(Há 40 anos escrevi pela primeira vez sobre René Bertholo. Continuei)
O jogo das memórias de René Bertholo
DN 8 / 4/ 1984
Há circunstâncias em que apetece invocar um argumento de autoridade. Por exemplo, tentar dizer quem é René Bertholo antes de falar da sua última exposição, aberta há dias na Galeria Ana Isabel.
René Bertholo não é muito conhecido em Lisboa. Tem trabalhado e exposto principalmente «lá fora», entre a partida para Munique e Paris em 1957 e o regresso, para o Algarve, em 1981. Nos começos da década de 60 fez parte dos grupos de artistas que romperam com a abstração dominante e recomeçaram - é uma forma de resumir a História, porque muita gente continuara por outros caminhos - a pintar figuras reconhecíveis, onde os graffitti, a banda desenhada, a publicidade, a imagem estandardizada pelo consumo, o imaginário surrealista, naïf, louco ou popular eram de diversos modos apropriados. A esse vasto movimento se chamou nova figuração, novo realismo, figuração narrativa, pop art, conforme os seus diferentes polos geográficos, ou direcções particulares ou preferências dos críticos.
Dessa actividade de R. B. foram chegando a Portugal poucas notícias: em 65 foi um dos seis pintores de Paris reunidos na Bucholz; em 72 expôs na 111. No Centro de Arte Moderna da Gulbenkian há um quadro de R. B. (representação exígua, como aliás sucede com alguns outros artistas, e são raros, cuja obra excedeu os limites do mercado e do gosto interno); também os dois ou três livros que historiam a pintura portuguesa das última décadas incluem uma reprodução a preto e branco, que se poderá rever com proveito, e gosto.
Se vale a pena referir tudo isto é porque importa partir da actual exposição para conhecer uma obra, porque o trabalho actual prolonga com excepcional constância uma linha de criação original de que há a reter três momentos centrais.
Nos anos 60, R. B. espalhava sobre a tela inúmeras figuras e objectos, reconhecíveis uns, «abstractos» outros: casas, emblemas, rostos, um relógio, um livro, um pão, etc., ou formas inventadas, sem identificação possível. O espaço em que as figuras pairam, sem volume e sem centro, é indefinido; as formas dos objectos são «populares» - as do desenho infantil ou naïf, as da B. D. ou do grafritti - remetendo para uma memória aparentemente simples do quotidiano, do qual faz parte a possibilidade da fantasia. Nenhuma interpretação única ou óbvia, na aparência narrativa do quadro, se impõe ao espectador: há uma acumulação de sugestões e múltiplos sinais para a construção de sentidos (o título é muitas vezes uma proposta de leitura). As referências à publicidade, à comunicação massificada estão em geral ausentes, tal como a perspectiva crítica ou a violência que dominam em muito da nova figuração ou arte pop.
Entre 1965 e 1975, R. B. passou a construir objetos de três dimensões, dotados de movimento - máquinas. As figuras ganham uma ainda maior simplicidade (são quase brinquedos), mas movimentam-se graças a complexos mecanismos eléctricos e electrónicos que o próprio pintor fabrica artesanalmente. São, por exemplo, um banco de jardim, uma palmeira e uma ventoinha que agita as suas folhas; ou um arco-íris constituído por seis lâminas de cor que oscilam aleatoriamente movidas por 13 motores; ou um golfinho que salta entre lâminas ondulantes, o mar, e que até pode ser «chamado» com a voz ou batendo as palmas. Conhecidos por «modelos reduzidos», os objectos de R.B. acentuam a comunicabilidade do seu trabalho, desafiando a «seriedade» da arte para reencontrar uma dimensão directamente lúdica, onde a diversão, a fantasia, a infância são palavras-chaves.
O terceiro momento (haveria que falar, não fosse este percurso apenas esquematizado, nas peças escultóricas integradas em espaços colectivos, como no Hospital Distrital do Barreiro), é o da exposição da Ana Isabel. Aí se vêem quadros - o «regresso à pintura» é de 75! - onde se sobrepõem três espaços, em geral quartos teatralmente representados (as três paredes), ou três momentos de um mesmo espaço, em que se acrescentam, ou faltam, uma porta, uma janela, uma escada, etc., e que se preenchem com personagens e objectos (reconhecíveis ou não, como antes acontecia), que também parcialmente se repetem de plano para plano, se deslocam, se modificam.
Ao contrário das primeiras obras referidas, existe agora um espaço definido, tradicional, e os objectos têm volume, por vezes sombra; por outro lado, o quadro continua a não ter um centro, nos seus três planos sucessivos. O seu teor narrativo intensifica-se (a b.d. é uma comparação fácil), e a presença do movimento, na leitura que percorre os três quartos e o aparecer e desaparecer dos objectos - como se em cada um se fizesse uma nova tentativa de recordar um espaço e uma situação -- é também a manitestação de um tempo.
A memória, sabendo-se como nela se juntam o real e o sonho, ou a fantasia, o consciente e o inconsciente, será assim algo que estrutura esta pintura sempre diretamente comunicativa e supostamente «fácil», cuja leitura se faz reconhecendo e recomeçando um idêntico processo de perturbação dos níveis do real.
Estamos longe de uma pintura que se dê como propósito a investigação dos elementos (a luz, a cor..) dela própria, como exercício de reflexão virtuosística. No entanto, no próprio espaço desejado de uma larga comunicação, R. B. inscreve, sobre o imediato carácter lúdido do seu jogo, uma aprofundada revisão da história da pintura, ensaiando e transgredindo todos os seus códigos nas suas figuras miniaturizadas. É de novo a memória que se exerce, a história que se revê na aparente banalidade de um gesto quotidiano. Perpétuo descentramento.
(Galeria Ana Isabel, Rua da Emenda, 111)
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(Esta semana - DN 14-4-1984)
O REGRESSO
A exposição de René Bertholo numa galeria de Lisboa (de que há uma semana se assinalou a importância noutra página) e também a de Jorge Martins integrada na evocação que o Centro de Arte Moderna dedicou ao poeta Saint-John Perse, que constitui (constituem?) a sua terceira apresentação desde o fim da temporada passada, vêm tornar manifesto que se encontra praticamente restabelecido o mercado das artes plásticas em Portugal.
Se é verdade que o mercado pode ser tema de interessantes discussões, parece incontestável que é no seu funcionamento e na sua lógica que se confirmam - sempre antes dos museus - os valores de criação neste domínio das artes (e diz-se «confirmam», para deixar à crítica e à teoria funções de descoberta ou explicação). Sabe-se também como as alterações político-económicas surgidas com o 25 de Abril vieram pôr em causa os fundamentos de todos os mercados - mas não importa agora, também, julgar as causas da referida «normalização», dez anos depois.
O que se afigura decisivo é aquelas exposições, e outras anteriores, como as de Costa Pinheiro, Paula Rego ou Eduardo Luís (a de António Dacosta é um caso diferente, por se tratar de um recente regresso à pintura e de um pintor de outra geração), virem significar o contacto regular com artistas que, desde os anos 60, ou finais de 50, desenvolveram a sua actividade criativa no estrangeiro, integrados - e não como epígonos - nos movimentos internacionais que vêm renovando as artes.
De facto, apesar dos círculos mundanos, das academias e outros meios mais ou menos institucionais viverem das pequenas glórias caseiras, que duramente defendem os pequenos privilégios, a realidade das artes plásticas é internacional e a sua história, tal como o seu mercado, não têm fronteiras. Como se prova pelos casos raros de um Amadeu, uma Vieira, uma Paula Rego, uma Lourdes Castro, um René Bertholo, um Jorge Martins, e pouco mais.
É natural que esse refazer de contactos venha a produzir como efeito uma moralização daquilo que têm sido os critérios do gosto público - formado, na ausência de mercado, por um pequeno comércio e seu cortejo de pobres favores. No entanto, na falta de uma política estatal de cultura (vejam-se as portas fechadas da Galeria Almada Negreiros e observe-se como os artistas apenas vão servindo para abrilhantar jantares de governantes), há que sugerir à Fundação Gulbenkian que prolongue a sua acção permitindo rever e principalmente descobrir o que foram esses itinerários artísticos percorridos no estrangeiro. Para todos os artistas citados, e alguns outros mais jovens, a apresentação de retrospectivas (na medida em que for ainda possível reunir as obras dispersas lá por fora) é - não a homenagem que certamente dispensariam - mas o preenchimento de graves lacunas culturais nossas. Foi em geral a Gulbenkian que, felizmente, os ajudou a partir; cabe-lhe agora a responsabilidade e o mérito do «regresso».
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