Extracatálogo (coluna)
«Investir» em arte
Expresso, Cartaz 10-12-2005
É conhecida a falta de proficiência (para evitar usar uma palavra mais áspera, incompetência) de grande parte das casas leiloeiras e de certos agentes do segundo mercado, para além da leviandade com que se fazem e desfazem colecções de arte dos séculos XIX e XX, ao contrário do que sucede noutros segmentos especializados do coleccionismo. São demasiado frequentes as peças mal classificadas e erradamente avaliadas, ou os leilões organizados sem critério. Mas se a falta de solidez dos profissionais não favorece o mercado e o destino das obras, também é prejudicial a ausência de seriedade dos comentadores, mesmo se eles, muito justamente, não são, de facto, levados a sério.
Quando um recorde num leilão justificava a atenção de noticiário televisivo, lá surgia um crítico «moderno» a justificar com a ignorância de pretensos amadores ou o novo-riquismo da burguesia o apreço por um Silva Porto ou um Malhoa. Agora, numa revista que pena em tornar-se credível em qualquer um dos sectores que abarca, a «L+Arte» («leilões+arte+antiguidades»), aparece Anísio Franco a lamentar os 200 mil euros «gastos» numa das raras pinturas de Amadeo de Souza Cardoso que têm passado em leilão - neste caso, do Correio Velho, que é excepção àquela caracterização do sector.
O quadro é o Pastor, cerca de 1910-11, de apenas 27 por 35 cm, mas muito curiosamente significativo de um cruzamento de interesses e pesquisas que por essa altura iriam levar o pintor a cultivar a original elegância Arte Nova, ou «persa», do seu primeiro estilo modernista e decorativo que tanto êxito encontrou em 1913 no Armory Show de Nova Iorque. É uma peça dos anos da acelerada formação parisiense, referenciada em temas domésticos que voltariam nos motivos de Manhufe, com ensaios já de um desenho rítmico que diverge do formulário cubista - dizer que as suas «experiências traziam consigo muito da tradição oitocentista» (a figura, a paisagem, a perspectiva?) seria um elogio se não quisesse ser uma dessas inanidades da rotina crítica. Não é uma definitiva obra-prima, mas é um passo da brevíssima carreira e é, principalmente, já que sobre quase toda a sua obra pesa a fatalidade da posse institucional, uma raridade.
Tal como sucede em política com as eleições (não com as sondagens), são os leilões que servem de referência quanto ao valor de mercado, não as opiniões de comentadores. Recomendar, pelo mesmo preço, uma qualquer colagem de Braque ou «uma pintura da fase analítica de Picasso» é continuar na via do disparate, para além de com este género de prosa se cumprir a regra de desvalorizar as realidades fortíssimas dos mercados nacionais, que, ao contrário do que se pretende, não são uma aberração portuguesa. Noutros países mais poderosos há mesmo importantes mercados provinciais e até locais, o que se pode avaliar em Nova Iorque e São Francisco, em Berlim e Dusseldorf.
Não é por acaso que noutras páginas da mesma revista as informações dos leilões internacionais referem preços da ordem dos 224 mil, dos 432 mil, do milhão e 206 mil euros pagos por um modesto neoclássico britânico, um naturalista da Lorena, um seguidor polaco de Alma-Tedema. São muito baixos os valores atingidos pelas obras importantes de artistas portugueses e são ridículas as apreciações sobre «investimentos» em arte dos nossos pseudo-especialistas.
Na Colecção Rui Vitorino, exposto na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva
artigo referido por Anabela Duarte no catálogo, não referenciado