ITINERÁRIO
De uma maneira geral trabalho sem custo, pelo menos oito horas por dia, e isso porque consegui uma fusão de trabalho em si com o jogo do prazer criativo. Essa devia ser, aliás, uma possibilidade oferecida a todas as pessoas, ou conquistada por todas as pessoas. (Entrevista de Fernando Dacosta, 1978, “D.N.”)
Nunca fui de fazer grandes exposições. Para mim, expor é secundário, embora todas as pessoas gostem de ser gostadas. O expor é uma situação de oferta, de comunicação com os outros, de amor… É mais estimulante a palavra que se recebe de alguém que não se conhece do que o discurso oficial. (Idem)
ANOS 60, PISO ZERO
Como dividir em períodos ou etapas a continuidade da pintura e a sua mudança constante e aparentemente súbita? Ou em tópicos de um longo e diverso itinerário. Dispôs-se de uma cronologia das obras e de um espaço muito específico, difícil. Aqui ir-se-á fazendo também referência a telas ausentes associadas às que se mostram, e propõe-se aos interessados a simultânea consulta dos dois volumes do Catálogo Raisonné, também acessíveis no espaço do Atelier-Museu Júlio Pomar.
O piso zero, dedicado aos primeiros anos 60, organizou-se em núcleos temáticos, cenas de trabalho, touros e cavalos, animais, paisagens, pontuado por algumas relevantes peças soltas e também pela irrupção desencontrada, mas em diálogo, de três obras de data posterior: um retrato de Teresa Marta, 1975, um Auto-retrato de 1972, numa composição dupla e reversível acompanhando o artista-palhaço com uma cara de macaco (optou-se por colocá-la por cima), e, já de passagem para o piso superior, a emblemática serigrafia Graça de Abril, de 1974.
As peças soltas, e são todas importantes, surgem isoladas, numa outra triangulação: O Carro das Mulas (colecção Igrejas Caeiro, exposto no Salão da Primavera de 1960), que divide a entrada com uma grande Cena de Praia, nocturna, de 1959-60 (coleção CAM-FCG), e nelas sobrevive uma fase negra e ibérica que quis associar Goya e Columbano. Note-se aqui a densidade matérica do óleo, e a luz que emana da cor sombria. Acrescentou-se depois Cegos de Madrid, de 1957-59, também do CAM, que vem de uma cena surpreendida na viagem por Madrid do ano anterior, e a comprová-lo está um desenho na black box feito da ocasião. Longe, o Casamento, de 1961, é (também) um grupo em movimento que se conjuga com uma ausente Procissão (1962, C.R. n.º 222) e com outros casos em que a imagem aparece e irrompe, frontal, e se detém sobre o espaço plano vertical e abstracto da tela (Metros e Corridas de Cavalos tratam a mesma «questão»). E algo escondida à entrada a Batalha d’après Uccello, de 1964, num formato 50x150cm que o pintor usará com frequência (Pomar irá relacionar com os seus Maios os guerreiros do mestre italiano preferido). Observem-se as caveiras dos cegos que se amparam com as lotarias pregadas à roupa e as duas caveiras em Casamento, também muito presentes numa das gravuras do mesmo assunto, que não foi editada; depois em Parade, 1966 (nº 343) – a caveira foi um motivo muitas vezes desenhado do natural no Musée de l’Homme. E é interessante que o Casamento tenha sido o mais caro quadro vendido em leilão, depois do Almoço do Trolha.
Nas paredes exteriores da black box, Tauromaquias e Corridas, que são as séries mais numerosas e conhecidas, comparecem de modo sintético: são as telas mais emblemáticas desta fase de interesse pela conjunção/explosão de forças e velocidades, com a gestualidade do óleo fluida, leve e vibrante.
Mais abundantes aqui são as cenas de trabalho do povo, as paisagens, em geral ignoradas, e os animais (de estimação) que também estão na terceira parede da caixa negra.
Os temas do trabalho vinham de 1959 (duas Fonte da Telha) e prosseguiram até 1963: pescadores e sargaceiros, a recolha das redes, a pisa do vinho, faltando aqui uma das Debulhas, de 1961, em que o pintor insistiu, mas à qual não se teve acesso. Dois Sargaços, de um conjunto de 6, com dois deles não fotografados nem localizados, e parece agora que o importante Cena de Praia (col. CAM) será também referente à apanha do sargaço, em opraias a norte.
Não será um intencional programa antropológico ou social, são espectáculos vistos, situações observadas em férias na praia (Albufeira, 1961, por três meses) ou no campo – férias de observação e de trabalho quase sempre –, e é ainda a interessada relação com o povo, que também continuava muito presente na gravura. Pisa I, de 1961, é uma de três, até 63, certamente vistas em Aregos, Resende, Viseu, onde muito desenhou, e esta pertenceu ao amigo e cúmplice Manuel Torres, gestor da Cooperativa Gravura e sempre proprietário do Almoço do Trolha, que o recebia na sua quinta e na moradia do Restelo, para a qual Pomar fez decorações exteriores. Irrompem no espaço vago, aberto, indefinido do «fundo» seis rostos frontais que lembram Goya – recorde-se Mogiganga (1962, Col. Manuel de Brito/111), ausente da exposição, que é variação sobre uma gravura de Goya, pequena cena burlesca de tourada, passada do preto e branco à explosão de vermelhos. Há outras situações de movimentos colectivos em quadros singulares: além de Casamento e Procissão, importaria ver Queimar o Judas, de 63 (nº 250) – e as cenas de touros são também trabalhos e espectáculos populares. Fazem falta as vistas da gente de Marrocos (Rua Moura, Berberes e Canto Berbere, também de 63), três quadros da viagem com Alice Jorge em 62. Já em França, houve Parade (desfile de máscaras ou caveiras) e Foire du Trône (feira popular, fête foraine) de 66, com várias variantes destruídas (ver Relatórios de Bolseiro de 1966 e Void* vol. III).
O núcleo das paisagens aparecerá como uma surpresa – nunca constituíram séries, mas foram existindo ocultas entre outros interesses. Existiram as primeiras já em 1952-53 (Azenhas do Mar, Ericeira), coincidindo em discretos formatos intimistas com obras militantes e encomendas decorativas desses anos mais difíceis. A paisagem é para Pomar um género raro; tentado na segunda metade da mesma década de 50, com variável resultado, Lisboa (a Avenida, o Coliseu) vista a partir do 4º andar da Rua da Alegria. Existe de 1958 um interessante e amplo Cais da Ribeira (Col. Mário Soares).
Aqui abriu-se a secção com uma das duas vistas de Barcos no mar de Albufeira, 1962, certamente nunca expostas – a que deveria associar-se uma Figueira «abstracta», da colecção DN/Global Media, não emprestado (vejam-se dois desenhos vindos de todo um caderno de «estudos», na black box) – e acompanharam as cenas de pescadores. Seria um possível núcleo referente a Albufeira (e surge a ideia de toda uma possível exposição futura de quadros de viagem, de lugares visitados e de férias, de praias, paisagens e motivos locais, que passaria pelas Astúrias, 57-59, até aos Mascarados de Pirenópolis e aos Índios da Amazónia, de 1986-90, sempre séries surgidas de convites e/ou de oportunidades de veraneio activo).
Continuando pelas paisagens mostradas, temos a muito movimentada Paisagem de Lisboa de 1961 (col. Jorge de Brito), e logo a pequena Ponte D. Luiz, Porto, 1962 (antiga colecção Alice Jorge), que teve de isolar-se no piso superior. As pontes, sempre nocturnas, foram várias e uma de grande dimensão, perdida, foi a Pittsburg, concurso então mais famoso que Veneza; outra estará em Luanda, já de 1965 (não fotografada), retomando o tema numa encomenda de Manuel Vinhas: «Ficou pronta e entregue – afinal não é para o Porto, mas para Luanda, para o Banco Comercial de Angola. Deu jeito (para pagar as férias!) E tive prazer a fazê-la; ficou uma coisa cinzenta, muito pouco definida; fui saltando de fotografia para fotografia, e fi-la relativamente depressa» (carta de Setembro 1965). É simultânea dos três quadros dos Beatles («penso continuar a série, tenho impressão que vai dar pano para mangas» - idem - mas foram destruídos).
Lisboa está também presente em Visto da Janela, 1966, que poderia ser entendida como uma «pintura abstracta», que não é – talvez memória da casa de infância às Janelas Verdes e onde, acima à direita, se vislumbra o Tejo e um barco (certamente inédita até 2004, col. Ilidio Pinho, vinda da antiga col. Augusto Abreu/Burmester). Por fim, Saudades de Lisboa, já de 1968, inédito também até 2004 («Autobiografia», Sintra Museu Berardo) com título atribuído por Manuel Vinhas, que encomendou, e que veio de Paris, paisagem imaginada com um rio amarelo. E vejam-se na black box, quando da chegada a Paris, pequenos desenhos da Pont des Arts, junto a apontamentos do Metro e às praias da Caparica, paisagem humana, do ano da partida.
De 1976, conhece-se Belle-Isle-en-Mer (col. FJP/AMJP), que é obra charneira, vista do lugar (em férias) e corpos em metamorfose, fim de ciclo e começo de outro.
Outro núcleo inesperado, os animais, que estavam presentes desde o início da carreira. Dois Chimpanzé, 1962 em grande formato, e os pequenos Mocho, 1960 (faltou a Coruja, col. DN/ Global Media) e Abutre, de Paris 1963 (haverá outros Mochos em 1972, diversões muito a divergir dos Banhos d’après Ingres e dos Retratos). Os símios, com Mono Sábio/Singerie, foram mostrados nas exposições das Galerias DN e Lacloche («Tauromachies»), eram obras maiores, e os dois expostos são retratos de corpo inteiro que nos olham de frente, únicos personagens isolados na pintura desses anos de intensa e vibrante produção. O terceiro referido veio de uma tabuleta de comércio vista em Lisboa (?) ou só fotografada. Há macacos desde o princípio, no livro Bichos, Bichinhos e Bicharocos, com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1948, e logo se multiplicaram os «Animais Sábios» em cerâmicas e pequenas esculturas de imediato sucesso (exposições de 1950 e 1951), quase todas desaparecidas. Da chegada a Paris datam cadernos de desenhos de observação, com macacos e inúmeros outros bichos (apontados na black box), e sempre lhes está associado o humor, que com a expressão erótica é uma das linhas condutoras (linhas mestras?) da produção do pintor. Houve também pequenas Porquinhas/Truies amáveis em 66, intervalos de trabalho livre, oferecidas e agora inacessíveis. Viriam muito mais tarde os ciclos de bichos antropomórficos, os macacos humanizados e trocistas e os porcos ligados às aventuras de Ulisses e Circe, que foram uma vez arrumados por Marcelin Pleynet entre os «Animais de Companhia» (2004, «Autobiografia»). O largo bestiário desenhado liga o gosto da observação, o exercício da mão e do olhar, e o humor.
Continue-se no Piso 0 com a presença de dois D. Quixote (de entre os seis do ciclo que surgiu por extensão das ilustrações e das gravuras, 1960-63), um deles inédito e o outro, com os Carneiros, é uma grande pintura dinâmica e explosiva onde o cavaleiro avança sobre o espectador, como avançará D. Fuas, noutro programa posterior (1988-89, ver 2022 catálogo Pintura de Histórias). Associa-se-lhes a escultura Guerreiro, mas que deles ficou distanciada. Ao lado estão algumas esculturas-assemblagens de 1967, outros volumes, esses «abstractos», que agregam objectos encontrados, interrompem o curso da obra pintada e terão consequências indirectas nos Banhos Turcos e nos Retratos e depois no ciclo das colagens de telas recortadas. A escultura em ferro associada ao Quixote, Guerreiro (há, em cima, um Torso forjado, pequena peça singular), é uma muito diferente prática escultórica depois dos retratos modelados de amigos, nos anos 40/50, e da cerâmica figurativa que fez desde início. Os ferros soldados como inovação vêm dos anos 30 (Picasso e Gonzalez) e permitem o desenho no espaço; com David Smith, Chillida, Mark di Suvero reanimam-se nos anos 50 no campo da abstracção, enquanto a «figuração expressiva ou existencial» ou biomórfica (1986, Margot Rowell) tem também largo curso paralelo em escultura. César é uma referência entre as duas vias. Mais do que desenho, é em Pomar pintura no espaço, a preto e branco, precedendo a assemblagem.
Ainda os Quixote: a ilustração foi desde o início uma actividade constante por cumplicidades literárias e encomenda editorial, que equilibrava o escasso mercado – mas os desenhos para Pantagruel (65-66) foram uma iniciativa sua, a única entre os alheios convites. Mais tarde, desde 1976, os desafios de Joaquim Vital associam-se a novas séries de pinturas: Tigres, o Corvo de Poe, A Caça ao Snak de Lewis Carroll, as Mães Índias de Pedro Vaz de Caminha, Carta do Achamento do Brasil. «A bem dizer, eu não ilustro um texto: o texto sugere-me desenhos que o podem acompanhar e estes procuro fazê-los, para meu prazer, o melhor que posso e sei» (1980, Helena V. Silva). A ilustração de encomenda, cumprida em geral sem obrigação descritiva, é ocasião de «experiências», que dão lugar a novas obras e direcções – a relação com a literatura é um continente de que se fez a revisão em 2022 e 23 (Os Livros de Júlio Pomar e Pintura de Histórias, exposições e catálogos do Atelier-Museu).
Na caixa negra, muito resumidamente, está o desenho de observação – apontamentos, estudos – que conservou nos pequenos cadernos de bolso e de viagem e de férias (Albufeira, Marrocos, Caparica, etc.) e em especial da chegada a Paris (Musée de l’Homme, Jardin des Plantes e Ménagerie, o zoo, Jardin d’Acclimatation, Pont des Arts) e do Louvre, anotações de imagens e textos de reflexão, citações. Mas é disciplina autónoma nas Courses, nos Catch de 65-66, no referido Pantagruel, e nos Retratos a Lápis (1987, ed. INCM), que vão de 1970 a 77. Toda uma parede foi dedicada aos desenhos eróticos: mostram-se Étreintes de 60 levadas à II Exposição Gulbenkian, Nus de 61 (exposição de grupo «O Modelo», na Galeria DN) – os nus femininos vêm de 1947, da prisão (a Onda), e motivaram logo rejeições e defesas. Há Étreintes e Tauromaquias juntas num mesmo caderno de 63. É uma linha de trabalho e de vida que acompanha toda a carreira. Corpos. Femininos, cúmplices, mas os sexos são ambíguos em dois desenhos passados a litografia da série Catch (foi a figura ser masculina que bloqueou a sua versão em pintura?) Aí se incluíram também as ilustrações para A Selva, numa irrupção frontal da cor, figuras fragmentadas, narrativas. E encerra-se o piso, ao lado, com uma selecção variada de gravuras, onde se verá que a gestualidade da pintura se liga à materialidade do desenho gravado com os ácidos, em especial nas Tauromaquias.
ANOS 60/70, PISO 1
No piso superior ficaram, num topo da galeria, um Rugby e um Maio, emblemáticos do tempo de mudança. As duas séries foram antes mostradas no Atelier-Museu (2018 e 2019). A seguir, mas anterior no tempo, vem toda uma abordagem à abstracção, do Metro aos Estudos para tapeçarias de 1967, dos quais se falou antes.
É significativo ver a pontuação da mudança da obra na simultaneidade das direcções, na Mêlée (Rugby) de 68, no retrato Manuel Vinhas e no primeiro Banho Turco, todos da mesma data (e em baixo ficou Saudades de Lisboa). E logo Mesa dos Jogos, 69-70 (Col. CAM), de secções amovíveis, passando à Superfície Vermelha de 72 (de uma série de sete em dois formatos), um corpo em recorte de arabesco sobre o plano liso em cores unidas, que está já na sequência dos primeiros retratos (Manuela e Viana são de 1970), e é paralelo em data a Tétis (Col. Rui Victorino). Todo este núcleo que vai das odaliscas de Ingres aos retratos íntimos é uma marcação conjunta de dois conjuntos temáticos onde vai longe a exibição do erotismo. A influência de Matisse juntara-se ao agrado pela Pop, e a relação com a estética do cartaz foi evidente em Viana, Almada, etc. – mas nunca se incluíram estas obras, vá-se lá saber porquê (é cegueira dos comissários e talvez vontade de exclusão) nas abordagens nacionais à Arte Pop, de 1997, «The Pop’60’s - Travessia Transatlântica», de Marco Livingstone com Alexandre Melo, no CCB, e de «Pós-pop. Fora do lugar comum - desvios da Pop em Portugal e Inglaterra, 1965-1975», de Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas, na Gulbenkian em 2018 (ver «Anos Pop» em 2023, A. Pomar).
Viu-se que o retrato fora ensaiado com êxito em 67-68, dois de encomenda e aparato (José Ribeiro da Cunha, então já falecido, e Manuel Vinhas, aqui exposto e homenagem ao amigo e coleccionador) e outro em liberdade (a amiga Fátima, Lopes). A eles regressa pouco depois, longa e diversamente (Manuela, 1968-70; Eduardo Viana, 1970; Almada Negreiros, 1972, Fernando Pessoa e Camões, 1973; outras e outros amigos; os auto-retratos), já relacionados com os Banhos Turcos e já em paralelo em pintura e desenho. «A semelhança do retrato é para mim fundamental. (…) A semelhança funciona como a marca. É como o nome escrito. O resto vem quase involuntariamente e tem por função ‘accrocher’ (prender) a personagem à tela» (1991, H.V. Silva).
Aqui a propósito de Manuel Vinhas, lembre-se também Jorge de Brito, não retratado. Um industrial e proprietário – Pomar era convidado para as tentas no Zambujal –, o segundo bancário e aventureiro das finanças, ambos amigos pessoais e coleccionadores desde os anos 50, também de vários modos mecenas, até às mudanças de 75. Com parte substancial da colecção Jorge Brito se fez o início do CAM e várias obras da exposição são, ou vieram, das colecções de ambos.