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ITINERÁRIO
De uma maneira geral trabalho sem custo, pelo menos oito horas por dia, e isso porque consegui uma fusão de trabalho em si com o jogo do prazer criativo. Essa devia ser, aliás, uma possibilidade oferecida a todas as pessoas, ou conquistada por todas as pessoas. (Entrevista de Fernando Dacosta, 1978, “D.N.”)
Nunca fui de fazer grandes exposições. Para mim, expor é secundário, embora todas as pessoas gostem de ser gostadas. O expor é uma situação de oferta, de comunicação com os outros, de amor… É mais estimulante a palavra que se recebe de alguém que não se conhece do que o discurso oficial. (Idem)
ANOS 60, PISO ZERO
Como dividir em períodos ou etapas a continuidade da pintura e a sua mudança constante e aparentemente súbita? Ou em tópicos de um longo e diverso itinerário. Dispôs-se de uma cronologia das obras e de um espaço muito específico, difícil. Aqui ir-se-á fazendo também referência a telas ausentes associadas às que se mostram, e propõe-se aos interessados a simultânea consulta dos dois volumes do Catálogo Raisonné, também acessíveis no espaço do Atelier-Museu Júlio Pomar.
O piso zero, dedicado aos primeiros anos 60, organizou-se em núcleos temáticos, cenas de trabalho, touros e cavalos, animais, paisagens, pontuado por algumas relevantes peças soltas e também pela irrupção desencontrada, mas em diálogo, de três obras de data posterior: um retrato de Teresa Marta, 1975, um Auto-retrato de 1972, numa composição dupla e reversível acompanhando o artista-palhaço com uma cara de macaco (optou-se por colocá-la por cima), e, já de passagem para o piso superior, a emblemática serigrafia Graça de Abril, de 1974.
As peças soltas, e são todas importantes, surgem isoladas, numa outra triangulação: O Carro das Mulas (colecção Igrejas Caeiro, exposto no Salão da Primavera de 1960), que divide a entrada com uma grande Cena de Praia, nocturna, de 1959-60 (coleção CAM-FCG), e nelas sobrevive uma fase negra e ibérica que quis associar Goya e Columbano. Note-se aqui a densidade matérica do óleo, e a luz que emana da cor sombria. Acrescentou-se depois Cegos de Madrid, de 1957-59, também do CAM, que vem de uma cena surpreendida na viagem por Madrid do ano anterior, e a comprová-lo está um desenho na black box feito da ocasião. Longe, o Casamento, de 1961, é (também) um grupo em movimento que se conjuga com uma ausente Procissão (1962, C.R. n.º 222) e com outros casos em que a imagem aparece e irrompe, frontal, e se detém sobre o espaço plano vertical e abstracto da tela (Metros e Corridas de Cavalos tratam a mesma «questão»). E algo escondida à entrada a Batalha d’après Uccello, de 1964, num formato 50x150cm que o pintor usará com frequência (Pomar irá relacionar com os seus Maios os guerreiros do mestre italiano preferido). Observem-se as caveiras dos cegos que se amparam com as lotarias pregadas à roupa e as duas caveiras em Casamento, também muito presentes numa das gravuras do mesmo assunto, que não foi editada; depois em Parade, 1966 (nº 343) – a caveira foi um motivo muitas vezes desenhado do natural no Musée de l’Homme. E é interessante que o Casamento tenha sido o mais caro quadro vendido em leilão, depois do Almoço do Trolha.
Nas paredes exteriores da black box, Tauromaquias e Corridas, que são as séries mais numerosas e conhecidas, comparecem de modo sintético: são as telas mais emblemáticas desta fase de interesse pela conjunção/explosão de forças e velocidades, com a gestualidade do óleo fluida, leve e vibrante.
Mais abundantes aqui são as cenas de trabalho do povo, as paisagens, em geral ignoradas, e os animais (de estimação) que também estão na terceira parede da caixa negra.
Os temas do trabalho vinham de 1959 (duas Fonte da Telha) e prosseguiram até 1963: pescadores e sargaceiros, a recolha das redes, a pisa do vinho, faltando aqui uma das Debulhas, de 1961, em que o pintor insistiu, mas à qual não se teve acesso. Dois Sargaços, de um conjunto de 6, com dois deles não fotografados nem localizados, e parece agora que o importante Cena de Praia (col. CAM) será também referente à apanha do sargaço, em opraias a norte.
Não será um intencional programa antropológico ou social, são espectáculos vistos, situações observadas em férias na praia (Albufeira, 1961, por três meses) ou no campo – férias de observação e de trabalho quase sempre –, e é ainda a interessada relação com o povo, que também continuava muito presente na gravura. Pisa I, de 1961, é uma de três, até 63, certamente vistas em Aregos, Resende, Viseu, onde muito desenhou, e esta pertenceu ao amigo e cúmplice Manuel Torres, gestor da Cooperativa Gravura e sempre proprietário do Almoço do Trolha, que o recebia na sua quinta e na moradia do Restelo, para a qual Pomar fez decorações exteriores. Irrompem no espaço vago, aberto, indefinido do «fundo» seis rostos frontais que lembram Goya – recorde-se Mogiganga (1962, Col. Manuel de Brito/111), ausente da exposição, que é variação sobre uma gravura de Goya, pequena cena burlesca de tourada, passada do preto e branco à explosão de vermelhos. Há outras situações de movimentos colectivos em quadros singulares: além de Casamento e Procissão, importaria ver Queimar o Judas, de 63 (nº 250) – e as cenas de touros são também trabalhos e espectáculos populares. Fazem falta as vistas da gente de Marrocos (Rua Moura, Berberes e Canto Berbere, também de 63), três quadros da viagem com Alice Jorge em 62. Já em França, houve Parade (desfile de máscaras ou caveiras) e Foire du Trône (feira popular, fête foraine) de 66, com várias variantes destruídas (ver Relatórios de Bolseiro de 1966 e Void* vol. III).
O núcleo das paisagens aparecerá como uma surpresa – nunca constituíram séries, mas foram existindo ocultas entre outros interesses. Existiram as primeiras já em 1952-53 (Azenhas do Mar, Ericeira), coincidindo em discretos formatos intimistas com obras militantes e encomendas decorativas desses anos mais difíceis. A paisagem é para Pomar um género raro; tentado na segunda metade da mesma década de 50, com variável resultado, Lisboa (a Avenida, o Coliseu) vista a partir do 4º andar da Rua da Alegria. Existe de 1958 um interessante e amplo Cais da Ribeira (Col. Mário Soares).
Aqui abriu-se a secção com uma das duas vistas de Barcos no mar de Albufeira, 1962, certamente nunca expostas – a que deveria associar-se uma Figueira «abstracta», da colecção DN/Global Media, não emprestado (vejam-se dois desenhos vindos de todo um caderno de «estudos», na black box) – e acompanharam as cenas de pescadores. Seria um possível núcleo referente a Albufeira (e surge a ideia de toda uma possível exposição futura de quadros de viagem, de lugares visitados e de férias, de praias, paisagens e motivos locais, que passaria pelas Astúrias, 57-59, até aos Mascarados de Pirenópolis e aos Índios da Amazónia, de 1986-90, sempre séries surgidas de convites e/ou de oportunidades de veraneio activo).
Continuando pelas paisagens mostradas, temos a muito movimentada Paisagem de Lisboa de 1961 (col. Jorge de Brito), e logo a pequena Ponte D. Luiz, Porto, 1962 (antiga colecção Alice Jorge), que teve de isolar-se no piso superior. As pontes, sempre nocturnas, foram várias e uma de grande dimensão, perdida, foi a Pittsburg, concurso então mais famoso que Veneza; outra estará em Luanda, já de 1965 (não fotografada), retomando o tema numa encomenda de Manuel Vinhas: «Ficou pronta e entregue – afinal não é para o Porto, mas para Luanda, para o Banco Comercial de Angola. Deu jeito (para pagar as férias!) E tive prazer a fazê-la; ficou uma coisa cinzenta, muito pouco definida; fui saltando de fotografia para fotografia, e fi-la relativamente depressa» (carta de Setembro 1965). É simultânea dos três quadros dos Beatles («penso continuar a série, tenho impressão que vai dar pano para mangas» - idem - mas foram destruídos).
Lisboa está também presente em Visto da Janela, 1966, que poderia ser entendida como uma «pintura abstracta», que não é – talvez memória da casa de infância às Janelas Verdes e onde, acima à direita, se vislumbra o Tejo e um barco (certamente inédita até 2004, col. Ilidio Pinho, vinda da antiga col. Augusto Abreu/Burmester). Por fim, Saudades de Lisboa, já de 1968, inédito também até 2004 («Autobiografia», Sintra Museu Berardo) com título atribuído por Manuel Vinhas, que encomendou, e que veio de Paris, paisagem imaginada com um rio amarelo. E vejam-se na black box, quando da chegada a Paris, pequenos desenhos da Pont des Arts, junto a apontamentos do Metro e às praias da Caparica, paisagem humana, do ano da partida.
De 1976, conhece-se Belle-Isle-en-Mer (col. FJP/AMJP), que é obra charneira, vista do lugar (em férias) e corpos em metamorfose, fim de ciclo e começo de outro.
Outro núcleo inesperado, os animais, que estavam presentes desde o início da carreira. Dois Chimpanzé, 1962 em grande formato, e os pequenos Mocho, 1960 (faltou a Coruja, col. DN/ Global Media) e Abutre, de Paris 1963 (haverá outros Mochos em 1972, diversões muito a divergir dos Banhos d’après Ingres e dos Retratos). Os símios, com Mono Sábio/Singerie, foram mostrados nas exposições das Galerias DN e Lacloche («Tauromachies»), eram obras maiores, e os dois expostos são retratos de corpo inteiro que nos olham de frente, únicos personagens isolados na pintura desses anos de intensa e vibrante produção. O terceiro referido veio de uma tabuleta de comércio vista em Lisboa (?) ou só fotografada. Há macacos desde o princípio, no livro Bichos, Bichinhos e Bicharocos, com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1948, e logo se multiplicaram os «Animais Sábios» em cerâmicas e pequenas esculturas de imediato sucesso (exposições de 1950 e 1951), quase todas desaparecidas. Da chegada a Paris datam cadernos de desenhos de observação, com macacos e inúmeros outros bichos (apontados na black box), e sempre lhes está associado o humor, que com a expressão erótica é uma das linhas condutoras (linhas mestras?) da produção do pintor. Houve também pequenas Porquinhas/Truies amáveis em 66, intervalos de trabalho livre, oferecidas e agora inacessíveis. Viriam muito mais tarde os ciclos de bichos antropomórficos, os macacos humanizados e trocistas e os porcos ligados às aventuras de Ulisses e Circe, que foram uma vez arrumados por Marcelin Pleynet entre os «Animais de Companhia» (2004, «Autobiografia»). O largo bestiário desenhado liga o gosto da observação, o exercício da mão e do olhar, e o humor.
Continue-se no Piso 0 com a presença de dois D. Quixote (de entre os seis do ciclo que surgiu por extensão das ilustrações e das gravuras, 1960-63), um deles inédito e o outro, com os Carneiros, é uma grande pintura dinâmica e explosiva onde o cavaleiro avança sobre o espectador, como avançará D. Fuas, noutro programa posterior (1988-89, ver 2022 catálogo Pintura de Histórias). Associa-se-lhes a escultura Guerreiro, mas que deles ficou distanciada. Ao lado estão algumas esculturas-assemblagens de 1967, outros volumes, esses «abstractos», que agregam objectos encontrados, interrompem o curso da obra pintada e terão consequências indirectas nos Banhos Turcos e nos Retratos e depois no ciclo das colagens de telas recortadas. A escultura em ferro associada ao Quixote, Guerreiro (há, em cima, um Torso forjado, pequena peça singular), é uma muito diferente prática escultórica depois dos retratos modelados de amigos, nos anos 40/50, e da cerâmica figurativa que fez desde início. Os ferros soldados como inovação vêm dos anos 30 (Picasso e Gonzalez) e permitem o desenho no espaço; com David Smith, Chillida, Mark di Suvero reanimam-se nos anos 50 no campo da abstracção, enquanto a «figuração expressiva ou existencial» ou biomórfica (1986, Margot Rowell) tem também largo curso paralelo em escultura. César é uma referência entre as duas vias. Mais do que desenho, é em Pomar pintura no espaço, a preto e branco, precedendo a assemblagem.
Ainda os Quixote: a ilustração foi desde o início uma actividade constante por cumplicidades literárias e encomenda editorial, que equilibrava o escasso mercado – mas os desenhos para Pantagruel (65-66) foram uma iniciativa sua, a única entre os alheios convites. Mais tarde, desde 1976, os desafios de Joaquim Vital associam-se a novas séries de pinturas: Tigres, o Corvo de Poe, A Caça ao Snak de Lewis Carroll, as Mães Índias de Pedro Vaz de Caminha, Carta do Achamento do Brasil. «A bem dizer, eu não ilustro um texto: o texto sugere-me desenhos que o podem acompanhar e estes procuro fazê-los, para meu prazer, o melhor que posso e sei» (1980, Helena V. Silva). A ilustração de encomenda, cumprida em geral sem obrigação descritiva, é ocasião de «experiências», que dão lugar a novas obras e direcções – a relação com a literatura é um continente de que se fez a revisão em 2022 e 23 (Os Livros de Júlio Pomar e Pintura de Histórias, exposições e catálogos do Atelier-Museu).
Na caixa negra, muito resumidamente, está o desenho de observação – apontamentos, estudos – que conservou nos pequenos cadernos de bolso e de viagem e de férias (Albufeira, Marrocos, Caparica, etc.) e em especial da chegada a Paris (Musée de l’Homme, Jardin des Plantes e Ménagerie, o zoo, Jardin d’Acclimatation, Pont des Arts) e do Louvre, anotações de imagens e textos de reflexão, citações. Mas é disciplina autónoma nas Courses, nos Catch de 65-66, no referido Pantagruel, e nos Retratos a Lápis (1987, ed. INCM), que vão de 1970 a 77. Toda uma parede foi dedicada aos desenhos eróticos: mostram-se Étreintes de 60 levadas à II Exposição Gulbenkian, Nus de 61 (exposição de grupo «O Modelo», na Galeria DN) – os nus femininos vêm de 1947, da prisão (a Onda), e motivaram logo rejeições e defesas. Há Étreintes e Tauromaquias juntas num mesmo caderno de 63. É uma linha de trabalho e de vida que acompanha toda a carreira. Corpos. Femininos, cúmplices, mas os sexos são ambíguos em dois desenhos passados a litografia da série Catch (foi a figura ser masculina que bloqueou a sua versão em pintura?) Aí se incluíram também as ilustrações para A Selva, numa irrupção frontal da cor, figuras fragmentadas, narrativas. E encerra-se o piso, ao lado, com uma selecção variada de gravuras, onde se verá que a gestualidade da pintura se liga à materialidade do desenho gravado com os ácidos, em especial nas Tauromaquias.
ANOS 60/70, PISO 1
No piso superior ficaram, num topo da galeria, um Rugby e um Maio, emblemáticos do tempo de mudança. As duas séries foram antes mostradas no Atelier-Museu (2018 e 2019). A seguir, mas anterior no tempo, vem toda uma abordagem à abstracção, do Metro aos Estudos para tapeçarias de 1967, dos quais se falou antes.
É significativo ver a pontuação da mudança da obra na simultaneidade das direcções, na Mêlée (Rugby) de 68, no retrato Manuel Vinhas e no primeiro Banho Turco, todos da mesma data (e em baixo ficou Saudades de Lisboa). E logo Mesa dos Jogos, 69-70 (Col. CAM), de secções amovíveis, passando à Superfície Vermelha de 72 (de uma série de sete em dois formatos), um corpo em recorte de arabesco sobre o plano liso em cores unidas, que está já na sequência dos primeiros retratos (Manuela e Viana são de 1970), e é paralelo em data a Tétis (Col. Rui Victorino). Todo este núcleo que vai das odaliscas de Ingres aos retratos íntimos é uma marcação conjunta de dois conjuntos temáticos onde vai longe a exibição do erotismo. A influência de Matisse juntara-se ao agrado pela Pop, e a relação com a estética do cartaz foi evidente em Viana, Almada, etc. – mas nunca se incluíram estas obras, vá-se lá saber porquê (é cegueira dos comissários e talvez vontade de exclusão) nas abordagens nacionais à Arte Pop, de 1997, «The Pop’60’s - Travessia Transatlântica», de Marco Livingstone com Alexandre Melo, no CCB, e de «Pós-pop. Fora do lugar comum - desvios da Pop em Portugal e Inglaterra, 1965-1975», de Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas, na Gulbenkian em 2018 (ver «Anos Pop» em 2023, A. Pomar).
Viu-se que o retrato fora ensaiado com êxito em 67-68, dois de encomenda e aparato (José Ribeiro da Cunha, então já falecido, e Manuel Vinhas, aqui exposto e homenagem ao amigo e coleccionador) e outro em liberdade (a amiga Fátima, Lopes). A eles regressa pouco depois, longa e diversamente (Manuela, 1968-70; Eduardo Viana, 1970; Almada Negreiros, 1972, Fernando Pessoa e Camões, 1973; outras e outros amigos; os auto-retratos), já relacionados com os Banhos Turcos e já em paralelo em pintura e desenho. «A semelhança do retrato é para mim fundamental. (…) A semelhança funciona como a marca. É como o nome escrito. O resto vem quase involuntariamente e tem por função ‘accrocher’ (prender) a personagem à tela» (1991, H.V. Silva).
Aqui a propósito de Manuel Vinhas, lembre-se também Jorge de Brito, não retratado. Um industrial e proprietário – Pomar era convidado para as tentas no Zambujal –, o segundo bancário e aventureiro das finanças, ambos amigos pessoais e coleccionadores desde os anos 50, também de vários modos mecenas, até às mudanças de 75. Com parte substancial da colecção Jorge Brito se fez o início do CAM e várias obras da exposição são, ou vieram, das colecções de ambos.
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REVOLUÇÕES
Do corpo a corpo do espectador com a obra se recria esta, e aquele, e o mundo em que ambos se situam. Relatório de Bolseiro Maio 1966
Revoluções foram duas, 68 e 74/75. Mais as que as acompanharam e continuaram, em especial, no que importa também à obra de Júlio Pomar, a anti-psiquiatria e a revolução sexual. Outras alterações, mais ou menos revolucionárias, aconteceram ao pintor - e faz-se já uma primeira síntese que a seguir se desdobrará. Adiante percorre-se a fortuna crítica e preferem-se as declarações da época às interpretações mais tardias
Debulha, 1961, 50x61cm, nº 208. Col. particular (não disponibilizado para a exp.)
NOTA 1: exposto na revisão comemorativa de Serralves, “Pré/Pós - Declinações visuais do 25 de Abril”.
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Paisagem de Lisboa, 1961, 73x116cm (CR I nº 217) Col. Jorge de Brito
PALAVRAS DITAS
em entrevistas de Maria Lamas, Adriano de Carvalho, Joaquim Furtado, Maria Antónia Palla, Manuel de Lima e um anónimo
Um quadro é menos uma maçã ou um touro, do que tudo que em nós permanentemente vive. Amor, raiva, esperança, desespero. Toda a arte é uma confissão pública e secreta. (Maria Lamas 1964, “Diário de Lisboa” - a seguir D.L.)
O artista que «segue» crê estar de acordo com o seu tempo. Ele não demora a fazer pela sua mão o que se fazia anteontem em Paris, ontem em New York. Ele não percebe porque os conhecedores – os que amam, vivem – se não detêm na sua mercadoria (em saldo!), julga-se vítima, sem sorte. Não querendo (ou não podendo?) correr o risco de uma posição solitária, acaba por definhar sozinho no meio do rebanho a que se esforçou por pertencer. (Idem)
Não me interessam escolas, interessam-me personalidades, as quais, evidentemente, não acontecem em série. (Idem)
Quando é que «verdade» deixará de ter que ver com «parecido»? (Idem)
Se em Goya intervém o humor negro ou solar, para Velazquez a majestade significa o mesmo que uma maçã para Cézanne. A sua indiferença (mais que desrespeito, indiferença) perante os poderes estabelecidos (que ele, como homem da corte, respeita naturalmente) faz dele o primeiro dos modernos. (Este aparecimento aqui da palavra «moderno» - bem gasta, coitadinha! – não é do meu gosto. Passe agora como solução de recurso, se não iríamos dar a outra história - e bem larga!) (Idem)
É preciso ultrapassar a oposição absurda entre passado e presente. Se, ou inconscientemente ou pela força do hábito, nos escudamos nela, pouco vimos a entender do homem; e nada, mas mesmo nada de Arte. (Idem)
O acaso juntou na mesma página do meu caderno de bolso uma frase de Ovídio e outra de Picasso. Ovídio – «é preciso temperar o prazer pelo domínio de si mesmo». Picasso - «a pintura é mais forte do que eu, obriga-me a fazer o que ela quer». Entre uma e outra, de uma parte a outra, vai toda a maravilha (e toda a danação também!) da pintura, da poesia, porque não da vida humana? E sobre o acaso - não será ele o mais exigente dos nossos mestres? (Idem)
«Realista»? É impossível pôr apenas um adjectivo. Além disso, detesto as fórmulas, as tentativas de concisão que, as mais das vezes, são o empobrecimento das próprias coisas (Anónimo 1966, “Flama”)
Ao contrário do que acontece com a poesia (pode ser-se poeta aos 20 anos), a pintura é uma obra de maturidade. (Adriano de Carvalho 1966, “Século Ilustrado”, a seguir S.I.)
O universal objectiva-se através de referências muito particulares, que resultam da experiência do indivíduo. O geral não é senão uma experiência pessoal, exacerbada. Posta a nu. Não há um universal abstracto, aquém. (Joaquim Furtado 1973, D.L.)
O importante não é o quadro representar um cavalo ou uma paisagem, mas o que nele está da luta do indivíduo que o fez para viver ou sobreviver, na medida em que nele estão expressas as suas relações consigo próprio e com os outros. É uma tomada de posição perante o real. (Idem)
Ser livre é uma coisa que custa muito aprender, mas depois não se quer outra coisa. (Maria Antónia Palla, 1973 S.I.)
Ser pintor é a minha situação particular de ser vivo. É a minha maneira de me exprimir como ser. (Idem)
Quando se gosta de uma coisa toma-se todas as liberdades com ela. (Idem)
A liberdade finda quando as relações passam de sujeito-sujeito a sujeito-objecto ou sujeito-sujeitado. (Idem)
Posso ter tomado aparentes liberdades, tão grandes que a figura parece desaparecer. Mas ela está sempre lá. Porquê? Não sei…. É uma maneira de ser. Gosto muito de carne, de coisas bem vivas, palpáveis. É-me totalmente impossível pensar num quadro com uma formulação 100 por cento abstracta (se é que isso tem algum sentido…). Com isto, não nego o mérito ou a influência que a pintura abstracta, como a de Mondrian, possa ter tido sobre mim. (Idem)
A pintura em mim nasce de um corpo-a-corpo diário com o ofício. Não há dissociação entre projecto e a obra: nascem ligados. Preciso de trabalhar todos os dias. [Mas] só posso pintar em estado de disponibilidade total. A pintura não é um refúgio contra, mas uma maneira de estar. (Idem)
Quando pinto, nunca faço em termos de “exposição”, coisa que me acontece muito pouco, também. As coisas, em mim, passavam-se assim: interessava-me pelo que estava a fazer, vivia-o intensamente. Isto, porque as coisas que faço me interessam enquanto estou a fazer, enquanto as posso tocar, transformar. (Idem)
Fazer arte é tão integral, tão visceral como rir ou fazer amor. ... mas aqui não se exclui a ideia de pensar no assunto. (Manuel de Lima 1974, S.I.)
O que Cézanne disse do acto de fazer pintura: uma maneira de pensar. (Idem)
O pintor para mim é um trabalhador. Com a vantagem ou a agravante de que para ele não há diferença entre trabalho, obrigação, lazer, jogo, prazer. (Idem)
O 25 de Abril foi na vida portuguesa um acto criador, insólito na aclimatação quotidiana, como um acto poético. Dizia Lautréamont que a poesia deve ser feita por todos. Ousemos corrigir. A poesia é feita por todos, e na consciência disso é o jogo a jogar e a chamar-se Revolução! (Idem)
Posted at 23:37 in 2024, Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
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Antes de 60, até 63
Deve notar-se a abrir a apresentação de “Revoluções 1960-1975” que não é a mudança de década que estabelece fronteiras dentro da pintura de Júlio Pomar. A saída do neo-realismo manifestou-se em quadros singulares e incompreendidos como O Baile e Circo, duas festas urbanas nitidamente tristes (1955). “J. P.... que converteu o Baile num verdadeiro ‘sabatt’ observa as projecções das ruas de Lisboa [Rua de Lisboa, Catálogo Raisonné (CR) nº 121] e sabe ainda arrancar à vida humana, em traços fortes, todos os seus reflexos.” Artur Portela Filho (P. F.), III Exposição Colectiva de Artistas Portugueses, Galeria Pórtico. Diário de Notícias (DN), ?-11-1954.
** Circo, 1º salão dos Artistas de Hoje, SNBA 1956.
Tal acontecia logo depois de um período mais intensamente militante, de 1951 a 54, de que Marcha e os Estudos para o Ciclo ‘Arroz’ são expressão mais forte, a par de encomendas decorativas em colaboração com os arquitectos Conceição Silva ou Victor Palla e Bento de Almeida (vitrais da Igreja da Pontinha, na Amadora, painéis para o Restaurante Vera Cruz), e também a par de pequenas paisagens intimistas (Azenhas do Mar, Ericeira): são três linhas de trabalho simultâneas e diversas, quando os quadros ainda não se vendiam.
O neo-realismo não tivera nenhum resultado prático, disse Pomar em 1955. «De resto, não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função, refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público» (entrevista DN 22-9-55). Acabavam por esse tempo as Exposições Gerais, já trocadas por novas colectivas na Galeria Pórtico, em 1954, dinamizada por uma nova geração, e na SNBA, o Salão dos Artistas de Hoje em 1956, com a Fundação Gulbenkian a gerar novas oportunidades e expectativas. Era um tempo de mudança, em ruptura com a herança de 1945.
Houve para Pomar, entretanto, hesitações paisagísticas: Lisboa vista do 4º andar da Rua da Alegria, para onde se mudara com Alice Jorge, mas também revisitações mais ou menos realistas “modernizadas” - breve série Astúrias, 1957-59, da viagem de carro até Paris, por Altamira, com Manuel Torres; e pescadores da Fonte da Telha, 1959, a praia, sempre. Mas logo esses últimos anos da década foram marcados por meia dúzia de pinturas de grande ambição e sucesso, que surpreendiam em mostras colectivas, para as quais o próprio artista e alguma crítica apontavam a procura de um desígnio ibérico, conjugar Goya e Columbano, uma fase “negra”.
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José-Augusto França escrevera em 1955: “O grupo neo-realista (...) com tais composições, dum realismo sobretudo de tipo magazinesco, parece estar a lograr as sensíveis e honestas promessas que há dez anos fizera” (Exposição de Pintura Moderna Portuguesa, Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, organizada por Rui Mário Gonçalves, ver “Comércio do Porto” 12-04-55; in Da Pintura Portuguesa, Ática 1960, p. 169 - esta é uma importante antologia de artigos nunca reeditada).
A apreciação mudou em 1958: “O quadro de Júlio Pomar [Lota], curiosamente absorvido por valores picturais abstractos, desejando uma genealogia em que Goya e Columbano se encontram de má vontade, involuntariamente se aproxima dum Lanskoy, cuja arte, suponho, o pintor ignora e nisso se realiza como obra de muito interesse e de notável qualidade. O «moderno”, insólito em Pomar, e consciente em Daciano...” (sobre o 1º Salão de Arte Moderna, “Colóquio” nº 1, janeiro 1959; op. cit. p. 206)
Segundo Artur Portela Filho, então crítico activo, “Pomar surge truculento, maciço, crispado. As suas duas largas telas <ou só a Lota?>, de temática populista e atmosfera poética, são uma prova esmagadora que estamos perante um dos artistas mais profundamente portugueses. (...) Pomar tem um forte sentido telúrico e o dramatismo dos seus climaas não exclui, antes acentua, contrapontiza, sublinha, uma poesia cheia de vibração e de intensidade. Pomar estilhaça os limites de uma estética semi-oficializada com galo de Barcelos, Sol e Tejo. Cria uma humanidade onde há um a angústia riscada de gritos e risadas e de uma troça orgulhosa e livre.” Diário de Lisboa (DL) 18-10-58
J. A. França em 1959: «Pomar vai firmemente e com extrema qualidade pictórica no caminho que o víramos no Salão Moderno da SNBA, aceitando já em perfeita consciência valores abstractizantes que o próprio ritmo do pintar lhe impõe. O encontro de Goya e de Columbano do seu ‘projecto’ é agora absorvido, reelaborado interiormente com uma ‘fugue' que a pintura portuguesa não iguala» (“50 Artistas Independentes”, “Comércio do Porto”, 23-06-59; op. cit., p. 211 - expunha Cegos de Madrid e Cena no Cais, este levado à 2ª Exposição de Pintura Moderna, promovida pelo Grupo Desportivo e Cultural da “Cuca”, em Luanda, com catálogo prefaciado por Manuel Vinhas).
Portela Filho, sobre Cegos de Madrid: “J.P. ainda goyesco no gesto largo, validamente retórico, trágico, expressionista, atinge uma força que não se encontra em qualquer outro artista na pintura portuguesa. Dir-se-á que ele não é um autêntico pintor português e que chega a ser, pela qualidade e ‘quantidade’ de pintura, pela linguagem, pelo tema, um pintor espanhol”, DL 15-6-1959.
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A anterior individual de pintura datava de 1951 e a seguinte é só de 1962 - um longo hiato de visibidade, não de trabalho, mas na época os Salões apresentavam as novas obras periodicamente (eram uma oportunidade que depois se combateu e extinguiu, perdendo-se o largo público interessado). Datam de 1957 a 1960, e estabelecem um dos patamares mais elevados na longa carreira, os quadros Maria da Fonte, Lota, o referido Cena no Cais (depois oferecido por Champalimaud para o previsto Museu de Arte Moderna de Luanda, e lá ficou, invisível, ao que se sabe) e também Cegos de Madrid?, Cena na Praia, O Carro das Mulas (estes três últimos agora expostos), mais o grande Estaleiro que respondeu a encomenda para o paquete Infante D. Henrique (agora no Museu da Marinha - “entre os objectos mais belos desta minha terra, do Pintor, da Arte Portuguesa: uma reivindicação de grandeza, um magnífico acto de resistência, pois a verdadeira Beleza é incompatível com a opressão” - escreveu Ernesto de Sousa, na monografia citada).
Coexistem com as 30 ilustrações pintadas a preto e branco, seis gravuras, quatro esculturas de ferros soldados (veja-se Guerreiro) e seis pinturas relativas a Dom Quixote, então traduzido imaginativamente por Aquilino Ribeiro, ed. Bertrand 1960 (D. Quixote e os Carneiros e outro Quixote expatriado e inédito expõem-se agora). É um primeiro capítulo literário da sua pintura de imaginação que mereceu logo pequena exposição própria na Galeria Gravura naquele ano - regressará a Cervantes em 2005 para ilustrar uma nova edição, do “Expresso”. Surgem igualmente os primeiros Touros em gravura e no quadro de 1960, Touro, oferecido a Alves Redol, como peças do vasto Bestiário e já “Tauromaquias”.
Esses anos contaram com as duas Exposições Gulbenkian de 1957 (Maria da Fonte) e 1961 (Pega, CR nº 188; Cavaleiro e Touro, nº 190; D. Quixote e os Moinhos, nº 197; Debulha, nº 205; a escultura em ferro D. Quixote II, nº 177), onde obteve respectivamente Prémios de Gravura e de Pintura, sempre ex-aequo. Seguem-se as duas individuais na Galeria DN) em 1962 e 63, já como continuidade e reconhecida maturidade, com forte notoriedade pública e crescente tensão por parte da crítica instituída. Prolongam e diversificam os exercícios de observação de figuras e de situações que estão praticava com um dinamismo gestual a conviver com a abstractização dos motivos: cenas de trabalho, espectáculos populares e públicos (as “Tauromaquias”, e também Casamento e Procissão), paisagens, sargaceiros, os grupos de Marrocos em 63, pintura de realidades vistas. Pintura de observação e também de viagem.
Artur Portela sobre Maria da Fonte: “Pomar é uma explosão de potencialidades. Artista total, personalidade variada, com um conhecimento absoluto e espantoso do seu mister, pintor de convulsões expressionistas, desenhador admirável, com provas de gravura invulgares, é uma das maiores afirmações deste certame. (...) é uma larga, uma imensa, uma movimentada e atormentada tela, povoada por uma humanidade goyesca de tons sombrios e surdos que não lhe apagam a vida, que pulsa, palpita e ascende aqui à pureza do símbolo”. DL 11-12-57
Evolui procurando sugerir o movimento das figuras com pinceladas rápidas os temas adaptam-se a uma figuração fragmentária, descontínua e repetitiva RMG, BB
A forte notoriedade mediática circula nos diários da época, atentos e influentes:
1962, exposição na Galeria DN: “J. P. lírico e telúrico, dramático e irónico”, por Manuela de Azevedo, não assinado, DN 20-5-62: “Onde parece exprimir-se o lirismo gritante de um Kandinsky. (...) Uma luta de primazias entre o abstracto, o figurativo e, até, o impressionismo. (...) Desta pequena galeria - Pomar é preguiçoso, não quer banalizar-se ou é lento na fecundação artística? - o jovem e consagrado pintor pode afirmar que, através de uma liberdade quase sem limites... se tiram sempre efeitos novos e imprevistos.
1963, exposição na Gal. DN, crítica de Fernando Rau (R.): "Movimento e cor na pintura de J.P. em vésperas de partida “, DL 10-10-63 : “o artista está em plena forma criadora e transmite-nos momentos de verdadeiro prazer a contemplação da sua pintura vigorosa nas cores, no movimento e na força anímica que irradiam todos os seus quadros.”
Ou “Sangue arena na expressão fremente da arte de Pomar”, Manuela de Azevedo, DN 10-10-63.
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As pinturas tinham deixado de ser neo-realistas, mas eram de qualquer modo documentárias, mesmo se especialmente se equacionavam, e o artista sublinhava, as questões formais. Trocavam pela densidade e teatralidade pictural a reconhecibilidade descritiva da mensagem; o “intenso dramatismo” era referido, a “inspiração espanhola” (Adriano de Gusmão, 1957). Eram motivos de espectáculos vistos, cenas observadas, registos circunstanciais e ao mesmo tempo questionamentos formais. Pintura descritiva, talvez mesmo pintura de reportagem, mesmo se o peso do formalismo tardo-moderno reinante obrigava a negá-lo: Interessam-lhe, diz, “todos os espectáculos em que os sentidos se completam, em que a imagem é múltipla: multidões, praias de pescadores, fainas de campo, mercados, as grandes cidades e, naturalmente as corridas de touros. O que se agita, move, transforma.” (entrevista de Maria Lamas em Paris, DL 5-3-64, ). “A pintura (não) me interessa como arte de reportagem” dirá já por ocasião dos Tigres (1980), em obediência ainda com o “modernismo” que desvalorizava o assunto. O que mudaria com os ciclos literários tardios.
O abstraccionismo ia-se tomando como uma fatalidade universal, imposição da crítica dominante, mas Mário Dionísio e Nikias Skapinakis valorizavam possíveis diálogos com a figuração (na época Pomar não escreve, pinta): “Nos dias de hoje, abstraccionismo e tendência realista buscam-se, aparentam-se, interpenetram-se, elaboram demorada mas manifestamente a sua síntese” (M.D., Conflito e unidade da arte contemporânea, conferência integrada na 1ª Exposição Gulbenkian, 1957, ed. Casa da Achada 2015, p. 50). “Júlio Pomar superou a crise do neo-realismo (...) Define essa superação, que me parece total no caso das gravuras, uma conciliação entre a necessidade ideológica do neo-realismo e o entendimento de uma lição formal abstractizante. O que portanto se transfere do neo-realismo, paralisada a sua tentativa de aprofundamento do real, é a necessidade de encontrar uma figuração que de novo, e actualizadamente, reintegre o real no quadro” (N.S., Modernos Figurativos Portugueses, conferência de 29-01-1959 na SNBA, ed. Separata de “Arquitectura”, 1959, p. 10)
Figuração-abstracção, figuração-desfiguração, são tópicos críticos do tempo com que o pintor se confronta: “Claro que é o movimento que fundamentalmente me interessa. Enquanto que nas Tauromaquias o problema era o de uma síntese de movimentos contrários, agora [nas Corridas] trata-se de um movimento de trajectória única” (carta de junho de 64*).
Ernesto de Sousa, na primeira monografia (Júlio Pomar, ed Artis, 1960, p. 11) escreve que “um encontro se tornava necessário com as técnicas da abstracção: para destruir os quadros materiais do espectáculo”. Fala de “equilibrio instável” (...) do “encontro de um espaço dramático, na sua raiz tradicional ibérica, com uma temática.” “Alguns dos quadros das Tauromaquia atingem um clímax de riqueza dramática, comparável aos exemplos mais altos da pintura ibérica”. Abria o ensaio com uma declaração forte: “Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva e Amadeu Sousa Cardoso são três nomes cardinais para a compreensão da pintura portuguesa dos nossos dias”.
Alguma recepção crítica que viria a ser dominante, dominadora, e sempre formalista, então facultada nas revistas, era ditada pelas questões da conflitualidade entre figuração «naturalista» e abstraccionismo, que persistiram em Portugal até tarde, ora se valorizando as vias da possível síntese com a abstração, ora se supondo fatalmente necessária a desaparição da figura e do referente, do assunto. Na lógica de uma pintura «pura», defendida como colectivo estilo moderno, contrária às novas figurações que se procuravam, saudavam-se o informalismo gestual e os valores abstractos, mas supunha-se dever suceder-lhes o abandono das referências ao mundo visível. “Evolução gestual e abstractrizante”, “uma esgrima de pincelada habilíssima” (J.A. França 1984).
Rui Mário Gonçalves, 1962: “numa linguagem que, não sendo a dum pintor abstracto, nada deve, porém, a essa imagem antiga da realidade, que o academismo pretende manter.” “um período de libertação dos elementos da sua linguagem: o grafismo e a cor”. “o apoio na realidade visível mantém-se”. “Toda a pintura é fundamentalmente uma especulação sobre o espaço” (“Jornal de Letras e Artes”, 06-06-1962)
Nelson di Maggio 1965: “adverte-se uma concessão excessiva ao bom gosto burguês que debilitam a rotundidade e a força da sua mensagem. De facto, a sua pintura tem enveredado pelo aspecto mundano e agradável”. “Flama”, 25-02-1965
Idem 1966: “Pomar passou a «actualizar a sua linguagem a partir das conquistas dos vanduardistas abstractos, mas sem se atrever a encarar metódicamente o problema da renovacão estrutural». como escreveu Rui Mário Goncalves”. “Em definitivo o que lhe interessa é reconstituir uma realidade passada, contar uma anedota, mais ou menos disfarçada pela dinâmica irradiacão da composição. O autêntico criador de formas está ausente. E o que se evidencia ostensivamente é o pintor sensível, agradável e superficial, para contentar o gosto de uma burguesia cómoda e satisfeita. Como Boldini no século passado. Todas as telas estão muito bem resolvidas e calculadas. Quem poderia ficar indiferente? Quem poderia deixar de sentir um santimento fruitivo?” (“Alla maniera di Boldini”, “Jornal de Letras e Artes” 16-02-1966)
Fernando Pernes 1966: “figurativismo desenvolto”; “uma estética do compromisso entre a aceitação do modelo convulsionado e a acção sobre ele instaurável”; “estilizações de uma realidade apriorística mas, por necessário ajuste, tomada nos seus aspectos mais movimentados”; “Pomar veio a alhear-se do existente dramático para desembocar numa temática mundana e espectacular, sempre habilmente transposta em telas resolvidas com acerto e de menor ambição” “Colóquio” nº 38, 1966; in Dizer a Imagem, ed Serralves 2015, p. 45-46.
Haveria por consequência «uma hesitação estética» e «uma íntima contradição expressiva», um debate não resolvido «entre um compromisso figurativo e uma vontade de expressão directa», argumentos muito repetidos que em geral se prolongavam no reconhecimento ambíguo de uma «espantosa habilidade oficinal». argumentos que se prolongavam no tema do virtuosismo, usado como arma de arremesso. O mercado privado crescia no início dos anos 60 e a crítica encartada associava o sucesso galerístico à satisfação do gosto burguês.
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Os "Anos 60" começam antes - ou não é o começo da década que marca a diferença na sequência da obra de Júlio Pomar. Com o fim da referência neo-realista, em 1955 (O Baile, Catatuas, Rua de Lisboa, Circo) , surgiam novos propósitos figurativos, que conduzem a obras maiores como Maria da Fonte de 1957, Lota 1958, Cegos de Madrid 1957-59 - e também às ilustrações para 'O Barão' de Branquinho da Fonseca e 'D. Quixote' de Cervantes. Destacam-se também o Estaleiro (grande encomenda para o paquete Infante D. Henrique, 1960) e as pinturas sobre figuras de D. Quixote: Dulcineia, O Carro dos Cómicos, Manteação de Sancho, 1960. O encontro com Goya em Madrid marca, com o interesse pelo primeiro Columbano, um projecto de convergência ibérica, em "pinturas negras" que vão até O Carro dos Cómicos, 1960. A mudança é contemporânea do fim das Exposições Gerais e do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, da 1ª Exposição Gulbenkian, 1957, do início dos Salões de Arte Moderna da SNBA em 1958, dos "50 Artistas Independentes em 1959".
1960-1975 Revoluções - Atelier-Museu Júlio Pomar
Comissários: Alexandre Pomar e Óscar Faria
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Quatro páginas para apresentar a exposição a inaugurar dia 10, 4ª feira. A década de 60 e os primeiros anos 70 foram marcados pela passagem para Paris e por novos temas de pintura, e pela transformação da sua pintura a partir das séries RUGBY e MAIO'68, a que se seguiram o ciclo do BANHO TURCO e outras variações sobre Ingres, e a série seguinte dos RETRATOS.
Maio de 68 e Abril de 74 marcaram a produção de Júlio Pomar, já depois da grande destruição de pinturas anteriores, em 1966 (deixando a expressão gestual e a relação com o abstracccionismo), e do início da construção de assemblages em 1967, quando é atraído pela pintura Pop anglo-saxónica.
Mostram-se algumas obras inéditas e outras que não voltaram a ser expostas desde os anos 60. A exposição agrupa algumas obras da viragem dos anos 50/60 (pinturas "negras" de uma pista ibérica que reuniria Goya e o primeiro Columbano), depois as cenas do trabalho do povo (pescadores e mariscadores, a pisa do vinho); algumas paisagens de 1961 a 68 (Albufeira, Lisboa, Porto e um Vista da Janela não localizado); algumas figuras de um bestiário pessoal; as tauromaquias e corridas de cavalos e as variações sobre uma Batalha de Uccello...
Comissarios: Alexandre Pomar e Óscar Faria
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(A segunda parte militante da década neo-realista de Pomar (1945-1955). Das gravuras políticas ao Ciclo do Arroz)
Nunca exposto até agora e nunca antes referido, embora incluído em 2004 no Catálogo Raisonné graças à memória do artista, Marcha é uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospectivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela PIDE em 1961. Reconhecível entre as figuras do casal que avança em primeiro plano, ocupa um lugar central correspondente na época à sua posição como activista que animava as intervenções dos artistas do PCP nos primeiros anos 50 (ou seria mesmo o seu informal controleiro, um controleiro não sectário, segundo me disse Júlio Pomar). Em 1955 trocou a carreira artística reconhecida pela passagem à clandestinidade como responsável por uma oficina de falsificação de documentos.
A condição política da pintura, obviamente partidária, que justificava a sua ocultação, relaciona-a com as campanhas pela paz que o PCP promovia nos anos 1949-54, ao tempo da Guerra Fria e da guerra quente da Coreia. Mobilizavam-se acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares, aprovado em 1950, e em especial contra a reunião do Conselho do Atlântico, em Fevereiro de 1952 no Instituto Superior Técnico, depois de a adesão portuguesa à NATO ter sido ratificada em Julho de 1949 – acontecimento e movimentações que vinham abrir brechas nas dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária, separando comunistas e democratas.
Em 1952 Marcha tinha de ser uma obra clandestina: era o lado soviético de uma trincheira paralegal, animada num atelier e tertúlia activos em período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Ruy Luís Gomes (em 1949 e 1951, respectivamente). Naquele ano a SNBA foi fechada e interrompeu-se a sequência das Exposições Gerais, por Eduardo Malta ter sido expulso de sócio devido a um conflito público com Dias Coelho. Era também o tempo da polémica interna do neo-realismo, em torno da orientação da Vértice, por efeito de um «desvio sectário» que fracturava os meios intelectuais, com um PC debilitado por muitas prisões. Depois, com a morte de Stalin e o relatório de Khrushchev, viria o chamado «desvio oportunista de direita», de 1956-59, a seguir «corrigido» pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961, sempre segundo a dramática pequena história ziguezagueante do antifascismo. Razões de segurança e o ocaso do neo-realismo mais militante, bem como prováveis opções pessoais, podem explicar que Marcha seja uma pintura nunca divulgada antes e também depois do 25 de Abril. O artista nunca a procurou incluir nas suas antologias e a iconografia de Dias Coelho e do PCP nunca a recuperou.
Mesmo que a condição panfletária venha dificultar a classificação como «obra-prima», este é um quadro maior, e não só por coincidirem a ambição do assunto e o grande formato, inédito à época. O encontro entre o manifesto político e o retrato de grupo, de um momento e local bem precisos (o atelier da Praça da Alegria, como veremos), concede-lhe uma verdade prática e uma intensidade emotiva que é fusional com as qualidades formais que o fazem seguramente uma das peças mais marcantes do neo-realismo, que aí se identifica com o campo alargado do realismo socialista embora sem concessão académica. É uma obra bem representativa de um tempo político e suas contingências, é uma peça única na carreira do pintor (apesar de renovar o programa da primeira Marcha de 1946, e de antecipar o Maria da Fonte de 1957, numa idêntica linha de pintura de história), e é decisiva para rever a carreira neo-realista de Pomar.
De facto, Marcha vem exigir uma nova abordagem da década neo-realista de Pomar – de 1945 a 1955 –, e ilumina uma segunda metade incompreendida e ocultada por opções mais políticas que de razão crítica. Reapreciando agora esta obra de 1952, e outras próximas, é possível contrariar a desvalorização desse período (mesmo que depois tal tenha sido por vezes aceite pelo artista), e partir daí para rever a história habitual do movimento, estabelecendo uma divisão em dois períodos diferentes, em especial quanto à obra do seu principal animador, intérprete e crítico.
O primeiro, após o fulgor inicial, 1945, tendeu a tornar-se sentimental e formalista, numa série apreciada de famílias, maternidades e meninos que se associa à situação pessoal do pintor e pai (mas note-se que a Varina comendo melancia de 1949, obra que ficou em sua casa, retomava a imprevisibilidade formal da Mulher com uma pá daquele ano, trocada com o amigo Fernando Lanhas, “que era com quem eu melhor me entendia no ramal das artes” - escreveu em 2003 (Temas..., p. 236) -, apesar da divergência política). O segundo período, a partir de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951, recupera a firmeza austera de um realismo social interventivo, seguramente sensível ao debate estético chegado de França, mas com independência; o artista fez nesse ano a primeira viagem a Paris e aí encontrou Pignon, Fougeron e Taslitzky, mas não deixou testemunho do que viu, apenas referências aos nomes. Algumas obras-chave ficaram a marcar aquela nova orientação e Marcha é a sua bandeira. No mesmo ano Mário Dionísio publicava na Vértice os seus Encontros em Paris, onde dialogava com muita reserva com os três pintores referidos, e em 1952 deixou o PCP, na sequência do conflito sobre as colaborações de comunistas na revista Ler, das Publicações Europa-América.
É conhecido o conflito então aberto entre os dois artistas e teóricos do neo-realismo, que veio a ser registado por Dionísio muitos anos depois, sem a reconsideração do que o tempo mudara:
Quando em 52 vários escritores saem desse mesmo Partido, por discordâncias várias que se ligam também, e muito, a problemas ideológicos no domínio da arte, ele fica. E, como fica, tem de esforçar-se por seguir novos ideólogos, um deles, por sinal, de conversão recente, cuja visão é tão obcecada quanto curta. E conhecida [?]. Seguir sem discussão o exemplo da URSS e os conhecidos mandamentos jdanovistas: representação de cenas, colhidas in loco, de trabalho e luta (ainda que a não houvesse senão como desejo) numa linguagem de pronto a todos “acessível”. Ou seja, um naturalismo impossível de refazer no nosso século e por isso dessorado. Como toda a gente (hoje) sabe, incluindo o Partido em questão. E na URSS também, ou muito em vias disso. Foi um momento de “recuo” na linha evolutiva da obra de Pomar.
Foi o que escreveu no ensaio “O último baluarte” que abre o álbum monográfico Pomar, Publicações Europa-América, 1990, p. 24. Em Passageiro Clandestino I. 1950-1957, os diários de Mário Dionísio, o corte é referido com veemência: “O correio que hoje me trouxe o Comércio do Porto com um artigo do sr. Pomar - uma das várias serpentes que ingenuamente abriguei no meu seio” (p.. 112). Interrompia-se aí uma cumplicidade que vinha de sempre, o que justificaria, quinze anos depois, já em Paris, o título do artigo-entrevista «Reencontro com Pomar» (Diário de Lisboa, 02.03.67). E foi a opinião, com referência directa ao «ciclo do Arroz», notoriamente ditada pela circunstância da conflitualidade partidária e por certo errada em termos da avaliação crítica, que prevaleceu nos sumários históricos.
De facto, a reconsideração do movimento neo-realista e a explícita autocrítica presentes no artigo de Pomar publicado em 1953 n’ O Comércio do Porto (e não na Vértice como era mais habitual) não eram uma cedência circunstancial à pressão partidária, mas foi muitas vezes como tal interpretada. Escrevia Pomar:
As razões desta fragmentação [no seio da corrente ou tendência do “realismo social”] devem procurar[-se] na evolução dos acontecimentos da vida portuguesa, no cair das ilusões que uma interpretação apressada das consequências da II Guerra Mundial ajudara a criar.
Entre aqueles que se afirmavam dentro dos princípios da corrente, alguns perigosos caminhos começaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a substituir a agressividade dramática das primeiras tentativas. A procura de soluções formais começa a sobrepor-se ao vigor de conteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemas realmente vivos. Boa parte do que pintei nos anos de 49 a 51 oferece tais características, e desvios de tipo análogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio.
Tinham-se aberto «as portas ao maneirismo e ao formalismo e, em último grau, à renúncia dos objectivos abraçados com entusiasmo» (Júlio Pomar, «A tendência para um novo realismo entre os novos pintores portugueses», reeditado em Notas..., pp. 287-288.
Porque foi este o seu último artigo publicado na imprensa, à época, ficou sempre por esclarecer.
QUEM É QUEM
Veja-se então a pintura. Marcha, entendida como retrato de grupo, identifica sem o representar expressamente o atelier da Praça da Alegria (antigo atelier que já fora de José Malhoa), alugado e chefiado pelo escultor Vasco Pereira da Conceição, militante e ex-preso político, que se reconhece a entrar em cena pelo bordo direito do quadro. Aí trabalhavam também Maria Barreira, sua mulher, certamente referida pela Maternidade, na direita baixa, que é um tema comum na escultura do casal, sem filhos. Mais Júlio Pomar desde 1949 (ou 51?) e às vezes José Dias Coelho e Maurício Penha, mais tarde talvez Alice Jorge. Era lugar de trabalho e também de tertúlia artística e política, onde se conspirou a oposição à NATO e que uma testemunha agora ouvida aponta como uma espécie de antecâmara das Exposições Gerais de Artes Plásticas, em cuja organização participavam então activamente Dias Coelho e também Pomar, que as acompanhava assiduamente na imprensa.
No friso de retratos, ao lado do casal em primeiro plano, está o engenheiro Frederico Pinheiro Chagas, amigo e visita assídua do atelier, cúmplice e proprietário de sempre da obra, e logo ao lado, com o único rosto frontal, vê-se a sua mulher, Dina. Um dos rostos do par heróico de jovens militantes que avança de mão dada, encabeçando a Marcha, guiando o povo segundo uma tradição revolucionária que se partilha com os códigos das apologéticas religiosas, teve por modelo o carpinteiro Francisco Bento, militante libertado da prisão pouco tempo antes, que frequentava o atelier e realizou mobiliário para vários camaradas. A figura feminina permanece por identificar, apesar do inquérito tentado. Uma foto sobrevivente de um estudo desenhado e a possível pista de um busto contemporâneo (Zita) não ajudaram. De Pinheiro Chagas existe também um rigoroso retrato, de desenho neo-clássico. Falta identificar, igualmente, a menina à esquerda, que será alguém em particular e talvez agora alguém se reconheça – a «presença» realista dos modelos, retratos e não figuras «abstractas» ou idealizadas, vem adensar a força mobilizadora do manifesto.
A alegoria tem mais dois pólos laterais, simétricos: a figura da Maternidade à direita, como emblema de futuro, e o estranho personagem visto obliquamente de costas, à esquerda, um (falso) profeta, um velho frade?, vendedor de ilusões, que aponta para uma cidade em versão futurista, em construção, com guindastesn e personagens hieráticos (robotizados); ao fundo, montes áridos e nuvens pesadas. De um lado, as ilusórias promessas do presente, do outro a infância e outros amanhãs. Na metade direita, por trás do friso das figuras, está uma alongada parede ou casa vermelha, que toma o lugar de uma (im)possível bandeira. Também se pode reconhecer ou adivinhar aí, mesmo em cima à direita, uma praia, o céu limpo e um barco, amarelo e azul, que rimam ou se repetem em primeiro plano a rasgar de luz o ventre e o vestido azul da mulher – e este é um inesperado elemento de composição com eficácia moderna que rompe o plano superficial da tela. Todo o alongado primeiro plano – as voltas do xaile da mãe, o fato-de-macaco, as pregas do vestido que se abrem, as dobras do traje do velho – é uma construção sequencial de espaços articulados e dinâmicos.
O atelier da Praça da Alegria, n.º 47, situado entre o Maxime e o Hot Club recém-fundado, ao lado de uma leitaria (Flor da Alegria – fotografada como lugar de tertúlia na revista Eva de Março de 1955), era também frequentado por escritores: José Cardoso Pires, com os primeiros livros e intensa actividade política, que aí conheceu em 1954 a sua mulher, Edite, irmã de Vasco da Conceição, por ocasião do retrato que Pomar pintava, sendo ela retratada por Alice Jorge no ano seguinte; Orlando da Costa, que aí levou Maria Antónia Palla; Alexandre Cabral, amigo do engenheiro, o arquitecto Manuel Tainha e outros mais do círculo político e neo-realista 2.
Para o grande formato de Marcha, único ao tempo – 122 × 199 cm, a têmpera sobre aglomerado, ou masonite –, Pomar usou uma placa da mesma série de três outras alargadas tábuas que pintou para o restaurante Vera Cruz, na Avenida da Liberdade, projecto de Victor Palla e Bento d’Almeida, com quem Pomar mantinha frequente colaboração (elas passaram depois para o restaurante Tarantela, no largo da Estefânea, e dispersaram-se nos anos 90 - Catálogo Raisonné nº 83 a 85; o maior vê-se na Tranquilidade). A vocação decorativa de referência brasileira realiza-se aí com soluções de pintura mural, o que também sugere a Marcha.
Afastado do ensino em 1949, sem outro emprego regular, as encomendas decorativas (não oficiais) substituíam a pouca pintura que se fazia, quase restrita às participações nos três salões anuais da SNBA, e que menos ainda se vendia. À época «produz pouco, absorvido principalmente por trabalhos alimentares», anotou na cronologia crítica que escreveu para a sua primeira monografia editada em Paris (Julio Pomar, Art Moderne Internationale, 1981, p. 48). Algumas ilustrações para editoras de amigos, mal pagas, e a produção de cerâmicas no Bombarral, depois nas Caldas (antes que a circulação das gravuras pudesse financeiramente substituí-la) preenchem anos lembrados como muito difíceis.
ANTES E DEPOIS DA MARCHA
Como disse atrás, Marcha vem proporcionar uma nova leitura sobre a primeira metade da década, o que implica corrigir estudos anteriores. É um período intranquilo e, sem dúvida, de produção irregular ou mesmo desequilibrada, em que facilmente se passa do melhor ao pior, em que há ensaios em direcções contrárias e onde o que há de continuidade e renovação se vai abeirar do seu fim, de 1951 até 1955, quando o neo-realismo acaba em pintura, embora possa prosseguir nas gravuras. Não por acaso, a mostra individual de 1950 (na SNBA, e na Livraria-Galeria Portugália do Porto no início do ano seguinte) só em 1962 terá sequência (Galeria Diário de Notícias), já com Tauromaquias e cenas que continuam a ser de trabalho (Sargaço, Pisa, Debulha, Chegada - de pescadores) mas de que está ausente o programa neo-realista da leitura e mensagem acessível para todos: «A escrita toma uma aparência mais livre, rápida, gestual», «os temas que se impõem ao pintor são os que naturalmente apelam a uma figuração descontínua, fragmentária, repetitiva» (da mesma cronologia, p. 48). É um longo hiato na apresentação pública e uma mudança radical da obra, uma primeira maturidade.
Nesse longo intervalo, no entanto, havia a presença regular nas colectivas periódicas, e de trás vem ainda a exposição de desenhos, aguarelas, gravuras e cerâmicas, apresentada em 1952 na Galeria de Março que José-Augusto França dirigia, e de que pouco mais se sabe do que a divisão em três tópicos, num catálogo prefaciado por três poemas de Alexandre O’Neill: «Os Animais Sábios» (o bestiário, e o humor), «As Imagens de Paz» (onde alguns nus femininos se prestaram a reparos, tal como já sucedera com os da primeira mostra de desenhos, em 1947 – «Pomar compraz-se sobretudo em sentir a deliciosa canção das linhas que melodicamente reconstroem o mais tépido e macio de um corpo jovem de mulher», criticou o então muito ortodoxo Lima de Freitas, Vértice, n.º 113, Janeiro 1953, p. 62) e «Monstros e Homens lado a lado» («expressão simbólica ou naturalista dos problemas humanos», segundo o também pintor José Júlio, Ler, n.º 10, Janeiro 1953, p. 19).
Na antologia de 1986 (itinerante no Brasil e vista no Centro de Arte Moderna) saltava-se de 1951 para 1960. Na retrospectiva de 1978 (Gulbenkian, Museu Soares dos Reis e Bruxelas) tinham entrado onze obras da década de 40 e duas da de 50: só Mulheres na Lota (Nazaré), que ficara na casa de Lisboa com Alice Jorge, e o Ciclo do Arroz II. Tempo de crise, de escassa produção, e apagamento de memórias.
Há então que fazer uma nova escolha de obras maiores desses anos, as quais se devem reconhecer como isoladas, desacompanhadas: Marcha (a surpresa da actual exposição dedicada ao retrato) é precedida por essas Mulheres na Lota, de 1951, e é seguida por Os Carpinteiros (a bicicleta era muito usada pelos funcionários clandestinos) e pelos dois maiores «estudos» para o ciclo «Arroz», de 1953, e logo em 1954 pelo retrato de Cardoso Pires. O maior empenhamento político renova o programa realista e assume uma condição formal austera, de figuração nítida e construção vigorosa, trocando a fluência decorativa e a idealização das máscaras pela prática da observação, em geral com apoio fotográfico conhecido. «1953 – Período marcado por um naturalismo contidos [retenu], sem nunca cair nas convenções do realismo socialista», sempre segundo a cronologia estabelecida pelo próprio (idem, 1981, p. 48), acertadamente.
Para trás tinham ficado duas importantes telas gémeas de 1951, Meninos no Jardim (ou O Eixo Corrido) e Vendedoras de Estrelas, da colecção Jorge de Brito, muito mostradas e apreciadas, sedutoramente maneiristas. Foram expostas na VI EGAP e certamente incluídas na extensa representação nacional enviada à II Bienal de São Paulo, em 1953, que foi um episódio de excepção agenciado por Diogo de Macedo com a Galeria de Março de José-Augusto França, favorecido pelo contexto das comemorações do IV Centenário da cidade 3.
As novas urgências da intervenção partidária afirmaram-se com clareza numa série de gravuras dedicadas ao tema da Paz, que tiveram grande difusão e marcaram presença nas casas de todos os intelectuais de feição comunista, distribuídas pela SEN (Sociedade Editora Norte, Porto), pouco depois encerrada. À linogravura Mulheres Fugindo, que se chamou A Explosão e foi conhecida como A Bomba Atómica, seguem-se no mesmo ano as litografias em que figura a pomba proposta no cartaz de Picasso para o Primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz de Paris, em 1949, como emblema da causa, com referência à filha Paloma: três versões de meninas com pombas e o remake do Almoço do Trolha na versão A Refeição do Menino (ou Família). Com a incisiva edição de As Mães, quatro gravuras foram também enviadas à alargada mostra de São Paulo.
Marcha nunca foi exibida, e são de facto os dois Estudos para o ciclo “Arroz” que polarizaram o comentário (ou o silêncio) sobre esse tempo. Mário Dionísio continuou sempre a opor-se, com uma veemência que deve ser reconsiderada:
“E o que é o ‘ciclo do arroz’? Uma desesperada tentativa [...] São óleos de camponesas ceifando, bebendo água, de que a pintura anda longe. Aquela, pelo menos, que ao artista certamente interessava. São sobretudo duas grandes composições – ‘Ciclo do Arroz’, I e II –, onde o desenho fechado leva a melhor, a pincelada a si mesma se disfarça, como sentimentalmente pareceria convir à gravidade do assunto: mulheres vergadas para a terra manejando enxadas, numa das composições, mulheres, na outra, indo para ou regressando do trabalho em fila indiana, sóbrias, quase rígidas, com a fixidez de instantâneos em pose. Mas manejavam as enxadas? Mas caminhavam? A arte aqui está mesmo no limite de ser apenas meio. A velha história das boas intenções que nunca bastam» (op. cit., 1990, p. 50).
O artista disse depois outra coisa, “um naturalismo contido [retenu, tenso], sem nunca cair nas convenções do realismo socialista», 1981, e depois:
«Vemos aqui a presença do pintor muito mais neutralizada, o quadro a abeirar-se de um realismo fotográfico. Nele houve, voluntariamente, a adopção de uma linguagem a que na altura chamaríamos objectiva. A proximidade da fotografia (de resto foram utilizados documentos fotográficos) é muito grande. No entanto, sob a pretensa objectividade da representação, há uma arquitectura íntima, um jogo de formas nítidas que não anda longe de certas marcas futuras da minha pintura» (Entender a pintura n.º 4, Arte Ibérica, entrevista de Alexandre Melo, 1998, p. 8):
Acontece também que a produção militante de Pomar é acompanhada no mesmo ano da Marcha por obras de feição bem diversa e numa direcção inédita na sua produção, cinco paisagens, numa situação que reflecte uma manifesta pluralidade de interesses – mas nenhum destes pequenos quadros singulares terá sido exposto no seu tempo próprio. Exercício paralelo mas confidencial, exibem experiências sensíveis e liberdades de pintura, que, tal como um curto texto sem título publicado só em Paris, desmentem o gosto por ortodoxias:
«Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. O métier de pintor é um trabalho de pesquisas, de descobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que nascem da vida e a ela retornam» (in Premier bilan de l’art actuel, Le Soleil Noir. Positions, 1953, n.º 3-4, p. 314).
São paisagens das Azenhas do Mar (em férias familiares), da Ericeira e incertamente de Lisboa, datadas de 1952 e 53. Sem outro programa que a curiosidade de pintar, elas circulam da observação à imaginação, à beira da estranheza irrealista de formas e cor. A paisagem foi sempre rara mas iria regressar em 1955 num breve ciclo desenvolvido com dificuldades e pouco êxito quando o pintor se muda para um andar elevado da Rua da Alegria com uma larga vista sobre a cidade.
RETRATOS, RETRATOS
A disciplina do retrato era à época recomendada ou imposta pelos partidos comunistas em tempos de grande pressão do culto da personalidade, designadamente em França, de onde chegava então a informação predominante, via Arts de France (aí surgira em 1949 a «Tribune du Nouveau Réalisme» e a revista desaparece em 1951, vítima do seu sectarismo). A pintura de história também se impunha, mas só podia ser escassa entre nós. Alguns episódios polémicos tiveram retratos por pretexto (foi famoso o caso do Stalin de Picasso, nas Lettres Françaises, à data da morte...), num período em que o combate aos realismos, depois dos rigores nazis e soviéticos, fazia parte do enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Picasso continuaria a retratar livremente, depois os realistas ingleses independentes Freud e Bacon, e a seguir a geração Pop de Hockney e Kitaj, entre os maiores, iriam reafirmar a centralidade, pelo menos a permanência, do retrato na arte do século XX – Bacon e a POP anglo-americana influenciaram directamente Pomar, já em Paris.)
À volta dos retratos pode desenhar-se um mapa habitado da época, e os livros então ilustrados por Júlio Pomar traçam o horizonte das suas relações literárias marcadas pela cumplicidade política e pessoal: Carlos de Oliveira (retrato na edição especial de Colheita Perdida, colecção «Sob o signo do galo», Coimbra, 1948); Sidónio Muralha e Cardoso Pires (desenhos de 1949 e 50); ilustrações para Alves Redol, Raul de Carvalho e Ferreira de Castro (1949) e Alexandre Cabral (1955); retratos desenhados de Mário Dionísio, José Fernandes Fafe, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, Orlando da Costa (para as tiragens especiais de 40 exemplares da colecção Cancioneiro Geral do Centro Bibliográfico, 1950-1953). As grandes encomendas de ilustrações para a Fólio (dirigida por Victor Palla e Cardoso Pires), Sul (de Castro Soromenho), Realizações Artis (de Rogério de Freitas e Leão Penedo), Bertrand, Minotauro (Urbano Tavares Rodrigues), Cor (direcção de José Saramago) e Portugália (Augusto da Costa Dias) virão depois, entre 1956 e 1967.
Em escultura Pomar retratara a sua mulher, Maria Berta Gomes, em 1949 (que também surge como modelo em várias pinturas – Resistência e Marcha), e igualmente os escritores Sidónio Muralha, 1950, e António Navarro, 1951, três obras presentes na actual exposição, mais Armindo Rodrigues, 1951, ficando por aí o número das peças não convencionais. Conhecem-se apenas mais quatro «cabeças», duas de amigos (Ana Moura, mulher de Rui de Moura, depois editor da Prelo) e Joaquim Barata (fundador e gerente da Gravura) e duas outras perdidas (Zita e Liliana, 1951), talvez de encomenda. À escultura só voltará com os ferros soldados associados ao ciclo Dom Quixote, em 1960.
Fez também, em 1954, os retratos pintados de Cardoso Pires e Maria Lamas (esta detida pouco antes, no regresso de Moscovo, e o quadro foi exposto na VIII Geral apesar do contexto repressivo), a que se acrescentam os de Vera Azancot (1954, de encomenda), Alice Jorge (1955, com quem então vivia), Maria José Salvador (1956, mulher de Manuel Torres, amigo para sempre, companheiro das viagens de carro a Espanha e França, e fundador da Gravura).
Ampliando o horizonte a outros artistas, sabemos que, por seu lado, José Dias Coelho, que entrara no mesmo ano de 1942 na Escola de Belas-Artes de Lisboa, apresentou nas Gerais retratos de Rolando Sá Nogueira, 1949; Margarida Tengarrinha, 1950; Alves Redol, 1951; Maria Eugénia Cunhal, 1953; Maria Isabel Aboim Inglês, 1954, entre outros não nomeados. Realizou também os bustos de Fernando Namora e do designer Tomás de Figueiredo. O retrato teve sempre uma forte presença nas Exposições Gerais. Tomando por guia o catálogo Um Tempo e um Lugar (Museu do Neo-realismo, Vila Franca de Xira, 2005 - ver adiante), referem-se ou reproduzem-se obras de Abel Manta (Bento Caraça, 1947), Sá Nogueira (Frederico George e Jorge Vieira de c. 1949), Maria Keil (Abel Manta, 1949), Vasco da Conceição («cabeças» de Maria Barreira, Sidónio Muralha e Lopes Graça, 1948-50), Victor Palla (Cardoso Pires, 1951), Mário Dionísio (Joaquim Namorado e a filha Eduarda, 1953), Lima de Freitas (Alves Redol, 1953, Cardoso Pires, 1954), Alice Jorge (Edite Cardoso Pires, 1955), e também de João Abel Manta (Aquilino Ribeiro, 1940?), Arlindo Vicente (João Gaspar Simões, s/d), José Farinha (Alves Redol, s/d), Euclides Vaz (Celestino Alves, 1949), entre outros retratos indicados sem nome dos modelos. O retrato dos retratos desses anos incluiria boas surpresas.
Publicado no catálogo O Desenho impreciso de cada rosto humano, reflectido! Retratos de Júlio Pomar, pp. 146-156, com tradução inglesa, ed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta, Dezembro 2021 (a exposição decorreu de 22.10.2020 a 28.02.2021). Revisto e aumentado.
1 Marcha, 1952, têmpera sobre aglomerado, 122x199 cm - n.º 86, pp. 84-85, do Catálogo Raisonné I, Editions La Différence / ed. Artemágica, Paris, 2004. Catálogo Atelier-Museu, pp. 144-45.
2 Agradeço a Margarida Tengarrinha, Edite Cardoso Pires e Maria Antónia Palla as suas memórias do atelier da Praça da Alegria, bem como as ajudas de António Redol, Teresa Dias Coelho e Ana Cardoso Pires.
3 Delegação organizada pela Comissão Portuguesa das comemorações do IV Centenário da cidade catálogo: https://issuu.com/bienal/docs/name24c514/31. “Artistas modernos portugueses na II Bienal do Museu de Arte Moderna de S. Paulo - Brasil / [organizado pelo Secretariado Nacional da Informação]. [Lisboa : S.N.I., 1953-1954]. Ver Gerais
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OS LIVROS DE JÚLIO POMAR:
ITINERÂNCIA DA LEITURA, ESCRITA, PINTURA
05 julho 2021 – 10 outubro 2021
Curadoria: Mariana Pinto dos Santos
Não é para contar estórias que tu escreves ou eu pinto.
A estória é o que deitamos na panela a amornar nas cinzas
onde inesperado sopro lhe levantará fervura.
А cozinha é а cozinha сomo uта rosa é uma rosa,
querem coisa mais simples?
Júlio Pomar, Assim trabalho eu, 2004
“Desde cedo, Júlio Pomar estabeleceu uma relação entre a sua pintura e a literatura que lia ou que os seus amigos ou contemporâneos escreviam, traduziam, editavam. Num texto sobre Cardoso Pires, escreveu que «literatura e arte eram coisas perfeitamente indissociáveis». Não só fez várias capas de livros, como também desenhou e pintou variadas obras literárias.
Muitos dos seus trabalhos não “ilustram”: não querem iluminar ou revelar a obra literária com que se relacionam, mas sim continuá-la por outros meios. São «variações», para usar um termo do artista.
Os livros, as pinturas e os desenhos nesta exposição mostram os itinerários de Júlio Pomar entre a leitura, escrita e pintura, considerando a leitura como etapa primordial, um pre-texto para a pintura. A relação entre texto e imagem é sublinhada pela transcrição nas paredes do AMJP de excertos de algumas das obras literárias ou poéticas que os seus trabalhos evocam, numa intervenção visual do artista Horácio Frutuoso.
Propõe-se uma exposição antológica dos livros de Júlio Pomar, entendidos num sentido lato: os livros que fizeram parte do seu imaginário pictórico, os livros que pintou/desenhou, os seus livros e edições de artista, e os seus escritos poéticos e sobre pintura.
Entre as obras de Júlio Pomar apresentadas, poder-se-ão ver exemplos das que abordam os temas de D. Quixote e Ulisses, duas das suas que relações literárias mais duradouras e profícuas, mas também as que derivam de obras de Cardoso Pires, Ferreira de Castro, Tolstoi, Aquilino Ribeiro, Maria Velho da Costa, Malcolm Lowry, Jorge Luís Borges, Castro Soromenho, Eça de Queiroz, Dante, Carlos de Oliveira, Lewis Carroll, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Richard Zimmler, entre outros, incluindo desenhos e pinturas inéditos. Através do percurso aqui proposto desenha-se também uma trama na qual se vislumbra, por via da relação entre o literário e o pictórico, uma história cultural e política, pessoal e colectiva.” MPS / AMJP
Na foto: “Navio Negreiro”, 2005-2012 (a partir de D. Quixote); ilustrações para Terra Negra, de Castro Soromenho; ilustrações para A Selva, de Ferreira de Castro (col. Ilídio Pinho)
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nº 1:
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Atelier-Museu Júlio Pomar (até 28 de Fevereiro)
destacam-se os quatro conjuntos de retratos que marcam a obra da maturidade de Pomar, nos anos 70 e 80, situados entre os períodos mais altos da sua carreira
1. O retrato está presente do início ao fim da carreira e da vida de Júlio Pomar. Pintor de figuras - e de imagens -, essa é uma prática que se pode dizer natural, espontânea, começada na infância, como acontece a todos (mas os seus cadernos foram guardados), e depois sempre continuada: as pessoas são o real mais próximo, e por isso mais acessível à observação, incluindo o auto-retrato.
A representação do visível, do visto, em especial no caso do retrato, sustenta-se da semelhança e no reconhecimento (e exige-os), para além de toda a (re)interpretação, formalização, abstractização e deformação, intencional ou não. Feito do natural (sempre com poses breves, no seu caso, ou de memória) ou documentado sobre referências fotográficas, o seu retrato nunca é naturalista (com uma excepção?) e pode ser ou não ser realista - por algum tempo de formação e afirmação foi neo-realista. As fronteiras diluem-se. O seu retrato nunca é o exercício de um género disciplinado e esteve sempre associado a reorientações da prática da pintura ou do desenho, a mudanças de "fases" - a obra de Pomar não se classifica por um estilo colectivo (depois do neo-realismo inicial) e nunca se fixou numa maneira.
Também sucede que o retrato é para Pomar, quase sempre (para lá de muito escassas encomendas), uma prática relacional que decorre da convivência, do companheirismo, da amizade, da intimidade ou da relação amorosa - e que por sua vez alimenta a relação pessoal com o “modelo”. Através de retratos e auto-retratos existe uma narrativa auto-biográfica que se constrói no tempo longo. E não será diferente, embora sem a presença física dos retratados, o gosto pela representação de escritores já ausentes por quem se interessava, e em diversos casos foram resultado de sugestões alheias, de convites para ilustração de livros. Essas são representações imaginadas, ficcionadas e integradas em situações ficcionais, sustentadas pela iconografia disponível, fotográfica ou já antes artística - o que deu depois passagem directa para as figuras de personagens literários e mitológicos, já representações inventadas ou ficcionadas (Ulisses, Adão e Eva, por exemplo). Quanto ao auto-retrato, praticado ao em sucessivas condições, e que mereceria estudo próprio, ele não surge como exercício narcísico ou este é contrariado pela irrisão, várias vezes em auto-retratos duplos e triplos, em companhia do macaco e do diabo (alter-egos) e na figura do palhaço.
Se em todas as décadas de actividade (oito décadas) os retratos estão presentes, poderão destacar-se desse continuum alguns retratos individuais, numa galeria selecta (Norton de Matos, Cardoso Pires, Soares, Claude Levi-Strauss, Camões, Marisa...), ou acompanhar séries e sequências com coerência temática ou ciclos e períodos, “fases”. Para além dos retratos iniciais, do tempo neo-realista, e dos retratos mais tardios, dos anos 2000 e do regresso a Lisboa, que são períodos de certo modo simétricos, de começo e fim, decisivamente marcados pela afinidade das relações pessoais, considero mais importantes quatro conjunto de retratos que marcam a obra da maturidade de Pomar, nos anos 70 e 80, colocados entre os períodos mais altos da sua carreira.
Viana, 1970 (130x97 cm) e Triplo auto-retrato, 1973 116 x 89 cm (não expostos)
2. O primeiro é constituído pelo ciclo de retratos dos anos 70, que já propus identificar como os seus anos Pop, pinturas de formas recortadas em cores lisas, na sequência dos ‘Banhos Turcos segundo Ingres’ e do interesse por Matisse e pelos contemporâneos Pop ingleses e norte-americanos, ou em montagem de fragmentos e insígnias dos rostos e corpos, mais ou menos dispersos num espaço plano. É um período que vai exactamente de 1970 a 1975, em que a gestualidade e o movimento anteriores se sustêm, a partir dos ‘Rugby’s’ e ‘Maios 68’, e que desde o início inclui retratos de relações pessoais de proximidade e de figuras das artes e da literatura (Eduardo Viana, três Almada’s, dois Pessoa’s, Camões) e também quatro auto-retratos.
Na actual exposição só estão presentes Almada (nº 28 do Catálogo Raisonné vol. 2) e um Ferreira de Castro (de A Selva, nº 72) mais três retratos de mulheres (Manuela, nº 65; Graça, nº 76; e Teresa, nº 113), de um conjunto que foi drasticamente reduzido, contando com mais de 70 telas. Nesta “fase” assinala-se a presença de uma modalidade rara, o retrato nu (sempre escasso quando não se trata de representar modelos profissionais). Na sucessão de ciclos de produção seguiram-se as colagens eróticas, “teatro do corpo / espaço de Eros”, mudando novamente de processos.
Este ciclo de pintura foi acompanhado por uma série autónoma de retratos desenhados a lápis, paralela mas formalmente muito diversa, uma série também extensa, prolongada de 1970 a 1977 ou 78, neste caso sempre de pessoas que lhe eram próximas a vários títulos. Iniciou-se a pedido do poeta Alberto de Lacerda e prosseguiu com amigos (Manuel Torres) e amigas (Mimi Dacosta, Rucha) ou ‘companheiras’, outros pintores (João Abel Manta, Jorge Martins, Costa Pinheiro, Eduardo Luiz, o último retratado e também retratista recíproco) e escritores (Cardoso Pires), um galerista (Manuel de Brito), críticos amigos parisienses (Roger Munier, Patrick Waldberg, antigo surrealista dissidente). Foram reunidos em grande parte num álbum prefaciado por Fernando Gil (Os Retratos a Lápis dos Anos 70, ed. Imprensa Nacional, 1987) e alguns são mostrados agora no Atelier-Museu na escada entre os dois pisos.
Um segundo grupo de retratos pintados inclui apenas escritores, quatro poetas, e resulta de uma proposta para ilustrar um livro sobre o poema “O Corvo” de Edgar Allen Poe e as suas versões traduzidas por Baudelaire, Mallarmé e Pessoa. O projecto, sugerido em 1981 por Joaquim Vital (Editions de la Différence, Paris), à “saída” do ciclo dos ‘Tigres’, alargou-se a uma série extensa de quadros que se prolongou até 1985, com retratos individuais e retratos conjuntos de grande formato (Poe e cada um dos tradutores), e mais dois de grupo, um triplo Pessoa e os quatro poetas reunidos, ultrapassando assim em muito o propósito inicial, como foi frequente suceder, excedendo a ilustração.
O retrato literário não se separa da semelhança, embora a trate com outra liberdade, ficcional e já então de novo gestual, com a presença repetida do Corvo e uma inesperada aparição do Orangotango, acolhendo o acaso que acontece na tela, visitando representações fotográficas e anteriores retratos pintados, designadamente os Poe e Mallarmé de Manet. A série foi apresentada num álbum com texto de Jean-Michel Cluny (retratado noutra ocasião), que se chamou Le Livre des Quatro Corbeaux ou o Livro dos Quatro Corvos, na tradução para a Galeria 111, e igualmente numa caixa de serigrafias, retratos e corvos desdenhados, mas gorou-se à data uma prevista exposição em lugar destacado, dispersando-se em colecções particulares sem a visibilidade que merecia.
A esta série se seguiram de imediato dois retratos autónomos de Fernando Pessoa, de 1985, e um projecto de edição ilustrada da Mensagem, onde incluiu, logo no mesmo ano, os retratos individuais de Camões (agora exposto) e D. Sebastião, e em grupo de Mário de Sá Carneiro, Santa Rita Pintor e Amadeo Souza-Cardoso (‘Lusitânia no Bairro Latino’ - na exposição do AMJP), ou Pessoa (‘Fernando Pessoa encontra D. Sebastião...’), em situações ou histórias livremente imaginadas, a par de três outras “pinturas de história”, sobre os presentes de D. Manuel ao Papa, as peregrinações de Fernão Mendes Pinto e a pregação de Santo António (“7 Histórias Portuguesas”, ed. Clássica Editora, exposição na Galeria 111, 1985). Por essa época tinha começado a ocupar-se com figuras míticas (Salomé, Leda, Actéon, o Julgamento de Paris, o Rapto de Europa) numa série de quadros ovais que foram expostos separadamente em Paris (Ellipses, Galerie Bellechasse, 1984). Vieram a ter larga sequência nas décadas seguintes, mas no final dos anos 80 as viagens do artista ao Brasil vieram outra vez substitui a ficção pela observação, nas figuras dos Mascarados e dos índios da Amazónia - regresso aos real.
Retrato de D Sebastião com um espelho, 1985
Entretanto, interrompendo em 1983-84 a série “O Corvo”, outro grupo de quatro poetas destinados ao revestimento em azulejo da estação Alto dos Moinhos (Lisboa) absorveu o pintor durante “um ano de desenho”. Tratou-se, por ordem cronológica, de Camões, Bocage e de novo Pessoa e Almada. Os retratos lineares em tamanho natural espontaneamente traçados e repetidos com variantes, a marcador sobre papel (quase sempre papel vegetal), acompanharam-se de motivos com que cada um se identifica (sereias e cupidos, espadachins, frades, gaivotas, arlequins e muito mais) numa extensíssima galeria de figuras que passaram a ocupar os átrios e corredores do Metro, alem de terem preenchido um dos pisos do Centre de Arte Moderna, em 1984. Couberam agora no Museu apenas dois retratos, Bocage e Pessoa, que foram acompanhados por um Becket (1987) e Dante (2006), o que é pouco - poderia ter-se feito a exposição em duas ou três partes.
3. Depois de centrar a atenção nos grandes ciclos de retratos, podemos considerar outros períodos, no início e no fim do caminho, e alguns momentos ou pequenos conjuntos de obras também significativas.
Posted at 00:56 in 2020, Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar, retrato | Permalink | Comments (0)
Nunca exposto até agora (1), e nunca referido, 'Marcha' é uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospectivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela Pide em 1961. Bem reconhecível entre as figuras do jovem casal que avança em primeiro plano, ocupa um lugar central que correspondia na época à sua intervenção como artista e activista -- animava e coordenou as acções dos artistas do PCP nos primeiros anos 50 (ou já seria mesmo o respectivo “controleiro”, um controleiro não sectário, segundo J.P.). Em 1955 trocou uma carreira artística já reconhecida pela passagem à clandestinidade como responsável por uma oficina de falsificação de documentos.
A natureza política do quadro, que é de facto uma dimensão partidária, relaciona-o sem dúvida com as campanhas pela paz que o PCP promoveu nos anos de 1949-54, ao tempo da guerra da Coreia e da Guerra Fria, mobilizadas nomeadamente em acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao "Apelo de Estocolmo" pela proibição das armas nucleares, lançado em 1950, e contra a reunião de Lisboa do Conselho do Atlântico em Fevereiro de 1952, depois da adesão portuguesa ter sido ratificada em Julho de 1949, acontecimentos que vieram dividir e alterar profundamente as dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária. Este é muito obviamente, numa pintura clandestina (nunca divulgada, mesmo depois do 25 de Abril, por razões a interrogar), o lado comunista e pro-soviético de uma barricada semi-legal, residente num atelier e tertúlia activos num período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Rui Luís Gomes (1949 e 1951). E também na ocasião de um "desvio sectário" que conheceu grandes fracturas internas nos meios intelectuais e num PC debilitado por muitas prisões, o qual dá lugar a seguir ao chamado “desvio oportunista de direita” de 1956-59, após o relatório de Kruchov, depois “corrigido” pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961, na dramática pequena história ziguiezaguiante do anti-fascismo.
Se esta pintura panfletária não se considerar uma "obra prima", este não é um quadro menor, até pela coincidente ambição do assunto e do formato, e o encontro entre o manifesto e o retrato de grupo concede-lhe uma verdade, uma intensidade que é fusional com as qualidades formais que o fazem seguramente uma das peças mais marcantes do neo-realismo, que aqui se identifica com o realismo socialista sem concessão académica. É uma obra única na carreira do pintor (apesar de renovar o título da primeira Marcha de 1946), e é uma obra bem representativa de um tempo político e suas contingências, que, por sinal, continuou ser uma obra desconhecida - o artista nunca a procurou incluir nas suas antologias e a iconografia de Dias Coelho e do PCP nunca a recuperou.
Partindo da consideração da Marcha de 1952 é necessário tentar contrariar a desvalorização crítica das obras neo-realistas deste período (feita também pelo artista), e a partir daí rever a história habitual do movimento, dividindo-o em dois períodos diferentes, em especial quanto à obra do seu principal animador, intérprete e crítico. O segundo período, a partir de 1951 é sensível à orientação de uma ortodoxia partidária chegada de França no sentido de um realismo social de intervenção militante. Algumas obras-chave mostram-no e a Marcha é o seu emblema maior.
Depois das mostras individuais de 1950-51, em que Pomar reuniu pintores recentes e pintou outras para ocasião - para além de apresentar cerâmicas e pequenas esculturas de barro com maior sucesso de mercado, renovadas na passagem da mostra de Lisboa para o Porto - , duas telas gémeas de 1951 mostram a continuidade da vertente que se pode dizer formalista e lírica, manifesta em Meninos no Jardim (O eixo corrido) e Vendedoras de estrelas. Mas logo se evidencia, ainda nesse ano, uma direcção que é ao mesmo tempo mais empenhada politicamente, renovando o programa realista e assumindo uma condição mais austera, trocando a fluência decorativa pela observação social e a afirmação política. É o caso das Mulheres na lota (Nazaré), ainda de 1951, depois da Marcha, a seguir de Os Carpinteiros e das duas peças maiores do Ciclo "Arroz", a que se acrescenta o retrato de Cardoso Pires, já de 1954. Só a confrontação partidária e a batalha ideológica (e crítica) de oposição aos realismos - no contexto da Guerra Fria e da oposição aos formulários naturalistas autoritários, nazis e estalinistas - veio ocultar estas obras maiores no curso da década de 50 e da carreira do pintor.
As novas condições da intervenção partidária afirmam-se com clareza na produção de uma série de gravuras dedicadas ao tema da Paz, o qual mobiliza o PC na legalidade possível. A Mulheres Fugindo (conhecida como A Bomba Atómica) seguem-se as gravuras em que figura a pomba da paz proposta por Picasso como emblema da causa.
A Marcha como retrato de grupo identifica sem o representar expressamente o atelier da Praça da Alegria (antigo atelier que foi de José Malhoa), alugado e chefiado pelo também escultor Vasco Pereira da Conceição, militante e recente ex-preso político, que é visto a entrar no bordo direito do quadro. Aí trabalharam também Maria Barreira, sua mulher representada pela Maternidade à direita baixa, um tema comum ao casal, e por vezes Dias Coelho e mais tarde talvez Alice Jorge, quando iniciara o relacionamento com Pomar. Lugar de trabalho e também de tertúlia artística e política, que alguém apontou como uma espécie de antecâmara das Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAPs ou Gerais, 1946-56), em cuja organização participava activamente Dias Coelho e que Pomar acompanhava assiduamente na imprensa, até um último artigo em 1953, de avaliação e redefinição do neo-realismo e também auto-crítica militante, em que trocou as publicações habituais pelo mais longínquo Comércio do Porto. Cessa então a colaboração nas revistas, sem se conhecer justificação para tal (sequelas da "polémica interna do neo-realismo", razões pessoais?) e sem ser ainda um afastamento político declarado. Em 1955 a sua pintura deixa de ser neo-realista (mas continuam na gravura as figuras do trabalho), ao cabo de dez anos de prática, e o movimento encerra-se pouco depois, numa última Geral retrospectiva quando se iniciava a era Gulbenkian.
No friso de retratos, ao lado do casal em primeiro plano, está o engenheiro Frederico Pinheiro Chagas, amigo e simpatizante, certamente encomendador e depois proprietário de sempre desta obra, e logo a sua mulher, Dina. O par alegórico dos jovens militantes de mão dada, encabeçando a Marcha, guiando o povo segundo uma tradição revolucionária que se partilha com os códigos da apologética religiosa, contou por modelos o carpinteiro Francisco Bento, saído da prisão pouco tempo antes, que frequentava o atelier e realizou mobiliário para vários camaradas, e ao lado, muito provavelmente, Zita Namora, mulher do escritor, do qual Dias Coelho realizou um busto em 1950-51, o que justificaria a sua passagem pelo atelier. Desta Zita existem fotografias do seu retrato esculpido por Pomar (uma encomenda?) e de um estudo para o quadro (imagens abaixo). De Pinheiro Chagas há também um excelente retrato desenhado. A menina à esquerda não foi identificada, ainda, mas será alguém em particular - a "presença" dos modelos retratados vem reforçar a força mobilizadora da alegoria.
A alegoria tem como pólos simétricos a figura da Maternidade à direita, como promessa de futuro, e o estranho personagem visto obliquamente de costas à esquerda, um (falso) profeta, um velho frade?, vendedor de ilusões, que aponta para uma cidade moderna, em construção, com guindastes, personagens hieráticos (robotizados?); ao fundo, montes áridos. De um lado, o passado e um ilusório presente, do outro a infância e o futuro. Na metade direita, por trás do friso das figuras está uma alongada parede ou casa vermelha, que toma o lugar de uma (im)possível bandeira. Talvez também se reconheça aí, mesmo em cima à direita, uma praia e um barco, amarelo e azul, que rimam ou se repetem em primeiro plano rasgando de luz o ventre e o vestido azul da mulher - e este é um elemento de composição de grande eficácia moderna.
A memória possível do atelier, o interesse pelo retrato e o contexto neo-realista devem ser evocados com detalhe para situar esta obra de excepção, bem como o seu lugar no âmbito da produção de Pomar da primeira metade da década, sinalizando a respectiva diversidade quando se aproxima o fim da sua prática neo-realista.
O atelier da Praça da Alegria, no nº 47, ao que parece, situado entre o Maxime e o Hot Club, ao lado de uma leitaria, era também frequentado por escritores: José Cardoso Pires, com os primeiros livros e grande actividade política, que aí conheceu em 1954 a sua mulher, Edite, irmã de Vasco da Conceição, por ocasião do retrato que Pomar pintava, sendo ela retratada por Alice Jorge no ano seguinte; Orlando da Costa, que aí levou Maria Antónia Palla; Alexandre Cabral, amigo do engenheiro, e outros mais. Esses primeiros anos da década de 50 conheciam uma grande tensão ideológica, a dissidência titista e "browderista" de Piteira Santos, Mário Soares e os Lyon de Castro, associada à denúncia pelo PC do jornal Ler da Europa-América; o debate sobre estética e as fracturas no campo neo-realista, centrado no controle da Vértice; a saída de Mário Dionísio do partido em 1953 e a recusa de continuar a participar nas Gerais, a partir de 54, após a alargada participação nacional na II Bienal de São Paulo enviada pelo SNI no ano anterior. Em 1952 a SNBA esteve encerrada depois de Eduardo Malta ter sido expulso de sócio “pela provocação que encenou contra José Dias Coelho, que encabeçava esta batalha” pela renovação dos júris (2). O atelier da Praça da Alegria era um lugar "ortodoxo" sujeito à pressão do realismo socialista de informação francesa, via Arts de France (a sua "Tribune du Nouveau Réalisme" surge em 1949 e a revista desaparece em 1951), que se ia abatendo sobre a originalidade e a irreverência do primeiro neo-realismo.
Tentando estabelecer um panorama da época, os livros então ilustrados por Júlio Pomar dão um retrato das relações literárias marcadas pela cumplicidade política e pessoal: Carlos de Oliveira (retrato de 1948); Sidónio Muralha e Cardoso Pires (desenhos de 1949, 1950); Alves Redol, Raul de Carvalho e Ferreira de Castro (1949); Mário Dionísio, José Fernandes Fafe, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, Orlando da Costa (todos com retratos desenhados para as tiragens especiais de 40 exemplares da col. Cancioneiro Geral do Centro Bibliográfico, 1950/1953); e Alexandre Cabral (1955). As grandes encomendas editoriais da Fólio (de Victor Palla e Cardoso Pires), Sul (de Castro Soromenho), Realizações Artis (de Rogério de Freitas e Leão Penedo), Bertrand, Minotauro (Urbano Tavares Rodrigues), Cor e Portugália virão depois (1957-1967).
Além da escrita e do desenho para a imprensa, da ilustração e da cerâmica, têm relevância na actividade de Pomar (afastado do ensino em 1949) as encomendas para decoração e a escultura (a pintura era pouca, ao tempo, num mercado apenas de amigos), em retratos e em peças decorativas, que se expunham nas Gerais (assinalam-se adiante com *) e foram desaparecendo ou esquecendo-se em destinos privados: retratara em escultura a sua mulher, Maria Berta, em 1949*, e também os escritores Sidónio Muralha*, 1950, e António Navarro, 1951 (Salão de Outono), obras presentes na actual exposição, igualmente Armindo Rodrigues, 1951*, ficando-se por aí as peças com qualidade moderna, não convencionais. Conhecem-se apenas mais quatro “cabeças”, duas de amigos (Ana Moura*, mulher de Rui de Moura, editor, depois Prelo) e Joaquim Barata* (fundador da Gravura) e as outras (Zita e Liliana, 1951) talvez de encomenda. À escultura só voltará com os ferros soldados do ciclo Dom Quixote, em 1960. Fez também, em 1954, os retratos pintados de Cardoso Pires e Maria Lamas (esta presa pouco antes, no regresso de Moscovo, e o retrato indicado no catálogo da VIII Geral não terá certamente sido exposto, dado o contexto repressivo) - a que se acrescentam os de Vera Azancot (tradutora, 1954*), Alice Jorge (1955), Maria José Salvador (1956, mulher de Manuel Torres, amigo, parceiro de viagens de automóvel e fundador da Gravura). É já de 1958 uma outra encomenda isolada, João Duarte, para a Companhia de Seguros Comércio e Indústria, agora no BCP, que só terá continuidade dez anos depois mas bem diferente.
Por seu lado, José Dias Coelho (n. 1923), que entrara no mesmo ano de 1942 na Escola de Lisboa, apresentou nas Gerais retratos de Rolando Sá Nogueira, 1949; M.T. (Margarida Tengarrinha), 1950; Alves Redol, 1951; M.E.C. (Maria Eugénia Cunhal), 1953; Maria Isabel Aboim Inglês, 1954, entre outros não nomeados. Realizou também os bustos de Fernando Namora e do designer Tomás de Figueiredo. Aliás, o retrato teve sempre uma forte presença nas Gerais. Aí expostos ou não, o catálogo “Um tempo e um lugar” (3) refere ou reproduz obras de Abel Manta (Bento Caraça, 1947), Sá Nogueira (Frederico George e Jorge Vieira de c. 1949), Maria Keil (Abel Manta*, 1949), Vasco da Conceição ("cabeças" de Maria Barreira*, Sidónio Muralha* e Lopes Graça, 1950*); Victor Palla (Cardoso Pires, 1951), Mário Dionísio (Joaquim Namorado* e Eduarda D.*, 1953), Lima de Freitas (Alves Redol*, 1953, Cardoso Pires*, 1954), Alice Jorge (Edite Cardoso Pires*?, 1955), e também de.João Abel Manta, Arlindo Vicente (João Gaspar Simões, sd), José Farinha (Alves Redol, escultura s.d.), Euclides Vaz, entre outros retratos indicados sem nomes dos modelos.
Armindo Rodrigues 1951 de Pomar (col. part.) e Fernando Namora, de J. D. Coelho 1951, bronze (col.Museu Gulbenkian)
Picasso, Maurice Thorez 1945 / Fougeron, retrato da mãe de Thorez, e Picasso, Thorez, croquis 1949 (Art de France 1949) / Boris Taslitzky, A morte de Danielle Casanova
Além da permanência das práticas realistas, a disciplina do retrato era então recomendada ou imposta pelos partidos comunistas num período de maior pressão da ortodoxia (e do culto da personalidade, especialmente em França) - a pintura de história também se impunha mas foi naturalmente mais rara entre nós. Esse é um contexto que seguramente penalizou a respectiva continuidade em anos seguintes, e alguns episódios polémicos tiveram retratos por pretexto (foi famoso o caso do Stalin de Picasso, nas Lettres Françaises, à data da sua morte...), num período em que o combate aos realismos, depois das normas nazis e soviéticas, fazia parte do enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Depois de Picasso, Freud e Bacon, Hockney e Kitaj, Arikha, entre os maiores, iriam a seguir prosseguir e reafirmar a centralidade do retrato na arte do século XX.
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Para o grande formato de Marcha, único ao tempo - 122 x 199 cm, têmpera sobre aglomerado - Pomar usou uma placa de madeira da mesma série de três outras tábuas que pintou para o restaurante Vera Cruz, na Avenida da Liberdade, projecto de Victor Palla e Costa Martins, com quem Pomar manteve várias colaborações (elas passaram depois para o restaurante Tarantela, no largo da Estefânea, e dispersaram-se nos anos 90). A vocação decorativa de referência brasileira realiza-se aí com códigos de pintura mural, o que também ocorre nesta Marcha, embora esta de ambição panfletária, num figurino apologético onde a condição de retrato de grupo e a alegoria asseguram maior complexidade.
A campanha pela Paz está presente em três gravuras de 1951 que tiveram muito grande difusão e marcaram presença nas casas dos intelectuais da Oposição de feição comunista. Mulheres Fugindo, conhecida como A Bomba Atómica e A Explosão, seguida por outras onde já está presente a pomba que em 1949 Picasso promovera da iconografia cristã a símbolo da Paz no cartaz para o Congresso de Paris. Pouco depois, em agosto de 1949, a URSS detonou a sua 1ª bomba nuclear; em março de 1950 o Comité Permanente dos Partidários da Paz lança o Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares,
Outra obra que alude às campanhas da paz e certamente à Coreia é A Vida ou a Morte (conhecido também como Guerra e Paz), datada de 1953 e exposto nesse ano na VII Exp. Geral. O Massacre na Coreia, de Picasso, 1951, poderá ser uma referência reconhecível, condensando-se o grupo das mulheres numa única figura maternal e esquematizando a marcha militar até à caricatura, numa composição decorativa.
Mas a produção militante de Pomar é acompanhada no mesmo ano da Marcha por obras de feição bem distinta e também de direcção inédita na sua produção, a paisagem, numa coincidência que reflecte a manifesta diversidade das interesses - mas nenhum destes quadros terá sido exposto no seu tempo próprio:
NOTAS
1 reproduzido talvez pela 1ª vez no Catálogo Raisonné vol I, 2004, nº 86, o quadro nunca antes terá sido dado a conhecer e não faz parte da iconografia do PCP.
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https://actualitte.com/article/39866/tribunes/julio-pomar-a-lisbonne-un-parcours-hors-des-sentiers-battus
Le jeudi 30 mai 2013, ActuaLitté, Les Univers du Livre, Paris: https://actualitte.com/
Júlio Pomar est probablement le plus grand peintre portugais vivant. La ville de Lisbonne lui consacre aujourd'hui un « atelier-musée » aménagé par le grand architecte Álvaro Siza. Son fils, Alexandre Pomar, historien d'art et critique, nous fait partager l'événement que constitue l'ouverture au public de ce lieu exceptionnel.
Les Éditions de la Différence ont publié de nombreux ouvrages sur l'oeuvre de Júlio Pomar , plusieurs livres dont il est l'auteur, un grand nombre d'estampes à tirage limité et une série de 4 « Tigres » en bronze dont un exemplaire figure à l'entrée du musée.
« Un parcours hors des sentiers battus »
"Il existe un nouveau lieu de contemplation et de plaisir à Lisbonne : l'Atelier-Musée Júlio Pomar, situé, rua do Vale, dans le vieux quartier du Bairro Alto.
Le lieu, dont on avait prévu dès l'origine la future transformation en musée, avait été conçu comme un grand atelier destiné au peintre Júlio Pomar. Pour l'artiste, âgé de 87 ans, dont la dernière exposition d'œuvres inédites s'est déroulée en novembre 2012 à Porto et à Lisbonne, le défi que représentait l'appropriation de ce vaste espace aménagé par son ami, le célèbre architecte Álvaro Siza, était de taille.
La beauté du lieu est spectaculaire. L'architecte a conservé la morphologie de l'ancien bâtiment qui était un entrepôt. Il a rétabli le rythme régulier des fenêtres de la façade. Il a opté pour un accès latéral tout en ouvrant une cour là où on rangeait, voilà un siècle, le vieil omnibus tiré par des chevaux. Il a agrandi une petite mezzanine sur trois côtés du bâtiment, ouvrant l'espace jusqu'au toit aux larges poutres en bois. Il n'a pas touché aux fenêtres qui inondent de lumière l'intérieur et a fait peindre l'ensemble d'un blanc pur et frais.
Fotos Luisa Ferreira
Après la nomination d'une jeune directrice, Sara António Matos – sculptrice et conservatrice de musée – l'Atelier-Musée a été inauguré par une exposition de la donation de l'artiste, complétée par des œuvres majeures provenant de collections privées ou publiques. L'accrochage non chronologique du travail du peintre, montrant différentes séries et différentes périodes représentatives de sept décennies d'une production ininterrompue, jamais confortablement installée dans une « image de marque », est source de surprises et de rapprochements inattendus.
Le grand cycle brésilien, aux couleurs puissantes (de la fin des années 80), régulièrement revisité, cohabite à l'entrée avec la construction gestuelle des formes en mouvement des années 60 (les corridas à cheval) ; à l'étage, la période néo-réaliste de l'après-guerre fait face aux pratiques d'assemblage et de collage et à l'érotisme explicite du travail des années 70-80, suivie du cycle des Tigres.
Bénéficiant d'une totale autonomie et s'inscrivant dans un dialogue fructueux avec l'artiste, Sara A. Matos nous fait découvrir de vieilles gravures inédites, des études, des sculptures, des peintures, créant un mélange harmonieux des supports et des thèmes.
À travers un parcours hors des sentiers battus, elle partage avec un public nombreux, venu vivre une expérience artistique communicative et gratifiante, sa découverte de l'œuvre de Júlio Pomar. "
Par Alexandre Pomar (traduzido e adaptado por Colette Lambrichs)
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Retrouver Julio Pomar, aux éditions de la Différence
(versão original)
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR
Deveria ter sido um grande atelier particular do pintor Júlio Pomar, prevendo-se desde início a utilização posterior (póstuma) como museu. O projecto começou no ano 2000 por iniciativa de João Soares, então presidente da Câmara de Lisboa. A Assembleia Municipal aprovou logo a compra do edifício, um antigo armazém nas imediações do Bairro Alto que servia de depósito de livros a uma velha editora (a Sá da Costa), e recomendou ao artista a criação de uma Fundação com o seu nome que viesse a receber uma ou mais doações do seu acervo.
Escolhido pelo artista uma amigo arquitecto, o famoso Álvaro Siza, as complicações técnicas e burocráticas da iniciativa municipal foram retardando o projecto, de tal modo que as obras de renovação-adaptação do lugar só se iniciaram em 2007. Nunca houve, porém, entraves políticos, e os três seguintes presidentes da Câmara, de diferente formação política, passando-se do PS ao PSD e de novo ao PS, apadrinharam sempre o projecto com novos passos tendentes à concretização da obra. Em colaboração com a Fundação Júlio Pomar, que foi instituída em 2005 e patrocinada desde então pela CGD, o banco público, o que lhe garantiu as condições suficientes de funcionamento para a organização de exposições noutros lugares do país e no exterior.
A abertura ao público aconteceu 13 anos depois, a 5 de Abril de 2013, já não como atelier mas imediatamente como museu, conservando a designação de Atelier-Museu, como memória do projecto inicial e em acerto com as características do espaço. Se o lugar não pode dispor de todas as valências (funcionalidades) que se atribuem agora aos museus, é uma magnífica galeria de exposições - é o espaço museificado, mas não congelado no tempo, de um atelier ideal. Para o pintor, com 87 anos, que fez uma última exposição de obras inéditas em Novembro de 2012, no Porto e em Lisboa, o desafio de habitar o vasto espaço do atelier era já menos atraente do que ver nascer o seu museu, diante da sua residência em Lisboa (Pomar conserva uma outra residência atelier em Paris).
Álvaro Siza manteve a morfologia do antigo armazém, recuperando na fachada a regularidade do ritmo das janelas que perdera com o tempo. Optou por um acesso lateral, abrindo um páteo onde se acolhera há um século o velho "chora" (transporte colectivo anterior ao eléctrico, de tracção animal). Ampliou um pequeno mezanine para envolver agora três lados do pavilhão, que permanece um espaço aberto até ao antigo telhado de largas vigas de madeira. Manteve as janelas que inundam de luz o interior (há ainda situções de iluminação a trabalhar) e pintou tudo de um branco puro e fresco. A obra arquitectónica é, a par da obra de Júlio Pomar, a outra atracção do lugar.
Escolhida uma jovem directora, Sara António Matos, com formação em escultura e curadoria, o Atelier-Museu abriu com uma antologia generalista que parte do acervo e se completa com algumas pinturas maiores, de diferentes colecções privadas e públicas. A ordenação não cronológica das séries e dos períodos do trabalho do pintor, que leva sete décadas de produção ininterrupta e nunca estabilizada numa qualquer confortável “imagem de marca”, é propícia às surpresas e confrontações. O grande ciclo brasileiro, de cores poderosas (do fim dos anos 80, com revisitações sucessivas), convive à entrada com a construção gestual das formas em movimento nos anos 60 (as corridas de cavalos); em cima, o período neo-realista do Pós-Guerra confronta-se com as práticas da assemblage e da colagem e o erotismo explícito dos trabalhos dos anos 70/80, com passagem ao ciclo dos Tigres. Com total autonomia e em diálogo feliz com o pintor, Sara A. Matos dá a ver velhas gravuras inéditas, estudos do natural, esculturas e pinturas, associando a diversidade dos suportes e dos temas com hábil fluência. A sua descoberta da obra do pintor, através de um itinerário indisciplinado e original, é partilhada com sucesso pelo público que aflui em bom número para uma experiência da arte que é comunicativa e gratificante. Há um novo lugar de contemplação e prazer em Lisboa."
Alexandre Pomar
Posted at 00:39 in 2013, Atelier-Museu Júlio Pomar, Difference, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)