: multidões, praias de pescadores, fainas de campo, mercados, as grandes cidades e, naturalmente as corridas de touros. O que se agita, move, transforma.” (entrevista de Maria Lamas em Paris, DL 5-3-64, ). “A pintura (não) me interessa como arte de reportagem” dirá já por ocasião dos Tigres (1980), em obediência ainda com o “modernismo” que desvalorizava o assunto. O que mudaria com os ciclos literários tardios.
O abstraccionismo ia-se tomando como uma fatalidade universal, imposição da crítica dominante, mas Mário Dionísio e Nikias Skapinakis valorizavam possíveis diálogos com a figuração (na época Pomar não escreve, pinta): “Nos dias de hoje, abstraccionismo e tendência realista buscam-se, aparentam-se, interpenetram-se, elaboram demorada mas manifestamente a sua síntese” (M.D., Conflito e unidade da arte contemporânea, conferência integrada na 1ª Exposição Gulbenkian, 1957, ed. Casa da Achada 2015, p. 50). “Júlio Pomar superou a crise do neo-realismo (...) Define essa superação, que me parece total no caso das gravuras, uma conciliação entre a necessidade ideológica do neo-realismo e o entendimento de uma lição formal abstractizante. O que portanto se transfere do neo-realismo, paralisada a sua tentativa de aprofundamento do real, é a necessidade de encontrar uma figuração que de novo, e actualizadamente, reintegre o real no quadro” (N.S., Modernos Figurativos Portugueses, conferência de 29-01-1959 na SNBA, ed. Separata de “Arquitectura”, 1959, p. 10)
Figuração-abstracção, figuração-desfiguração, são tópicos críticos do tempo com que o pintor se confronta: “Claro que é o movimento que fundamentalmente me interessa. Enquanto que nas Tauromaquias o problema era o de uma síntese de movimentos contrários, agora [nas Corridas] trata-se de um movimento de trajectória única” (carta de junho de 64*).
Ernesto de Sousa, na primeira monografia (Júlio Pomar, ed Artis, 1960, p. 11) escreve que “um encontro se tornava necessário com as técnicas da abstracção: para destruir os quadros materiais do espectáculo”. Fala de “equilibrio instável” (...) do “encontro de um espaço dramático, na sua raiz tradicional ibérica, com uma temática.” “Alguns dos quadros das Tauromaquia atingem um clímax de riqueza dramática, comparável aos exemplos mais altos da pintura ibérica”. Abria o ensaio com uma declaração forte: “Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva e Amadeu Sousa Cardoso são três nomes cardinais para a compreensão da pintura portuguesa dos nossos dias”.
Alguma recepção crítica que viria a ser dominante, dominadora, e sempre formalista, então facultada nas revistas, era ditada pelas questões da conflitualidade entre figuração «naturalista» e abstraccionismo, que persistiram em Portugal até tarde, ora se valorizando as vias da possível síntese com a abstração, ora se supondo fatalmente necessária a desaparição da figura e do referente, do assunto. Na lógica de uma pintura «pura», defendida como colectivo estilo moderno, contrária às novas figurações que se procuravam, saudavam-se o informalismo gestual e os valores abstractos, mas supunha-se dever suceder-lhes o abandono das referências ao mundo visível. “Evolução gestual e abstractrizante”, “uma esgrima de pincelada habilíssima” (J.A. França 1984).
Rui Mário Gonçalves, 1962: “numa linguagem que, não sendo a dum pintor abstracto, nada deve, porém, a essa imagem antiga da realidade, que o academismo pretende manter.” “um período de libertação dos elementos da sua linguagem: o grafismo e a cor”. “o apoio na realidade visível mantém-se”. “Toda a pintura é fundamentalmente uma especulação sobre o espaço” (“Jornal de Letras e Artes”, 06-06-1962)
Nelson di Maggio 1965: “adverte-se uma concessão excessiva ao bom gosto burguês que debilitam a rotundidade e a força da sua mensagem. De facto, a sua pintura tem enveredado pelo aspecto mundano e agradável”. “Flama”, 25-02-1965
Idem 1966: “Pomar passou a «actualizar a sua linguagem a partir das conquistas dos vanduardistas abstractos, mas sem se atrever a encarar metódicamente o problema da renovacão estrutural». como escreveu Rui Mário Goncalves”. “Em definitivo o que lhe interessa é reconstituir uma realidade passada, contar uma anedota, mais ou menos disfarçada pela dinâmica irradiacão da composição. O autêntico criador de formas está ausente. E o que se evidencia ostensivamente é o pintor sensível, agradável e superficial, para contentar o gosto de uma burguesia cómoda e satisfeita. Como Boldini no século passado. Todas as telas estão muito bem resolvidas e calculadas. Quem poderia ficar indiferente? Quem poderia deixar de sentir um santimento fruitivo?” (“Alla maniera di Boldini”, “Jornal de Letras e Artes” 16-02-1966)
Fernando Pernes 1966: “figurativismo desenvolto”; “uma estética do compromisso entre a aceitação do modelo convulsionado e a acção sobre ele instaurável”; “estilizações de uma realidade apriorística mas, por necessário ajuste, tomada nos seus aspectos mais movimentados”; “Pomar veio a alhear-se do existente dramático para desembocar numa temática mundana e espectacular, sempre habilmente transposta em telas resolvidas com acerto e de menor ambição” “Colóquio” nº 38, 1966; in Dizer a Imagem, ed Serralves 2015, p. 45-46.
Haveria por consequência «uma hesitação estética» e «uma íntima contradição expressiva», um debate não resolvido «entre um compromisso figurativo e uma vontade de expressão directa», argumentos muito repetidos que em geral se prolongavam no reconhecimento ambíguo de uma «espantosa habilidade oficinal». argumentos que se prolongavam no tema do virtuosismo, usado como arma de arremesso. O mercado privado crescia no início dos anos 60 e a crítica encartada associava o sucesso galerístico à satisfação do gosto burguês.
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