02.05.20
Houve o milhão de euros para o TV Fest, de que se lembrou a ministra e que um abaixo-assinado travou, e aparece agora, mais discretamente, outro milhão reclamado em carta aberta abaixo-assinada para se adquirirem obras de arte nas galerias: "...que o Ministério que superiormente dirige, em acordo com os demais órgãos do Estado português, disponibilize, a breve trecho e com carácter de urgência, uma verba nunca inferior a um milhão de euros para dispender em arte no corrente ano. Seriam eles destinados a adquirir obras de arte nas diversas galerias portuguesas, através de escolha observada por uma Comissão especializada, nomeada por V. Excia, e integrando representantes nacionais creditados nestas várias actividades."
Não se pode dizer que a cultura se apresente, nas actuais circunstâncias, ou antes delas, como um sector capaz de se pensar a si próprio com perspectivas de racionalidade, eficácia e equidade. E as artes visuais ou plásticas, com a atomização dos seus profissionais e amadores, estão no fim da linha, e em geral fora das movimentações de agentes culturais. A reclamação do milhão de euros não tem pés para andar, nem matéria para extenso debate, mas pode-se começar por lembrar que esta área não tem (não é capaz de ter) representação associativa, nem de galerias (já teve), nem de artistas (a SNBA não cumpre essa função).
O meio galerístico é fortemente centralizado sobre uma ideia informe de "galerias leader", as quais absorvem as compras institucionais (estatais e particulares) e também as notícias ou críticas na imprensa. São também elas, com os seus processos de cooptação e exclusão, que regem a orgânica das feiras de arte, com grande importância para esse núcleo. O mercado galerístico é, por um lado, rigidamente hierarquizado (com independência do maior ou menor sucesso comercial) e por outro lado é também um mercado desconhecido, invisível ou informal, porque a par das "galerias de ponta", e de uma segunda linha que as cerca com alguma eventual visibilidade, existe toda uma imensidade de galerias, lojas, estabelecimentos (de quadros, estampas e "cromos", de molduras, de decorações), que se distribuem discretamente pela malha urbana das capitais, cidades da "província", centros comerciais, etc. Fazem parte do mercado de arte e o volume total de negócios deste sector invisível é seguramente maior do que o primeiro, assegurando, em condições normais, a subsistência de inúmeros artistas, muitos deles "desconhecidos", e intermediários. Deixemos de fora, aqui, a consideração do mercado secundário formado pelas leiloeiras e afins, muito perturbado nos últimos tempos pela dinâmica mais selvagem das vendas pela internet.
Regressa-se à carta-aberta: "Essa verba, desde que adequadamente administrada, poderá a) salvar a produção artística do País, b) garantir a sobrevivência do mercado, galerístico e secundário, e c) as obras assim adquiridas virem a integrar acervos dos museus públicos,..."
A proposta de uma "comissão especializada" para aplicar o milhão de euros é só a transferência da discricionaridade para uma instância que representaria a hierarquia acima apontada e por via desta para um sector já de si privilegiado de galerias e artistas, que a si próprio se atribui a administração da respectiva importância ou distinção. E mais uma vez se distorceria a razão de ser e a competência dos museus públicos, fazendo-os destinatários de aquisições movidas por critérios alheios, lógicas assistencialistas e cumplicidades.
No contexto da actual crise, de desemprego e paralisação de actividades, há que pensar em rendimentos de sobrevivência (universais ou para situações de maior carência) e em abonos, subsídios ou empréstimos que assegurem a continuidade de actividades empresariais e associativas viáveis. Há que proteger as situações de precariedade e ausência de rendimentos, mas não se devem assegurar privilégios estabelecidos, sejam eles decorrentes de posições elitistas e alegados critérios de qualidade. Há que separar as medidas de protecção social, urgentes e abrangentes, e as orientações das instâncias públicas que devem preservar e desenvolver as condições de funcionamento das suas estruturas próprias (museus, bibliotecas, etc) e do tecido cultural em geral.