15-09-24 notas rápidas reunidas e ± revistas
No primeiro quadro à esquerda na sala principal da galeria lê-se Audácia na base de uma das duas pequenas esculturas pintadas e tomadas a Degas (La petite danceuse de 14 ans). As letras são invertidas no espelho, A I C A D U A, mas o título "Natureza Barroca (Audácia)" não engana [33x31,5 cm a acrílico e óleo sobre óleo, já está vendida].
Audácia é a palavra chave para referir as novas pinturas da Ana Mata, que continuam e renovam a audácia, a coragem, a determinação, o risco, a aventura, a qualidade pictural, que se conhecem das suas anteriores exposições na Módulo.
Continua a ser um choque exaltante, uma surpresa grata esta pintura, em três grandes formatos de flores e figuras na paisagem e depois em pequenas composições de flores, paisagens rurais, cenas domésticas ou não, mas sempre de intimidade pessoal e/ou próxima. Onde agora se reconhece e admira um diálogo explícito com obras do passado que continua a ser presente, e também com com géneros e interesses que circulam no tempo até hoje.
Há alguns meses maio/junho 24 descobri Nathanaëlle Herbelin no Museu de Orsay, onde a figuração se desdobrava em figuras de amigos e cenas de interiores, renovando os pintores que a ladeavam nas galerias, Bonnard e Vuillard, com quem aprendia e dialogava e competia, e agora é Ana Mata que está à mesma altura audaciosa e desafiadora na exposição da 111 - merecia ser vista lá fora, em vez de tudo ser absorvido por um mercado nacional voraz.
Traçar paralelos, ou coincidências, que neste caso não são influências, parece-me oportuno. Os artistas não vivem em bolhas, coexistem, por vezes enfrentam as mesmas questões e afrontam ambições aparentadas.
Desde ontem (já pronto o texto para o catálogo da exp. do Atelier-Museu “Revoluções 1960-1975”. que não vejo outra coisa. Só a pintura da Ana Mata na 111)
É preciso ver in loco, ao vivo (estar vivo é uma qualidade da boa pintura, e tb da natureza morta, “still life”). De perto e de longe, com o corpo em movimento (a boa pintura é uma questão de corpos, do pintor e do observador).
Audácia podia ser o nome da exp (mas seria óbvio e pretencioso?) É de um grande desafio q aqui se trata, com riscos mas já com experiência certa. É uma aventura pelos terrenos do museu e da arte contemporânea. Presente e passado redivivo, (re)encontro vital, de vidas, de gente.
Cito frase destacadas de relatórios de bolseiro de Júlio Pomar que vão incluir o referido catálogo.
“Do corpo a corpo do espectador com a obra se recria esta, e aquele, e o mundo em que ambos se situam." (JP, Relatório de Bolseiro Maio 1966
"O espectador imóvel é um mito ou uma ilusão; percorre-se a pintura da mesma maneira que se toma posse de um corpo, de uma praia, da floresta." Idem
"A obra de arte é uma obra em aberto: a pintura funciona como uma janela para o imaginário, como a introdução, num espaço real, de um espaço inventado e a re-inventar pelo espectador." Relatório fevereiro 1966.
Fica por reflectir sobre o título "Ninfas e Faunos", que dá uma orientação clássica e também erotizada à exp. É Courbet, com esse título, que está actualizado / apropriado numa tela de AM. E falta em especial seguir as referências e/ou citações a géneros e obras do passado que trazem estas pinturas (e os seus "modelos") para o presente.
2. Mais:
A Ana Mata lembra-me o João Francisco (n. 1984, Torres Vedras), por via da natureza morta e das flores, também pela integração de desenhos e objetos na composição das naturezas-mortas. Os bons quadros lembram outros quadros, sugerem coincidência, interesses convergentes ou paralelos, que não são influências. É outro grande pintor que a 111 tem apresentado e de quem espero ver novos trabalhos. Tive depois a sorte de o encontrar ali mesmo (é o artista de quem comprei mais trabalhos, desde há muitos anos, e não sou coleccionador,; escrevo diante de 7 das suas obras e obrinhas). Em 2008 realizou a sua primeira exposição individual "O Arqueólogo Amador (e outras naturezas mortas)" na Galeria 111 em Lisboa. A mais recente na 111 foi "mille-fleurs" já de 2018.
(https://111.pt/exposicoes/mille-fleurs/)
A Ana Mata lembra-me a Nathanaëlle Herbelin (Israel 1989 / França) que fui ver em Março a Paris, no Museu d'Orsay. É muito diferente, claro (não me venham falar de uma nova vaga de pintores figurativos, quando eles sempre continuaram, ± apagados pelo mercado das "novidades" na lógica dos consumos que substituíram ou, melhor, continuaram as chamadas vanguardas, de interesse para o mercado especulativo e institucional - o que é a mesma coisa). O auto-retrato, o corpo no espaço interior e doméstico ou exterior, a relação próxima com os modelos, alguma vegetação, etc, convergem discretamente com Ana Mata. Em 2022 fez uma breve residência em Lisboa, não soube. http://www.nathanaelleherbelin.com/
A propósito duas notas:
1. Desagrada-me que se nomeie um comissário ou curador nas exp individuais de galeria. Como agora acontece. Esse é o papel do galerista em cumplicidade com o artista. O “curador” não vai lá fazer nada, às vezes escreve um texto que é em geral ilegível e pretensioso.
2. A Módulo do Mário Teixeira Silva e a 111 foram ou têm sido mantidas à margem da circulação institucional, por características pessoais idiossincráticas dos galeristas e por maquinações das chamada galerias "leader" que estabelecem os links vantajosos com o mercado oficial, institucional, fundacional e corporate, e portanto com a programação dos museus, com três ou quatro comissários e e meia dúzia de coleccionadores com que se articulam, num trânsito malicioso e também corrupto. Seria possível dar exemplos dos raros que esse mercado admitiu (Batarda) e dos que ficaram sistematicamente de fora até abandonarem essas duas galerias. Isso passou por exemplo pela exclusão do Arco de Madrid e Lisboa.
É certo que as galerias (a Módulo a partir de certa altura) descuraram a circulação internacional, que tb passa muitas vezes por trocas pouco sérias, ou não (eu exponho-te um e tu metes um nosso). As galerias, algumas galerias, privilegiam o seu pequeno mercado envolvente, doméstico, e não levam lá fora, não querem que as obras saiam do país, preferem satisfazer os seus clientes certos, em vez de apostarem no mercado internacional, de abrirem caminhos. Aliás, e pelo contrário, também procuraram absorver a produção dos que viviam fora, em vez de apoiaram a circulação internacional. Foi essa uma das marcas negativas de Manuel de Brito. Os directores dos maiores museus, Serralves e Gulbenkian, além de serem ignorantes e desinteressados do que não são os seus interesses e dos seus círculos, têm sido cúmplices dessas estratégias de ocultação dos independentes. Acontece que o meio rodouu à volta de 2 ou 3 artistas (Sarmento e Cabrita; Vasconcelos e também Chafes são casos à parte, que correm por si), e que foram intencionalmente rodeados por artistas menores para criar a imagem da diversidade, mas excluindo os melhores que podem fazer sombra.
https://anamata.pt/
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