REVOLUÇÕES
Do corpo a corpo do espectador com a obra se recria esta, e aquele, e o mundo em que ambos se situam. Relatório de Bolseiro Maio 1966
Revoluções foram duas, 68 e 74/75. Mais as que as acompanharam e continuaram, em especial, no que importa também à obra de Júlio Pomar, a anti-psiquiatria e a revolução sexual. Outras alterações, mais ou menos revolucionárias, aconteceram ao pintor - e faz-se já uma primeira síntese que a seguir se desdobrará. Adiante percorre-se a fortuna crítica e preferem-se as declarações da época às interpretações mais tardias
Debulha, 1961, 50x61cm, nº 208. Col. particular (não disponibilizado para a exp.)
- Passagem para Paris em 1963, com consequência directa em novos temas e séries de pinturas (Corridas de cavalos, Metros, Catch) e também melhor informação presencial, com o Louvre e outras relações intelectuais, embora mantendo raízes no país. A escultura e a gravura pararam em Lisboa, e as deambulações por Paris, ainda sem atelier, levaram-no aplicadamente ao desenho de observação no Musée de l’Homme, no Jardin das Plantes e na Ménagerie, o zoo. “Recolha imediatamente utilizada, ou não, ocasional ou procurada, de elementos a utilizar no trabalho de atelier: anotações de movimento, cenas de rua, metro, campos de corridas, zoos”.(fevereiro 65, Relatório). Com 37 anos já não era um jovem artista, partiu “por razões estritamente pessoais, precisava de me afastar, de estabelecer um certo recuo” (1973, entrevista de M. A. Palla). Não foi um exílio e era uma saída tardia - a geração seguinte já tinha partido. Tinha um contrato com uma galeria, a Lacloche, bem situada na elegante Place Vandôme e com artistas relevantes. Manuel Vinhas (1920-1977), coleccionador e amigo intermediara a relação, desde a II Exposição Gulbenkian (correspondência, 2023 Alexandre Pomar, Depois do Neo-Realismo). Voltava a Portugal a banhos e para estar com os filhos, Alexandre, Vitor e Pedro. Foi bolseiro da Fundação Gulbenkian em 1964-66 - os seus relatórios periódicos vão ser em breve publicados pelo Atelier-Museu.
- A Galerie Lacloche fez-lhe duas individuais, “Tauromachies” e “Les Courses”, em 1964 e 65, com boa imprensa, e apresentou-o em colectivas francesas e internacionais (Atenas, Pittsburgh / EUA, Paris, Tóquio, Leeds, e falava-se em Nova Escola de Paris). A seguir a galeria trocou de orientação, dedicando-se a múltiplos e mobiliário de autor, e a terceira individual prevista para 66 já não avançou: foi uma interrupção em tempos de crise geral da pintura e do mercado. (Vejam-se as revistas expostas do acervo do pintor: “Contre l’artiste inoffensif” e “Art sauvage - La fin das galeries”, na contestária “Robho” nº 4 1968, “Une peinture de contestation est’elle possible”, “Opus”). Já antes de 68 as proclamações de vanguarda afastavam-se da pintura, trocada por objectos e acções, ou apostavam na radicalização política, com a qual, vindo de uma ditadura, não se identificou. Depois da exposição de 1966 na SNBA, com obras quase todas cedidas por coleccionadores, só em 1973 voltou a apresentar pintura em Lisboa, na Galeria 111 de Manuel de Brito (1928 – 2005), e já só em 1979 entrou noutra galeria de Paris, a Bellechasse. Expunha pouco, mas coleccionadores fiéis iam disputando os quadros, que assim não se mostravam (e nem se fotografavam) - o amigo Jorge de Brito (1927-2006), bancário e depois banqueiro comprou todos os Rugby’s e Maios, os quais só se conheceriam em 1986, na antologia dirigida ao Brasil (vista no CAM - FCG no ano seguinte), quando a produção já era muito diferente. Faltou expô-los em Paris e nem mesmo teriam sido fotografados já que a monografia francesa de 1981 (Guichard-Meili) não os refere. Pomar dedicava-se a pintar e não se ocupava da promoção.
3. Adopção da pintura acrílica, a par primeiro e depois em lugar do óleo, experimentada logo em 64, adoptada por volta de 66-67, com efeitos sensíveis no tratamento da superfície pictural: cores puras, planos lisos, formas recortados, quando se afastava da gestualidade. E já uma década antes o pincel japonês adquirido numa viagem a Paris lhe mudara o desenho, praticado com qualidades de escrita japonesa à mão levantada para ilustrar Guerra e Paz de Tolstoi e O Romance de Camilo de Aquilino Ribeiro, em edições por fascículos. (Ver “A mão contraditória”, in 2023 A. Pomar.)
4. Destruição de dezenas de quadros terminados ou em curso, em 1965-66 (e 67?), o que encerrou a crise da relação com a abstracção e com o gesto livre mais ou menos informal, e em geral com o curso anterior da obra. “Nos anos 60 a forma começou a desfazer-se e, a pouco e pouco, a figuração dissolveu-se. Restava de pé o arabesco sincopado” (1986 Júlio Pomar, p. 31) “Eu sentia a pintura como que a esvair-se, sentia que estava a perder-me no vago” (2002 Júlio Pomar, p. 59). Mário Dionísio, reatando em visita a Paris uma relação que cortara em 1952, fez referência ao “massacre” (“ ‘É o grande remédio em certos momentos’, explica ele” (1967 M. Dionísio). Ficaram no atelier fotografias feitas para os Relatórios de Bolseiro, a ilustrar esse fim de caminho e a decisão auto-crítica, as quais se publicaram num livro do Atelier-Museu (2017 Júlio Pomar, Void* volume III (à data existiam os negativos mas não se conheciam os Relatórios, que forneciam títulos e informações).
5. Início das assemblages sem tradução figurativa, feitas com materiais encontrados na praia da Manta Rota, onde passou quatro meses de praia e trabalho com Manuela Jorge no verão de 67. A várias vezes afirmada admiração pelas inovações (proto-Pop) de Rauschenberg pode ser reconhecível, vindas da tradição cubista e dadá, em novos tempos de Found Art e Junk Art (ver 1964, Don Baum). No início da década fizera uma pequena série de esculturas em ferros soldados (Guerreiro, p. X), associadas a D. Quixote de la Mancha e a invenções norte-americanas da época. Mostrou algumas dessas assemblages só em 1978, reunidas a novas peças na primeira retrospectiva, e também usou incorporar objectos nas pinturas feitas de colagens de telas - no início do século seguinte partiu de assemblages de peças soltas encontradas numa fundição em França para fazer esculturas em bronze. Continuou sempre a recolher-coleccionar objectos e brinquedos para construir-reconstruir (e destruir) acumulações, num divertimento interminável. Mas em 1967 também pintou no Algarve estudos para tapeçarias, no limiar da abstracção (serão ainda cavalos de corrida, p. X) para o concurso da sede da Fundação Gulbenkian, e Les Oiseaux de Joie / Os pássaros da alegria (p. X), a partir do russo Viktor Vasnetsov (1896) - está no Hotel Miraparque um exemplar.
6. Transformação rápida da prática pictoral, a definir-se nos primeiros Rugby e nos Mai’68 CRS - e estes associou-os às tensões formais das Batalhas de Uccello, que refazia de 1961 a 66, pelo menos (p. X), e várias foram destruídas. Era a Batalha de São Romano, o painel central dos Uffizi, da viagem a Florença em 58 - notar que os efeitos dos encontros nunca foram imediatos... Era “recorrer às figurações de Uccello para veicular aquilo que fundamentalmente me interessava e que era o choque de forças antagónicas, o que passava através de uma certa geometria” (1978, entrevista de Maria Bello). Passaram as tensões formais aos confrontos de rua em Paris, com capacetes, matracas, escudos redondos, em formas cada vez mais nítidas. Em termos de visibilidade pública e crítica, porém, importa voltar a sublinhar que Rugby’s e Maios não foram vistos na época e ficaram à espera até 1986 - a colecção de Jorge de Brito esteve embargada pela revolução. Por essa mesma altura, também pintou, de outra maneira, ligando o gesto aos planos lisos, três grandes retratos, dois de encomenda e de aparato, Ribeiro da Cunha, Manuel Vinhas (p. X) e Fátima (Lemos), 1967-68, em que muito se relacionou com Francis Bacon - são obras que antecederam os muitos retratos dos anos 70.
7. Utilização da fotografia encontrada, que se substituía à observação directa das cenas. Assistiu às corridas de cavalos e às lutas de Catch, mas nunca entrou num estádio de Rugby. Já acontecera com os seus retratos dos Beatles, admirados no cinema, numa atenção à cultura popular que ainda não era Arte Pop. A fotografia fora sempre um apoio da memória e recurso de composição, desde o Gadanheiro, mas a viragem para o uso dos recortes de imprensa, e alguns conservaram-se, marca os novos ciclos.
8. Maio’68. “O que se tem passado no mundo e a deflagração, de um modo mais visível, do que aconteceu em França, em 68, estão na base dessa revisão profunda. Com isto, devo dizer que tenho uma certa relutância em fixar-me em 68, porque há hoje uma certa tendência em equiparar essa data a uma aparição da Virgem. Ora, 68 é um ponto de explosão para quem já estava preparado para isso” (1973, entrevista de M.A. Palla). E a série dos Maios foi-se acompanhando dos primeiros Banhos Turcos segundo Ingres, sucedendo aos redondos escudos policiais os corpos das odaliscas, e trocando decididamente a gestualidade (que se dizia expressionista...) pelas formas recortadas sobre fundos de cores lisas. Era uma aproximação reconhecível à Pop anglo-saxónica, que foi manifestada em breves declarações esparsas sobre Rauschenberg e em cartas aos filhos, e sobre os novos figurativos ingleses e norte-americanos, mas que depois ficou ocultada pelas declarações de interesse por Ingres e Matisse, cujas odaliscas também atraíam os Pop (Wesselmann e Lichtenstein em especial). A homenagem a Matisse de 1970 no Grand Palais teve largas consequências. “Para afastar a minha pintura do caminho evanescente por onde ela se comprometia perigosamente, impus a mim mesmo aquilo que chamei uma ‘purga’: o desenho exacto, a forma nítida, os planos de cor lisa e saturada, a execução mais anónima possível” (p. 105, 2002 Pomar).
9. No espaço da intimidade, houve novas relações afectivas que se podem sinalizar na sequência de retratos femininos (Manuela Jorge, Graça Lobo, Teresa Marta, as relações longas), retratos íntimos esses, nus, género raro quando não se trata de modelos pagos: retratos pintados a acrílico de corpos fragmentados, rostos reconhecíveis e fragmentos sexuais dispersos, emblemáticos, brasões do corpo. A data de Abril’74 ficou assinalada nos retratos de Graça Lobo com cravos e as cores da bandeira - a serigrafia Graça de Abril (p. X) - e Abriliberdade NOTA 1. “Os retratos de Teresa vêm no fim do ciclo e são retratos serenos” (1980, Helena Vaz da Silva, p. 68). Retratos também de Eduardo Viana e Almada Negreiros, Fernando Pessoa e Camões, e auto-retratos irónicos, dois deles triplos, como puzzles de formas incertas, e outro agora exposto (p. X) onde Pomar se vê como palhaço e partilha o espaço com um macaco, animal com que gosta de se identificar. E outros retratos de amigos e amigas - Luisa (Correia Pereira); Mimi, mulher de Dacosta; o galerista Kami Masrour, da Bellechasse, e a sua mulher Nelly), Maria Bello ou Ju, e Annie, africana e relação breve - numa série extensa que se apresentou em 1973 na 111, ainda com as variações sobre Ingres e outros clássicos (eram 45 telas e uma dezena de desenhos). A anterior individual de pintura era de 1966 e a mudança nunca era compreendida ou apreciada pelos públicos, preferia-se sempre a fase anterior. Simultâneos mas formalmente muito diferentes, houve outros retratos, desenhados linearmente a lápis, de que se expõe o primeiro, Alberto Lacerda, 1970 (p. X), realizado a seu pedido e que desencadeou a série que foi até 1977, do amigo de sempre Manuel Torres, Manuel de Brito, Patrick Waldberg, Jorge Martins, Costa Pinheiro e Eduardo Luiz, além das mulheres próximas. Publicou-se em álbum na Imprensa Nacional prefaciado pelo amigo Fernando Gil, em 1987.
10. E por fim (?) importa também referir a experiência vivida da psicanálise, breve, e a abertura a leituras muito actualizadas, detidamente citadas no longo prefácio-ensaio que escreveu para a exposição de 1973, e que vinham transformando a própria relação com a prática da arte: John Cage (“depois todos os intervalos me atraíram”, Douglas Cooper (“o verdadeiro problema é ser”), Lacan, Ronald D. Laing, Deleuze/Gattari, etc. A ideia de pintura afastara-se das questões do modernismo formalista dos anos 60 e o seu questionamento volvia-se em experiência existencial, pintar como maneira de existir - “A imagem põe a palavra no índex”; “a pintura, toda a expressão, toda a acção, é corpórea: o inverso do nome, da obra de código” (1973, catálogo Gal. 111). “Tudo depende de descobrir o que de vital existe na franja. O que de vital escapa ao projecto, o que de vital contesta o projecto.” (1978 entrevista de Maria Bello).
NOTA 1: exposto na revisão comemorativa de Serralves, “Pré/Pós - Declinações visuais do 25 de Abril”.
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