ARQUIVO EXPRESSO, 20-01-95. As obras do Museu do Chiado fotografadas por Mariano Piçarra. Um livro e uma exposição: OBRAÇOM. Museu do Chiado, histórias vistas e contadas
"Modos de ver"
fotografia parcial da capa
Anteriormente à exposição conheceu-se o livro, distribuido pelo Instituto Português de Museus antes do Natal. Agora, as fotografias feitas por Mariano Piçarra durante a fase final das obras que transformaram o antigo Museu Nacional de Arte Contemporânea no novo Museu do Chiado existem também como exposição — e essa dupla circunstância deve ser assinalada desde logo por estarmos diante de um exemplar entendimento do que se representam, do livro à mostra, as diferentes condições de contacto com um mesmo trabalho fotográfico.
Entre o livro e a exposição são, de facto, muito diferentes as condições de visibilidade da fotografia, substituindo-se, em geral, o contacto próximo e individual com as impressões tipográficas por uma apresentação do objecto fotográfico sujeita às condições pré-estabelecidas para a pintura. Mariano Piçarra, fotógrafo e designer, soube tornar palpável (aliás, visível) essa diversidade de situações e reinventar condições expositivas favoráveis à fotografia. A propósito, recorde-se que ele já o tinha conseguido em Dezembro de 1993, quando um mesmo projecto fotográfico se apresentou simultaneamente numa exposição na Ether e num original catálogo-livro (Carneiro) de folhas desdobráveis, e ainda numa exposição paralela na Mãe d'Água das Amoreiras («Cenotáfio»), onde as provas de grande formato se viam sobre a superfície do seu grande tanque interior, acrescentando-se a deslocação da luz ambiente às sombras inscritas nas imagens.
Poderia agora, na sala dos fornos do Museu do Chiado, falar-se de instalação, se a palavra não estivesse degradada pela prática de buscar as vantagens cenográficas dos espaços de exposição para beneficiar obras inexistentes — e se não se tratasse, aqui, de buscar para as provas fotográficas as melhores condições de visibilidade, conjugando um conceito expositivo com o conteúdo específico de um muito particular projecto fotográfico. Nem mesmo da construção de um cenário se deverá falar neste caso, porque M.P. se limitou a propor ao visitante as condições mais favoráveis para isolar cada prova como um objecto em si mesmo, perante o qual a observação atenta é a condição necessária para apreender toda a riqueza da sua superfície material e significante.
Usando blocos de madeira (MDF) como um óbvio material precário de construção, para expor fotografias que documentam a construção do museu, M.P. estabeleceu, para além de um adequado contexto metafórico, uma decisiva variabilidade dos pontos de vista do espectador, que remetem para a diversidade da sua própria situação quando fotografava as obras. Interrompendo a rotina da apresentação linear das imagens em painéis, e usando também para mostrar as suas fotografias quer o plano vertical (a dois níveis de altura) quer o plano horizontal (para imagens feitas de cima para baixo), a exposição convida o espectador a ver melhor — atitude homóloga à que se exigiu ao fotógrafo contratado para documentar as obras de reconstrução do museu.
Outro recurso sabiamente utilizado por Mariano Piçarra, também autor do design da exposição, é a diversificação das molduras (de largas superfícies planas), a branco para as imagens interiores e a cinzento para as exteriores, mais uma vez interrompendo uma uniformização preguiçosa e acrescentando condições de visibilidade a algo que convoca sempre a atenção e a demora do olhar. Mas nunca de trata, como é demasiado frequente, de substituir a obra exposta por elementos decorativos acessórios (ou por elementos significantes acrescentados do exterior), porque é em cada uma das superfícies impressas que se abre todo o abismo (enquanto registo indicial e construção de um enigma) do que se dá a ver, fazendo descobrir, prova a prova, como são as coisas depois de fotografadas, como dizia Winogrand.
Entretanto, é curioso assinalar, para a pequena história das instituições locais, que, à falta de condições de produção do Museu do Chiado e do IPM, foi o fotógrafo que conseguiu reunir os patrocínios necessários à montagem (avaliada em cerca de mil contos), contando com o apoio mecenático particular de ARA Arquitectos, Manuel Piçarra e LABO 2. A fotografia é um parente pobre, quando não usa o disfarce equívoco de «arte contemporânea».
«Obraçon. Museu do Chiado — histórias vistas e contadas», o título do trabalho de Mariano Piçarra, consta de 76 fotografias realizadas durante as obras de renovação e montagem do novo museu, e constitui um projecto que assume a dupla responsabilidade de ser um registo documental e uma criação autoral, sem que seja possível dissociar, imagem a imagem, essas duas componentes. Por essa dupla condição passa certamente algo de específico ao medium fotográfico e também todo o carácter problemático da sua possível designação como arte — é também nesse terreno questionante que se inscrevem as imagens propostas por M.P.
No livro, as fotografias são acompanhadas por um ensaio do fotógrafo Gérard Castello Lopes, «Obraçon ou a dupla dádiva» (o arcaico título atribuido por M.P. significa obra e oblação, ou dádiva, e cada fotografia, segundo G.C.L. «é, ao mesmo tempo, o registo dum real e um escondido retrato do seu autor»). Aí se propõe uma arguta e experimentada pista de abordagem, até à valorização última de um conjunto de imagens integradas no acervo do livro mas capazes de «valer cada uma por si», nessa leitura projectando o fotógrafo comentador o seu próprio gosto de encontrar nos concretos lugares fotografados a emergência de algo de indecifrável, na passagem dos arquétipos formais para a presença do desconhecido.
Na exposição, entretanto, cada uma das fotografias mais imediatamente referenciáveis a um espaço ou situação concretos adquire por efeito da sua visibilidade acrescentada (isoladamente e em diálogo com as que lhe estão próximas) a condição vertiginosa de ser o suporte de uma infindável interpelação do olhar. Descobrir-se-á nas suas infinitas gradações da luz uma espacialidade sempre constantemente instabilizada, em planos sobrepostos, fragmentados ou de perspectivas acentuadas até à respectiva desrealização, e uma inscrição de sinais organizada numa tensão superficial «all over», sempre tão aberta à literalidade dos referentes como à pluralidade dos desdobramentos dos seus sentidos. Apenas sombras de coisas. (Até 15 Fev.)
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O volume tem apresentação de Raquel Henriques da Silva (Museu do Chiado, Um olhar retrospectivo, e inclui a Memória Descritiva por J.-M. Wilmotte, diversos textos sobre o sítio, o Terramoto de 1755, as intervenções arqueológicas e a progressiva desagregação dos espaços do Convento de S. Francisco (este de Joana Sousa Monteiro), além da análise de Gérard Castello Lopes.
NOTAS
(27-01-95) ou 96?
Sujeito a uma redução do calendário da sua apresentação, este trabalho fotográfico realizado durante as obras de renovação e montagem do Museu constitui um exemplo raro de relação entre o compromisso documental e a afirmação autoral, enquanto a respectiva montagem expositiva faz dos recursos cenográficos um meio de explorar as melhores condições de visibilidade. Observando um espaço circunscrito, o edifício em obras, o fotógrafo faz das suas imagens um meio informativo sobre os condicionalismos arquitectónicos da reconversão do Museu (a sobreposição de estratos e de tempos), sobre as soluções formais encontradas e sobre a dimensão física do trabalho humano, enquanto faz de cada imagem um espaço construído pela luz, a escala e pele das coisas, onde os sinais inscritos se oferecem e resistem ao exercício da visão do espectador, cumprindo a representação do real como questionamento da sua transfiguração em imagem.
(03-02-95)
Últimos dias de uma exposição de fotografias realizadas durante a reconstrução e montagem do Museu, nas quais o estrito cumprimento de uma encomenta documental permitirá, mais uma vez, sem o uso de formulários crítico-desconstrutivos e sem ambição picturialista, fazer entender que a fotografia nunca é um meio transparente, porque os indícios referenciais não significam um qualquer acesso directo ao real. Desde logo porque na construção da imagem com a luz as coisas e as suas sombras, a profundidade do espaço e a materialidade textural, tal como os sentidos metafóricos são elementos da criação do fotógrafo. Nas superfícies «all over» das imagens de M.P., os lugares do museu em construção não são um exercício formalista sobre os efeitos da luz e as condições do ver, mas uma obra em que o domínio dos elementos materiais é também um trabalho sobre os arquétipos da forma e os significados. A montagem com «design» de M.P. não é uma cenografia arbitrária nem um artifício que acrescente sentidos exteriores às imagens expostas, mas uma outra «máquina» óptica com que a visibilidade se reforça. Um album inclui as 76 fotografias escolhidas, um ensaio de Gérard Castello Lopes e textos sobre o museu e a história do seu edifício.