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Posted at 11:31 in 2024, Acarte, CAM, Gulbenkian, Museus, Sommer Ribeiro | Permalink | Comments (0)
Tags: Acarte, Azeredo Perdigão, CAM, Madalena Perdigão, Sommer Ribeiro
Este novo director quer lá saber do museu... Brincar aos emergentes é q dá pica e permite intervir directamente no mercado, cultivar rodas ou redes de amigos / friends, trendy. Os emergentes deixam de o ser rapidamente, vão rodando às pazadas, gastam-se como os produtos da moda e do marketing, mas eles estão lá só para as promoções. Os directores identificam-se com os centros comerciais e a publicidade - também eles são de desgaste rápido, mas gastam tempo e dinheiro, e desvalorizam o que se chama ainda arte. Este veio da corte do Todolí, o homem que continua a mandar por cá, porque há quem goste de ser mandado.
"Centrado nos artistas, o novo CAM, diz Weil, será fiel à sua missão original de salvaguarda dos artistas emergentes nacionais*, mas abraçará as necessidades dos novos públicos. O objetivo é que todos possam “viver o poder transformador da arte”. Com diferentes pontos expositivos, da nave à galeria da coleção, das reservas visitáveis à sala de desenho, da sala de som, do estúdio ao espaço projeto, o CAM oferecerá uma programação mais eclética e variada. Haverá uma programação para a arte sonora, haverá vídeos disponíveis on demand através de um ecrã tátil com 16 opções situado na H Box, uma sala de vídeo itinerante, haverá exposições de peso a partir de uma carta branca dada a um artista que além da sua obra selecionará trabalhos de artistas da coleção com os quais pretenda dialogar, na medida de duas cartas brancas por ano, e haverá exposições permanentes da coleção, haverá mais experimentação e apresentação de novos formatos de arte, e exposições, três por ano, de artistas emergentes ou pouco conhecidos em Portugal. Tudo isto permitirá “vários ritmos de visita que podem oscilar entre os dez minutos ou as duas horas”, explica o diretor do CAM, o que tem como finalidade que o público possa “incluir a experiência da arte na vida quotidiana”, e que possa entrar, estar e comprar bilhete se quiser, dependendo do seu tempo e dos seus interesses."
Observador, artigo promocional.
* "missão original de salvaguarda dos artistas emergentes nacionais" é falsa conversa.
** “viver o poder transformador da arte” é só um slogan barato para a CS copiar.
O Observador tem a obrigação de ser um jornal conservador, mas com a arte já ninguém se entende, é só fachada às cores.
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Posted at 15:13 in 2024, CAM, Gulbenkian, Polemica, politica cultural | Permalink | Comments (0)
15-09-24 notas rápidas reunidas e ± revistas
No primeiro quadro à esquerda na sala principal da galeria lê-se Audácia na base de uma das duas pequenas esculturas pintadas e tomadas a Degas (La petite danceuse de 14 ans). As letras são invertidas no espelho, A I C A D U A, mas o título "Natureza Barroca (Audácia)" não engana [33x31,5 cm a acrílico e óleo sobre óleo, já está vendida].
Audácia é a palavra chave para referir as novas pinturas da Ana Mata, que continuam e renovam a audácia, a coragem, a determinação, o risco, a aventura, a qualidade pictural, que se conhecem das suas anteriores exposições na Módulo.
Continua a ser um choque exaltante, uma surpresa grata esta pintura, em três grandes formatos de flores e figuras na paisagem e depois em pequenas composições de flores, paisagens rurais, cenas domésticas ou não, mas sempre de intimidade pessoal e/ou próxima. Onde agora se reconhece e admira um diálogo explícito com obras do passado que continua a ser presente, e também com com géneros e interesses que circulam no tempo até hoje.
Há alguns meses maio/junho 24 descobri Nathanaëlle Herbelin no Museu de Orsay, onde a figuração se desdobrava em figuras de amigos e cenas de interiores, renovando os pintores que a ladeavam nas galerias, Bonnard e Vuillard, com quem aprendia e dialogava e competia, e agora é Ana Mata que está à mesma altura audaciosa e desafiadora na exposição da 111 - merecia ser vista lá fora, em vez de tudo ser absorvido por um mercado nacional voraz.
Traçar paralelos, ou coincidências, que neste caso não são influências, parece-me oportuno. Os artistas não vivem em bolhas, coexistem, por vezes enfrentam as mesmas questões e afrontam ambições aparentadas.
Desde ontem (já pronto o texto para o catálogo da exp. do Atelier-Museu “Revoluções 1960-1975”. que não vejo outra coisa. Só a pintura da Ana Mata na 111)
É preciso ver in loco, ao vivo (estar vivo é uma qualidade da boa pintura, e tb da natureza morta, “still life”). De perto e de longe, com o corpo em movimento (a boa pintura é uma questão de corpos, do pintor e do observador).
Audácia podia ser o nome da exp (mas seria óbvio e pretencioso?) É de um grande desafio q aqui se trata, com riscos mas já com experiência certa. É uma aventura pelos terrenos do museu e da arte contemporânea. Presente e passado redivivo, (re)encontro vital, de vidas, de gente.
Cito frase destacadas de relatórios de bolseiro de Júlio Pomar que vão incluir o referido catálogo.
“Do corpo a corpo do espectador com a obra se recria esta, e aquele, e o mundo em que ambos se situam." (JP, Relatório de Bolseiro Maio 1966
"O espectador imóvel é um mito ou uma ilusão; percorre-se a pintura da mesma maneira que se toma posse de um corpo, de uma praia, da floresta." Idem
"A obra de arte é uma obra em aberto: a pintura funciona como uma janela para o imaginário, como a introdução, num espaço real, de um espaço inventado e a re-inventar pelo espectador." Relatório fevereiro 1966.
Fica por reflectir sobre o título "Ninfas e Faunos", que dá uma orientação clássica e também erotizada à exp. É Courbet, com esse título, que está actualizado / apropriado numa tela de AM. E falta em especial seguir as referências e/ou citações a géneros e obras do passado que trazem estas pinturas (e os seus "modelos") para o presente.
2. Mais:
A Ana Mata lembra-me o João Francisco (n. 1984, Torres Vedras), por via da natureza morta e das flores, também pela integração de desenhos e objetos na composição das naturezas-mortas. Os bons quadros lembram outros quadros, sugerem coincidência, interesses convergentes ou paralelos, que não são influências. É outro grande pintor que a 111 tem apresentado e de quem espero ver novos trabalhos. Tive depois a sorte de o encontrar ali mesmo (é o artista de quem comprei mais trabalhos, desde há muitos anos, e não sou coleccionador,; escrevo diante de 7 das suas obras e obrinhas). Em 2008 realizou a sua primeira exposição individual "O Arqueólogo Amador (e outras naturezas mortas)" na Galeria 111 em Lisboa. A mais recente na 111 foi "mille-fleurs" já de 2018.
(https://111.pt/exposicoes/mille-fleurs/)
A Ana Mata lembra-me a Nathanaëlle Herbelin (Israel 1989 / França) que fui ver em Março a Paris, no Museu d'Orsay. É muito diferente, claro (não me venham falar de uma nova vaga de pintores figurativos, quando eles sempre continuaram, ± apagados pelo mercado das "novidades" na lógica dos consumos que substituíram ou, melhor, continuaram as chamadas vanguardas, de interesse para o mercado especulativo e institucional - o que é a mesma coisa). O auto-retrato, o corpo no espaço interior e doméstico ou exterior, a relação próxima com os modelos, alguma vegetação, etc, convergem discretamente com Ana Mata. Em 2022 fez uma breve residência em Lisboa, não soube. http://www.nathanaelleherbelin.com/
A propósito duas notas:
1. Desagrada-me que se nomeie um comissário ou curador nas exp individuais de galeria. Como agora acontece. Esse é o papel do galerista em cumplicidade com o artista. O “curador” não vai lá fazer nada, às vezes escreve um texto que é em geral ilegível e pretensioso.
2. A Módulo do Mário Teixeira Silva e a 111 foram ou têm sido mantidas à margem da circulação institucional, por características pessoais idiossincráticas dos galeristas e por maquinações das chamada galerias "leader" que estabelecem os links vantajosos com o mercado oficial, institucional, fundacional e corporate, e portanto com a programação dos museus, com três ou quatro comissários e e meia dúzia de coleccionadores com que se articulam, num trânsito malicioso e também corrupto. Seria possível dar exemplos dos raros que esse mercado admitiu (Batarda) e dos que ficaram sistematicamente de fora até abandonarem essas duas galerias. Isso passou por exemplo pela exclusão do Arco de Madrid e Lisboa.
É certo que as galerias (a Módulo a partir de certa altura) descuraram a circulação internacional, que tb passa muitas vezes por trocas pouco sérias, ou não (eu exponho-te um e tu metes um nosso). As galerias, algumas galerias, privilegiam o seu pequeno mercado envolvente, doméstico, e não levam lá fora, não querem que as obras saiam do país, preferem satisfazer os seus clientes certos, em vez de apostarem no mercado internacional, de abrirem caminhos. Aliás, e pelo contrário, também procuraram absorver a produção dos que viviam fora, em vez de apoiaram a circulação internacional. Foi essa uma das marcas negativas de Manuel de Brito. Os directores dos maiores museus, Serralves e Gulbenkian, além de serem ignorantes e desinteressados do que não são os seus interesses e dos seus círculos, têm sido cúmplices dessas estratégias de ocultação dos independentes. Acontece que o meio rodouu à volta de 2 ou 3 artistas (Sarmento e Cabrita; Vasconcelos e também Chafes são casos à parte, que correm por si), e que foram intencionalmente rodeados por artistas menores para criar a imagem da diversidade, mas excluindo os melhores que podem fazer sombra.
https://anamata.pt/
Posted at 23:34 in 2024, Ana Mata, Galeria 111 | Permalink | Comments (0)
Para Manuel Torres, Manuel Vinhas, Jorge de Brito, amigos e coleccionadores, e também José Sommer Ribeiro
De uma maneira geral trabalho sem custo, pelo menos oito horas por dia, e isso porque consegui uma fusão de trabalho em si com o jogo do prazer criativo. Essa devia ser, aliás, uma possibilidade oferecida a todas as pessoas, ou conquistada por todas as pessoas. Entrevista de Fernando Dacosta, DN 20-7-1978
Nunca fui de fazer grandes exposições. Para mim, expor é secundário, embora todas as pessoas gostem de ser gostadas. O expor é uma situação de oferta, de comunicação com os outros, de amor… É mais estimulante a palavra que se recebe de alguém que não se conhece do que o discurso oficial. Idem
ANOS 60, PISO ZERO
Como dividir em períodos ou etapas a continuidade da pintura e a sua mudança constante e aparentemente súbita? Ou em tópicos de um itinerário. Dispôs-se de uma cronologia das obras e de um espaço muito específico, difícil. Aqui ir-se-á fazendo também referência a telas ausentes associadas às que se mostram, e propõe-se aos interessados a simultânea consulta dos dois volumes do Catálogo Raisonné, também acessíveis no espaço do Atelier.-Museu.
O piso zero, dedicado aos primeiros anos 60, organizou-se em vários núcleos temáticos, cenas de trabalho, touros e cavalos, animais, paisagens, pontuado por algumas relevantes peças soltas e também pela irrupção desencontrada mas em diálogo de três obras de data posterior: um retrato de Teresa Marta, 1975; um Auto-retrato de 1972 numa composição dupla e reversível acompanhado o artista-palhaço com uma cara de macaco (optou-se por colocá-lo por cima), e, já de passagem para o piso superior, a emblemática serigrafia Graça de Abril, de 1974.
As peças soltas, e são todas importantes, surgem isoladas, numa outra triangulação: o Carro das Mulas (antiga colecção Igrejas Caeiro, exposto no Salão da Primavera de 1960), que divide a entrada com uma grande Cena de Praia certamente nocturna, 1959-60 (col. CAM-FG), e nelas sobrevive uma fase negra e ibérica que quis associar Goya e Columbano. Note-se a densidade matérica do óleo, e a luz que emana da cor sombria. Longe, o Casamento de 1961, grupo em movimento que se conjuga com uma ausente Procissão (1962, CR nº 222 ) e com os outros casos em que a imagem vista aparece e irrompe, frontal, e se detém sobre o espaço plano vertical e abstracto da tela (Metros e Corridas de Cavalos tratam a mesma “questão”). E algo escondida à entrada a Batalha d’après Uccello, de 1964, numa formato 50x150 cm que o pintor usará com frequência (Pomar irá relacionar os seus Maios aos guerreiros do preferido mestre italiano). Observem-se as duas caveiras em Casamento, também muito presentes numa das gravuras do mesmo assunto, que não foi editada; depois em Parade, 1966 (nº 343) - foi um motivo muitas vezes desenhado do natural no Musée de l’Homme. E é interessante que aquele tenha sido o mais caro quadro vendido em leilão, depois do Almoço do Trolha.
Nas paredes da black box, Tauromaquias e Corridas, que são as séries mais numerosas e conhecidas, comparecem de modo sintético: são as telas mais emblemáticas desta fase de interesse pela conjunção-explosão de forças e velocidades, com a gestualidade do óleo leve, fluida e vibrante. Mais abundantes são as cenas de trabalho do povo, as paisagens, em geral ignoradas, os animais (de estimação) que também estão na terceira parede da caixa.
Os temas do trabalho vinham de 1959 (as Fonte da Telha) e prosseguiram até 1963: pescadores e sargaceiros, a recolha das redes, a pisa do vinho, faltando aqui a debulha, 1961, em que o pintor insistiu mas agora não se alcançou.
Não será um intencional programa antropológico ou social, são espectáculos vistos, situações observadas em férias na praia (Albufeira 1961, três meses) ou nos campos - férias de observação e de trabalho quase sempre, e ainda a interessada relação com o povo, que também continuava muito presente na gravura. Pisa I, de 1961 é uma de três, até 63, certamente vistas em Aregos, Resende, Viseu, e esta pertenceu ao amigo e cúmplice Manuel Torres, gestor da Cooperativa Gravura e detentor do Almoço do Trolha, que o recebia na sua quinta e na moradia do Restelo, que teve decorações exteriores. Irrompem no espaço vago, aberto, indefinido do “fundo” seis rostos frontais que lembram Goya - lembre-se Mogiganga, ausente (1962, Col. Manuel de Brito / 111), que é assumidamente uma variação sobre uma gravura de Goya, cena burlesca de tourada, passada do preto e branco à explosão de vermelhos. Há outras situações de movimentos colectivos em quadros singulares: além de Casamento e da Procissão, importaria ver Queimar o Judas, de 63 - e as cenas de touros são também trabalhos e espectáculos populares. Fazem falta as vistas da gente de Marrocos (Rua Moura, Berberes e Canto Berbere também de 63), três quadros da viagem com Alice Jorge em 62. Já em França, houve Parade (desfile de máscaras ou caveiras) e Foire du Trône (feira popular, uma “fête foraine”) de 66, com várias variantes destruídas (Relatórios de Bolseiro e Void III).
O núcleo das paisagens aparecerá como uma surpresa - nunca construíram séries, mas foram existindo ocultas entre outros interesses. Existiram as primeiras já em 1952-53 (Azenhas do Mar, Ericeira), coincidindo em discretos formatos intimistas com obras militantes e encomendas decorativas desses anos mais difíceis. A paisagem é para Pomar um género raro; tentado na segunda metade da mesma década de 50, com variável resultado, Lisboa (a Avenida, o Coliseu) vista a partir do 4º andar da Rua da Alegria. Existe de 1958 um interessante e amplo Cais da Ribeira (Col. Mário Soares).
Aqui abriu-se a secção com uma das duas vistas de Barcos no mar de Albufeira, 1962 certamente nunca expostas, a que deveria associar-se uma Figueira “abstracta” da colecção DN / Globalmedia (vejam-se dois desenhos vindos de todo um caderno de “estudos”, na black box); acompanharam -nas cenas de pescadores. Seria um possível núcleo referente a Albufeira - e surge a ideia de toda uma exposição futura de pinturas de viagem, de lugares visitados e de férias, de praias, paisagens e motivos locais, que passaria pelas Astúrias, 57-59, até aos Mascarados de Pirenópolis e aos Índios da Amazónia de 1986-90 sempre séries surgidas de convites e/ou de oportunidades de veraneio activo.
Continuando as paisagens mostradas, temos a muito movimentada Paisagem de Lisboa de 1961 (col. Jorge de Brito), e logo a pequena Ponte D. Luiz, Porto,1962 (antiga colecção Alice Jorge), que teve de isolar-se no piso superior. As pontes, nocturnas, foram várias e uma de grande dimensão, perdida, foi a Pittsburg, concurso então mais famoso que Veneza; outra estará em Luanda, já de 1965 (não fotografada), retomando o tema numa encomenda de Manuel Vinhas: “Ficou pronta e entregue - afinal não é para o Porto, mas para Luanda, para o Banco Comercial de Angola. Deu jeito (para pagar as férias!) E tive prazer a fazê-la; ficou uma coisa cinzenta, muito pouco definida; fui saltando de fotografia para fotografia, e fi-la relativamente depressa” (carta de setembro 65, 2023). É simultânea dos três quadros dos Beatles (“penso continuar a série, tenho impressão que vai dar pano para mangas”, idem - mas foram destruídos).
Lisboa está também presente em Visto da Janela, 1966, que poderia ser entendida como uma “pintura abstracta”, que não é - talvez memória da casa de infância às Janelas Verdes e onde acima à direita se vislumbra o Tejo e um barco (certamente inédita até 2004, col. Ilidio de Pinho, vindo da antiga col. Augusto Abreu / Burmester). Por fim Saudades de Lisboa, já de 1968, inédito também até 2004 (“Autobiografia”, Sintra Museu Berardo) com título atribuído por Manuel Vinhas, que encomendou a tela, e veio de Paris, paisagem imaginada com um rio amarelo. De 1976 conhece-se Belle-Isle-en-Mer (col. FJP/AMJP), que é obra charneira, vista do lugar (em férias), e corpos em metamorfose, fim de ciclo e começo de outro.
Vejam-se na caixa negra, datados da chegada em 1963, pequenos desenhos da Pont des Arts, junto a apontamentos do Metro e às praias da Caparica, paisagem humana, do ano da partida.
Outro núcleo inesperado, os animais, que estavam presentes desde o início da carreira. Dois Chimpanzé 1962 em grande formato e os pequenos Mocho 1960 (faltou a Coruja, col. DN) e Abutre, de Paris 1963 (haverá outros Mochos em 1972, diversões muito a divergir dos Banhos d’après Ingres e dos Retratos). Os símios, com Mono Sábio/Singerie, foram mostrados nas exposições das Galerias DN e Lacloche (“Tauromachies”), eram obras maiores, e os dois expostos são retratos de corpo inteiro que nos olham de frente, também únicas figuras isoladas na pintura desses anos de intensa e vibrante produção. O terceiro vem de uma tabuleta de comércio vista em Paris ou fotografada. Há macacos desde o princípio, no livro Bichos, Bichinhos e Bicharocos, com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1948, e logo se multiplicaram os “Animais Sábios” em cerâmicas e pequenas esculturas de imediato sucesso (exposições de 1950 e 1951, quase todas desaparecidos). Da chegada a Paris datam cadernos de desenhos de observação, com macacos e inúmeros outros bichos (apontados na black box), e sempre lhes está associado o humor, que com a expressão erótica é uma das linhas condutoras (linhas mestras ?) da produção do pintor. Houve também pequenas Porquinhas / Truies amáveis em 66, intervalos de trabalho livre, oferecidas e agora inacessíveis. Viriam muito mais tarde os ciclos de bichos antropomórficos, os macacos humanizados e trocistas e os porcos ligados às aventuras de Ulisses e Circe, que foram uma vez arrumados por Marcelin Pleynet entre os “Animais de Companhia” (Sintra 2004). O largo bestiário desenhado liga o gosto da observação, o exercício da mão e do olhar, e o humor.
Continue-se o piso zero com a presença de dois D. Quixote (de entre os seis do ciclo que surgiu por extensão das ilustrações e das gravuras, 1960-63), um deles inédito e o outro, com os Carneiros, é uma grande pintura dinâmica e explosiva onde o cavaleiro avança sobre o espectador, como avançará D. Fuas, noutro programa posterior (1988-89 em Pinturas de História, 2022). Associa-se-lhes a escultura Guerreiro, mas que ficou distanciada. Ao lado estão algumas esculturas-assemblages de 1967, outros volumes esses “abstractos” que agregam objectos encontrados, interrompem o curso da obra pintada e terão consequências indirectas nos Banhos Turcos e Retratos e depois no ciclo das colagens de telas recortadas.
A escultura em ferro associada ao Quixote (Guerreiro - há acima um Torso forjado, pequena peça singular) é uma muito diferente prática escultórica depois dos retratos modelados de amigos, nos anos 40/50, e da cerâmica figurativa que fez desde início. Os ferros soldados como inovação vêm dos anos 30 (Picasso e Gonzalez), e permitem o desenho no espaço; com David Smith, Chillida, Mark di Suvero reanimam-se nos anos 50 no campo da abstracção, enquanto a “figuração expressiva ou existencial” ou biomórfica (1986 Margot Rowell) tem também largo curso paralelo em escultura. César é uma referência entre as duas vias. Mais que desenho, é em Pomar pintura no espaço, a preto e branco, precedendo a assemblage.
A ilustração foi desde o início uma actividade constante por cumplicidades literárias e encomenda editorial que equilibrava o escasso mercado - mas os desenhos para Pantagruel (65-66) foram uma iniciativa sua, a única entre os alheios convites. Mais tarde, desde 76, os desafios de Joaquim Vital (editor de La Différence e amigo, 1948-2010) associam-se a novas séries de pinturas: Tigres, o Corvo de Poe, A Caça ao Snak de Lewis Carroll, as Mães Índias de Pedro Vaz de Caminha, Carta do Achamento do Brasil. “A bem dizer eu não ilustro um texto: o texto sugere-me desenhos que o podem acompanhar e estes procuro fazê-los, para meu prazer, o melhor que posso e sei” (1980 Helena Vaz da Silva). A ilustração de encomenda, cumprida em geral sem obrigação descritiva, é ocasião de “experiências” que dão lugar a novas obras e direcções - a relação com a literatura é um continente que de que se fez a revisão em 2021 e 22 (“Os Livros de Júlio Pomar” e” “Pintura de Histórias”, exposições e catálogos do Atelier-Museu).
Na caixa negra, muito resumidamente, está o desenho de observação - apontamentos, estudos - que conservou nos pequenos cadernos de bolso e de viagem e de férias (Marrocos, Albufeira, Caparica, etc) e em especial da chegada a Paris: Musée de l’Homme, Jardin des Plantes e Menagerie, o zoo, Jardin d’Aclimatation; a Pont das Arts, o Louvre, anotações de imagens e textos de reflexão, citações. Mas é disciplina autónoma nas “Courses”, nos Catch de 65-66, no referido Pantagruel, e nos Retratos a Lápis que vão de 1970 a 77. Toda uma parede foi dedicada aos desenhos eróticos: mostram-se Étreintes de 60 levadas à II Gulbenkian, Nus de 61 (exposição de grupo “O Modelo” na Galeria DN) - os nus femininos vêm de 1947, da prisão (a Onda), e motivaram logo rejeições e defesas. Há Étreintes e Tauromaquias significativamente juntas num mesmo caderno de 63. É uma linha de trabalho e de vida que acompanha toda a carreira. Corpos. Femininos, cúmplices, mas os sexos são ambíguos em dois desenhos passados a litografia da série Catch (foi a figura ser masculina que bloqueou a versão em pintura?) Aí se incluíram também as ilustrações para A Selva, de irrupção frontal da cor, figuras fragmentas, narrativas. E encerra-se o piso, ao lado, com uma selecção variada de gravuras, onde se verá que a gestualidade da pintura se liga á materialidade do desenho gravado com os ácidos, em especial nas Tauromaquias.
ANOS 60/70, PISO 1
No piso superior ficaram, num topo da galeria, um Rugby e um Maio, emblemáticos do tempo de mudança. As séries foram antes mostradas no Atelier-Museu. ( REF ) A seguir, mas anterior no tempo, vem toda uma abordagem à abstracção, do Metro aos Estudos para tapeçarias de 1967, de que se falou antes.
É significativo ver a pontuação da mudança da obra, a simultaneidade de direcções, na Mélée (Rugby) de 68, no retrato de Manuel Vinhas e no primeiro Banho Turco, todos da mesma data (e em baixo ficou Saudades de Lisboa). E logo Mesa dos Jogos 69-70, de secções móveis, passando à Superfície Vermelha de 72 (de uma série de sete em dois formatos, um deles grande), um corpo em recorte em arabesco sobre plano liso em cores unidas, que está já na sequência dos primeiros retratos (Manuela e Viana são de 1970), e é paralelo em data a Tétis. Todo este núcleo que vai das odaliscas de Ingres aos retratos íntimos é uma marcação conjunta de dois conjuntos temáticos onde vai longe a exibição do erotismo. A influência de Matisse juntara-se ao agrado pela Pop, e a relação com a estética do cartaz foi evidente em Viana, Almada, etc - mas nunca se incluíram estas obras, vá-se lá saber porquê (é cegueira dos comissários e talvez vontade de exclusão) nas abordagens nacionais à Arte Pop, de 1997, “The Pop’60’s - Travessia Transatlântica”, de Marco Livingstone com Alexandre Melo, no CCB (https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2007/06/1997-portugal-p.html) e de “Pós-pop. Fora do lugar comum - desvios da Pop em Portugal e Inglaterra, 1965-1975” de Ana Vasconcelos e e Patrícia Rosas na Gulbenkian em 2018. (Ver “Anos Pop” em 2023 A. Pomar).
Viu-se que o retrato fora ensaiado com êxito em 67-68, dois de encomenda (José Ribeiro da Cunha, então já falecido, e Manuel Vinhas, aqui exposto e é homenagem ao amigo e coleccionador) e outro em liberdade (a amiga Fátima, Lopes). A eles regressa pouco depois longa e diversamente (Manuela, 1968-70; Eduardo Viana, 1970; Almada Negreiros, 1972, Fernando Pessoa e Camões, 1973; outras e outros amigos; os auto-retratos), já relacionados com os Banhos Turcos e já em paralelo em pintura e desenho. “A semelhança do retrato é para mim fundamental”. “A semelhança funciona como a marca. É como o nome escrito. O resto vem quase involuntariamente e tem por função ‘accrocher’ (prender) a personagem à tela” (1991 H.V. Silva 1991).
(A propósito de Manuel Vinhas, lembre-se também Jorge de Brito, não retratado. Aquele industrial e proprietário - Pomar era convidado para as tentas no Zambujal -, outro aventureiro das finanças, ambos amigos pessoais e coleccionadores desde os anos 50, também de vários modos mecenas, até às mudanças de 75, e com parte substancial da colecção Jorge Brito se fez o início do CAM - várias obras da exposição são ou vieram das respectivas colecções.)
Posted at 22:11 in 2024, Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
REVOLUÇÕES
Do corpo a corpo do espectador com a obra se recria esta, e aquele, e o mundo em que ambos se situam. Relatório de Bolseiro Maio 1966
Revoluções foram duas, 68 e 74/75. Mais as que as acompanharam e continuaram, em especial, no que importa também à obra de Júlio Pomar, a anti-psiquiatria e a revolução sexual. Outras alterações, mais ou menos revolucionárias, aconteceram ao pintor - e faz-se já uma primeira síntese que a seguir se desdobrará. Adiante percorre-se a fortuna crítica e preferem-se as declarações da época às interpretações mais tardias
Debulha, 1961, 50x61cm, nº 208. Col. particular (não disponibilizado para a exp.)
NOTA 1: exposto na revisão comemorativa de Serralves, “Pré/Pós - Declinações visuais do 25 de Abril”.
Posted at 18:52 in 2024, Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
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Paisagem de Lisboa, 1961, 73x116cm (CR I nº 217) Col. Jorge de Brito
PALAVRAS DITAS
em entrevistas de Maria Lamas, Adriano de Carvalho, Joaquim Furtado, Maria Antónia Palla, Manuel de Lima e um anónimo
Um quadro é menos uma maçã ou um touro, do que tudo que em nós permanentemente vive. Amor, raiva, esperança, desespero. Toda a arte é uma confissão pública e secreta. (Maria Lamas 1964, “Diário de Lisboa” - a seguir D.L.)
O artista que «segue» crê estar de acordo com o seu tempo. Ele não demora a fazer pela sua mão o que se fazia anteontem em Paris, ontem em New York. Ele não percebe porque os conhecedores – os que amam, vivem – se não detêm na sua mercadoria (em saldo!), julga-se vítima, sem sorte. Não querendo (ou não podendo?) correr o risco de uma posição solitária, acaba por definhar sozinho no meio do rebanho a que se esforçou por pertencer. (Idem)
Não me interessam escolas, interessam-me personalidades, as quais, evidentemente, não acontecem em série. (Idem)
Quando é que «verdade» deixará de ter que ver com «parecido»? (Idem)
Se em Goya intervém o humor negro ou solar, para Velazquez a majestade significa o mesmo que uma maçã para Cézanne. A sua indiferença (mais que desrespeito, indiferença) perante os poderes estabelecidos (que ele, como homem da corte, respeita naturalmente) faz dele o primeiro dos modernos. (Este aparecimento aqui da palavra «moderno» - bem gasta, coitadinha! – não é do meu gosto. Passe agora como solução de recurso, se não iríamos dar a outra história - e bem larga!) (Idem)
É preciso ultrapassar a oposição absurda entre passado e presente. Se, ou inconscientemente ou pela força do hábito, nos escudamos nela, pouco vimos a entender do homem; e nada, mas mesmo nada de Arte. (Idem)
O acaso juntou na mesma página do meu caderno de bolso uma frase de Ovídio e outra de Picasso. Ovídio – «é preciso temperar o prazer pelo domínio de si mesmo». Picasso - «a pintura é mais forte do que eu, obriga-me a fazer o que ela quer». Entre uma e outra, de uma parte a outra, vai toda a maravilha (e toda a danação também!) da pintura, da poesia, porque não da vida humana? E sobre o acaso - não será ele o mais exigente dos nossos mestres? (Idem)
«Realista»? É impossível pôr apenas um adjectivo. Além disso, detesto as fórmulas, as tentativas de concisão que, as mais das vezes, são o empobrecimento das próprias coisas (Anónimo 1966, “Flama”)
Ao contrário do que acontece com a poesia (pode ser-se poeta aos 20 anos), a pintura é uma obra de maturidade. (Adriano de Carvalho 1966, “Século Ilustrado”, a seguir S.I.)
O universal objectiva-se através de referências muito particulares, que resultam da experiência do indivíduo. O geral não é senão uma experiência pessoal, exacerbada. Posta a nu. Não há um universal abstracto, aquém. (Joaquim Furtado 1973, D.L.)
O importante não é o quadro representar um cavalo ou uma paisagem, mas o que nele está da luta do indivíduo que o fez para viver ou sobreviver, na medida em que nele estão expressas as suas relações consigo próprio e com os outros. É uma tomada de posição perante o real. (Idem)
Ser livre é uma coisa que custa muito aprender, mas depois não se quer outra coisa. (Maria Antónia Palla, 1973 S.I.)
Ser pintor é a minha situação particular de ser vivo. É a minha maneira de me exprimir como ser. (Idem)
Quando se gosta de uma coisa toma-se todas as liberdades com ela. (Idem)
A liberdade finda quando as relações passam de sujeito-sujeito a sujeito-objecto ou sujeito-sujeitado. (Idem)
Posso ter tomado aparentes liberdades, tão grandes que a figura parece desaparecer. Mas ela está sempre lá. Porquê? Não sei…. É uma maneira de ser. Gosto muito de carne, de coisas bem vivas, palpáveis. É-me totalmente impossível pensar num quadro com uma formulação 100 por cento abstracta (se é que isso tem algum sentido…). Com isto, não nego o mérito ou a influência que a pintura abstracta, como a de Mondrian, possa ter tido sobre mim. (Idem)
A pintura em mim nasce de um corpo-a-corpo diário com o ofício. Não há dissociação entre projecto e a obra: nascem ligados. Preciso de trabalhar todos os dias. [Mas] só posso pintar em estado de disponibilidade total. A pintura não é um refúgio contra, mas uma maneira de estar. (Idem)
Quando pinto, nunca faço em termos de “exposição”, coisa que me acontece muito pouco, também. As coisas, em mim, passavam-se assim: interessava-me pelo que estava a fazer, vivia-o intensamente. Isto, porque as coisas que faço me interessam enquanto estou a fazer, enquanto as posso tocar, transformar. (Idem)
Fazer arte é tão integral, tão visceral como rir ou fazer amor. ... mas aqui não se exclui a ideia de pensar no assunto. (Manuel de Lima 1974, S.I.)
O que Cézanne disse do acto de fazer pintura: uma maneira de pensar. (Idem)
O pintor para mim é um trabalhador. Com a vantagem ou a agravante de que para ele não há diferença entre trabalho, obrigação, lazer, jogo, prazer. (Idem)
O 25 de Abril foi na vida portuguesa um acto criador, insólito na aclimatação quotidiana, como um acto poético. Dizia Lautréamont que a poesia deve ser feita por todos. Ousemos corrigir. A poesia é feita por todos, e na consciência disso é o jogo a jogar e a chamar-se Revolução! (Idem)
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Antes de 60, até 63
Deve notar-se a abrir a apresentação de “Revoluções 1960-1975” que não é a mudança de década que estabelece fronteiras dentro da pintura de Júlio Pomar. A saída do neo-realismo manifestou-se em quadros singulares e incompreendidos como O Baile e Circo, duas festas urbanas nitidamente tristes (1955). “J. P.... que converteu o Baile num verdadeiro ‘sabatt’ observa as projecções das ruas de Lisboa [Rua de Lisboa, Catálogo Raisonné (CR) nº 121] e sabe ainda arrancar à vida humana, em traços fortes, todos os seus reflexos.” Artur Portela Filho (P. F.), III Exposição Colectiva de Artistas Portugueses, Galeria Pórtico. Diário de Notícias (DN), ?-11-1954.
** Circo, 1º salão dos Artistas de Hoje, SNBA 1956.
Tal acontecia logo depois de um período mais intensamente militante, de 1951 a 54, de que Marcha e os Estudos para o Ciclo ‘Arroz’ são expressão mais forte, a par de encomendas decorativas em colaboração com os arquitectos Conceição Silva ou Victor Palla e Bento de Almeida (vitrais da Igreja da Pontinha, na Amadora, painéis para o Restaurante Vera Cruz), e também a par de pequenas paisagens intimistas (Azenhas do Mar, Ericeira): são três linhas de trabalho simultâneas e diversas, quando os quadros ainda não se vendiam.
O neo-realismo não tivera nenhum resultado prático, disse Pomar em 1955. «De resto, não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função, refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público» (entrevista DN 22-9-55). Acabavam por esse tempo as Exposições Gerais, já trocadas por novas colectivas na Galeria Pórtico, em 1954, dinamizada por uma nova geração, e na SNBA, o Salão dos Artistas de Hoje em 1956, com a Fundação Gulbenkian a gerar novas oportunidades e expectativas. Era um tempo de mudança, em ruptura com a herança de 1945.
Houve para Pomar, entretanto, hesitações paisagísticas: Lisboa vista do 4º andar da Rua da Alegria, para onde se mudara com Alice Jorge, mas também revisitações mais ou menos realistas “modernizadas” - breve série Astúrias, 1957-59, da viagem de carro até Paris, por Altamira, com Manuel Torres; e pescadores da Fonte da Telha, 1959, a praia, sempre. Mas logo esses últimos anos da década foram marcados por meia dúzia de pinturas de grande ambição e sucesso, que surpreendiam em mostras colectivas, para as quais o próprio artista e alguma crítica apontavam a procura de um desígnio ibérico, conjugar Goya e Columbano, uma fase “negra”.
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José-Augusto França escrevera em 1955: “O grupo neo-realista (...) com tais composições, dum realismo sobretudo de tipo magazinesco, parece estar a lograr as sensíveis e honestas promessas que há dez anos fizera” (Exposição de Pintura Moderna Portuguesa, Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, organizada por Rui Mário Gonçalves, ver “Comércio do Porto” 12-04-55; in Da Pintura Portuguesa, Ática 1960, p. 169 - esta é uma importante antologia de artigos nunca reeditada).
A apreciação mudou em 1958: “O quadro de Júlio Pomar [Lota], curiosamente absorvido por valores picturais abstractos, desejando uma genealogia em que Goya e Columbano se encontram de má vontade, involuntariamente se aproxima dum Lanskoy, cuja arte, suponho, o pintor ignora e nisso se realiza como obra de muito interesse e de notável qualidade. O «moderno”, insólito em Pomar, e consciente em Daciano...” (sobre o 1º Salão de Arte Moderna, “Colóquio” nº 1, janeiro 1959; op. cit. p. 206)
Segundo Artur Portela Filho, então crítico activo, “Pomar surge truculento, maciço, crispado. As suas duas largas telas <ou só a Lota?>, de temática populista e atmosfera poética, são uma prova esmagadora que estamos perante um dos artistas mais profundamente portugueses. (...) Pomar tem um forte sentido telúrico e o dramatismo dos seus climaas não exclui, antes acentua, contrapontiza, sublinha, uma poesia cheia de vibração e de intensidade. Pomar estilhaça os limites de uma estética semi-oficializada com galo de Barcelos, Sol e Tejo. Cria uma humanidade onde há um a angústia riscada de gritos e risadas e de uma troça orgulhosa e livre.” Diário de Lisboa (DL) 18-10-58
J. A. França em 1959: «Pomar vai firmemente e com extrema qualidade pictórica no caminho que o víramos no Salão Moderno da SNBA, aceitando já em perfeita consciência valores abstractizantes que o próprio ritmo do pintar lhe impõe. O encontro de Goya e de Columbano do seu ‘projecto’ é agora absorvido, reelaborado interiormente com uma ‘fugue' que a pintura portuguesa não iguala» (“50 Artistas Independentes”, “Comércio do Porto”, 23-06-59; op. cit., p. 211 - expunha Cegos de Madrid e Cena no Cais, este levado à 2ª Exposição de Pintura Moderna, promovida pelo Grupo Desportivo e Cultural da “Cuca”, em Luanda, com catálogo prefaciado por Manuel Vinhas).
Portela Filho, sobre Cegos de Madrid: “J.P. ainda goyesco no gesto largo, validamente retórico, trágico, expressionista, atinge uma força que não se encontra em qualquer outro artista na pintura portuguesa. Dir-se-á que ele não é um autêntico pintor português e que chega a ser, pela qualidade e ‘quantidade’ de pintura, pela linguagem, pelo tema, um pintor espanhol”, DL 15-6-1959.
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A anterior individual de pintura datava de 1951 e a seguinte é só de 1962 - um longo hiato de visibidade, não de trabalho, mas na época os Salões apresentavam as novas obras periodicamente (eram uma oportunidade que depois se combateu e extinguiu, perdendo-se o largo público interessado). Datam de 1957 a 1960, e estabelecem um dos patamares mais elevados na longa carreira, os quadros Maria da Fonte, Lota, o referido Cena no Cais (depois oferecido por Champalimaud para o previsto Museu de Arte Moderna de Luanda, e lá ficou, invisível, ao que se sabe) e também Cegos de Madrid?, Cena na Praia, O Carro das Mulas (estes três últimos agora expostos), mais o grande Estaleiro que respondeu a encomenda para o paquete Infante D. Henrique (agora no Museu da Marinha - “entre os objectos mais belos desta minha terra, do Pintor, da Arte Portuguesa: uma reivindicação de grandeza, um magnífico acto de resistência, pois a verdadeira Beleza é incompatível com a opressão” - escreveu Ernesto de Sousa, na monografia citada).
Coexistem com as 30 ilustrações pintadas a preto e branco, seis gravuras, quatro esculturas de ferros soldados (veja-se Guerreiro) e seis pinturas relativas a Dom Quixote, então traduzido imaginativamente por Aquilino Ribeiro, ed. Bertrand 1960 (D. Quixote e os Carneiros e outro Quixote expatriado e inédito expõem-se agora). É um primeiro capítulo literário da sua pintura de imaginação que mereceu logo pequena exposição própria na Galeria Gravura naquele ano - regressará a Cervantes em 2005 para ilustrar uma nova edição, do “Expresso”. Surgem igualmente os primeiros Touros em gravura e no quadro de 1960, Touro, oferecido a Alves Redol, como peças do vasto Bestiário e já “Tauromaquias”.
Esses anos contaram com as duas Exposições Gulbenkian de 1957 (Maria da Fonte) e 1961 (Pega, CR nº 188; Cavaleiro e Touro, nº 190; D. Quixote e os Moinhos, nº 197; Debulha, nº 205; a escultura em ferro D. Quixote II, nº 177), onde obteve respectivamente Prémios de Gravura e de Pintura, sempre ex-aequo. Seguem-se as duas individuais na Galeria DN) em 1962 e 63, já como continuidade e reconhecida maturidade, com forte notoriedade pública e crescente tensão por parte da crítica instituída. Prolongam e diversificam os exercícios de observação de figuras e de situações que estão praticava com um dinamismo gestual a conviver com a abstractização dos motivos: cenas de trabalho, espectáculos populares e públicos (as “Tauromaquias”, e também Casamento e Procissão), paisagens, sargaceiros, os grupos de Marrocos em 63, pintura de realidades vistas. Pintura de observação e também de viagem.
Artur Portela sobre Maria da Fonte: “Pomar é uma explosão de potencialidades. Artista total, personalidade variada, com um conhecimento absoluto e espantoso do seu mister, pintor de convulsões expressionistas, desenhador admirável, com provas de gravura invulgares, é uma das maiores afirmações deste certame. (...) é uma larga, uma imensa, uma movimentada e atormentada tela, povoada por uma humanidade goyesca de tons sombrios e surdos que não lhe apagam a vida, que pulsa, palpita e ascende aqui à pureza do símbolo”. DL 11-12-57
Evolui procurando sugerir o movimento das figuras com pinceladas rápidas os temas adaptam-se a uma figuração fragmentária, descontínua e repetitiva RMG, BB
A forte notoriedade mediática circula nos diários da época, atentos e influentes:
1962, exposição na Galeria DN: “J. P. lírico e telúrico, dramático e irónico”, por Manuela de Azevedo, não assinado, DN 20-5-62: “Onde parece exprimir-se o lirismo gritante de um Kandinsky. (...) Uma luta de primazias entre o abstracto, o figurativo e, até, o impressionismo. (...) Desta pequena galeria - Pomar é preguiçoso, não quer banalizar-se ou é lento na fecundação artística? - o jovem e consagrado pintor pode afirmar que, através de uma liberdade quase sem limites... se tiram sempre efeitos novos e imprevistos.
1963, exposição na Gal. DN, crítica de Fernando Rau (R.): "Movimento e cor na pintura de J.P. em vésperas de partida “, DL 10-10-63 : “o artista está em plena forma criadora e transmite-nos momentos de verdadeiro prazer a contemplação da sua pintura vigorosa nas cores, no movimento e na força anímica que irradiam todos os seus quadros.”
Ou “Sangue arena na expressão fremente da arte de Pomar”, Manuela de Azevedo, DN 10-10-63.
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As pinturas tinham deixado de ser neo-realistas, mas eram de qualquer modo documentárias, mesmo se especialmente se equacionavam, e o artista sublinhava, as questões formais. Trocavam pela densidade e teatralidade pictural a reconhecibilidade descritiva da mensagem; o “intenso dramatismo” era referido, a “inspiração espanhola” (Adriano de Gusmão, 1957). Eram motivos de espectáculos vistos, cenas observadas, registos circunstanciais e ao mesmo tempo questionamentos formais. Pintura descritiva, talvez mesmo pintura de reportagem, mesmo se o peso do formalismo tardo-moderno reinante obrigava a negá-lo: Interessam-lhe, diz, “todos os espectáculos em que os sentidos se completam, em que a imagem é múltipla: multidões, praias de pescadores, fainas de campo, mercados, as grandes cidades e, naturalmente as corridas de touros. O que se agita, move, transforma.” (entrevista de Maria Lamas em Paris, DL 5-3-64, ). “A pintura (não) me interessa como arte de reportagem” dirá já por ocasião dos Tigres (1980), em obediência ainda com o “modernismo” que desvalorizava o assunto. O que mudaria com os ciclos literários tardios.
O abstraccionismo ia-se tomando como uma fatalidade universal, imposição da crítica dominante, mas Mário Dionísio e Nikias Skapinakis valorizavam possíveis diálogos com a figuração (na época Pomar não escreve, pinta): “Nos dias de hoje, abstraccionismo e tendência realista buscam-se, aparentam-se, interpenetram-se, elaboram demorada mas manifestamente a sua síntese” (M.D., Conflito e unidade da arte contemporânea, conferência integrada na 1ª Exposição Gulbenkian, 1957, ed. Casa da Achada 2015, p. 50). “Júlio Pomar superou a crise do neo-realismo (...) Define essa superação, que me parece total no caso das gravuras, uma conciliação entre a necessidade ideológica do neo-realismo e o entendimento de uma lição formal abstractizante. O que portanto se transfere do neo-realismo, paralisada a sua tentativa de aprofundamento do real, é a necessidade de encontrar uma figuração que de novo, e actualizadamente, reintegre o real no quadro” (N.S., Modernos Figurativos Portugueses, conferência de 29-01-1959 na SNBA, ed. Separata de “Arquitectura”, 1959, p. 10)
Figuração-abstracção, figuração-desfiguração, são tópicos críticos do tempo com que o pintor se confronta: “Claro que é o movimento que fundamentalmente me interessa. Enquanto que nas Tauromaquias o problema era o de uma síntese de movimentos contrários, agora [nas Corridas] trata-se de um movimento de trajectória única” (carta de junho de 64*).
Ernesto de Sousa, na primeira monografia (Júlio Pomar, ed Artis, 1960, p. 11) escreve que “um encontro se tornava necessário com as técnicas da abstracção: para destruir os quadros materiais do espectáculo”. Fala de “equilibrio instável” (...) do “encontro de um espaço dramático, na sua raiz tradicional ibérica, com uma temática.” “Alguns dos quadros das Tauromaquia atingem um clímax de riqueza dramática, comparável aos exemplos mais altos da pintura ibérica”. Abria o ensaio com uma declaração forte: “Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva e Amadeu Sousa Cardoso são três nomes cardinais para a compreensão da pintura portuguesa dos nossos dias”.
Alguma recepção crítica que viria a ser dominante, dominadora, e sempre formalista, então facultada nas revistas, era ditada pelas questões da conflitualidade entre figuração «naturalista» e abstraccionismo, que persistiram em Portugal até tarde, ora se valorizando as vias da possível síntese com a abstração, ora se supondo fatalmente necessária a desaparição da figura e do referente, do assunto. Na lógica de uma pintura «pura», defendida como colectivo estilo moderno, contrária às novas figurações que se procuravam, saudavam-se o informalismo gestual e os valores abstractos, mas supunha-se dever suceder-lhes o abandono das referências ao mundo visível. “Evolução gestual e abstractrizante”, “uma esgrima de pincelada habilíssima” (J.A. França 1984).
Rui Mário Gonçalves, 1962: “numa linguagem que, não sendo a dum pintor abstracto, nada deve, porém, a essa imagem antiga da realidade, que o academismo pretende manter.” “um período de libertação dos elementos da sua linguagem: o grafismo e a cor”. “o apoio na realidade visível mantém-se”. “Toda a pintura é fundamentalmente uma especulação sobre o espaço” (“Jornal de Letras e Artes”, 06-06-1962)
Nelson di Maggio 1965: “adverte-se uma concessão excessiva ao bom gosto burguês que debilitam a rotundidade e a força da sua mensagem. De facto, a sua pintura tem enveredado pelo aspecto mundano e agradável”. “Flama”, 25-02-1965
Idem 1966: “Pomar passou a «actualizar a sua linguagem a partir das conquistas dos vanduardistas abstractos, mas sem se atrever a encarar metódicamente o problema da renovacão estrutural». como escreveu Rui Mário Goncalves”. “Em definitivo o que lhe interessa é reconstituir uma realidade passada, contar uma anedota, mais ou menos disfarçada pela dinâmica irradiacão da composição. O autêntico criador de formas está ausente. E o que se evidencia ostensivamente é o pintor sensível, agradável e superficial, para contentar o gosto de uma burguesia cómoda e satisfeita. Como Boldini no século passado. Todas as telas estão muito bem resolvidas e calculadas. Quem poderia ficar indiferente? Quem poderia deixar de sentir um santimento fruitivo?” (“Alla maniera di Boldini”, “Jornal de Letras e Artes” 16-02-1966)
Fernando Pernes 1966: “figurativismo desenvolto”; “uma estética do compromisso entre a aceitação do modelo convulsionado e a acção sobre ele instaurável”; “estilizações de uma realidade apriorística mas, por necessário ajuste, tomada nos seus aspectos mais movimentados”; “Pomar veio a alhear-se do existente dramático para desembocar numa temática mundana e espectacular, sempre habilmente transposta em telas resolvidas com acerto e de menor ambição” “Colóquio” nº 38, 1966; in Dizer a Imagem, ed Serralves 2015, p. 45-46.
Haveria por consequência «uma hesitação estética» e «uma íntima contradição expressiva», um debate não resolvido «entre um compromisso figurativo e uma vontade de expressão directa», argumentos muito repetidos que em geral se prolongavam no reconhecimento ambíguo de uma «espantosa habilidade oficinal». argumentos que se prolongavam no tema do virtuosismo, usado como arma de arremesso. O mercado privado crescia no início dos anos 60 e a crítica encartada associava o sucesso galerístico à satisfação do gosto burguês.
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