Hugues de Varine*, herético e provocador (palavras suas), oferece no seu blog a reflexão mais radical sobre o mundo da cultura, a sua economia e o seu futuro, onde vai muito para além dos efeitos da pandemia. Também poderia ter por título Cultura e democracia
tradução minha do texto publicado em 16 de Setembro em Le blog de hugues-interactions - Expériences personnelles et rencontres dans le domaine du patrimoine culturel et du développement: http://hugues-interactions.over-blog.com/
"Os profissionais da cultura, das artes e dos espectáculos estão inquietos não só quanto aos seus programas deste ano (concertos, festivais, exposições, etc.) mas sobretudo com a sua própria situação, agora e no futuro. Isto é verdade em França e, sem dúvida, em todos os países. Os media veiculam diariamente análises e declarações. Eu próprio tenho na minha família artistas que, justificadamente, se sentem ameaçados na sua carreira e nas suas perspectivas económicas a mais ou menos curto prazo.
Esta situação é interessante, para lá do confinamento da primavera de 2020 e dos riscos que ainda correm muitas actividades artísticas "vivas" e instituições de património. Diz-se aliás que esta pandemia pode ser considerada como uma primeira experiência que nos deveria preparar para o que nos espera inexoravelmente com o aquecimento global, já que, como é obvio, não conseguiremos realizar a "transição climática" voluntária e organizada de que toda gente fala mas que continua a ser da ordem do discurso.
Devemos assim, talvez, convencermo-nos de uma realidade de que já se suspeitava durante a crise financeira de 2008: a Cultura, no sentido dos ministérios da cultura, dos profissionais das artes, do património e dos espectáculos, e dos pensadores discípulos de Malraux e tantos outros, não faz parte das actividades essenciais para a imensa maioria dos homens e mulheres de nosso tempo. Quer se trate de financiamentos, de prioridades políticas ou de informação, a cultura vem depois da saúde, do emprego, da educação. Isso não quer dizer que não tenha importância, mas não aparece à cabeça das nossas preocupações, sobretudo em caso de crise, quando as coisas vão mal.
As actividades ditas culturais fazem parte dos lazeres, da ocupação dos tempos livres, dos programas de visitas turísticas e outros, na condição de serem fortemente subsidiadas por fundos públicos ou pelo grande mecenato para que não custem demasiado caras ao consumidor. Mesmo as pessoas cultivadas não estão prontas para pagar o custo real dos espectáculos, das exposições, da conservação do património, que pagamos em grande parte através dos nossos impostos, pagos por todos, mesmo por aqueles que não os desejam aproveitar, e que são o maior número (o não-público).
A situação é séria: desde há sessenta anos, pelo menos em França, as instituições culturais multiplicaram-se ao ponto de dotar o país do estatuto da "excepção cultural" que tantas vezes é brandido como fazendo parte de um certo modelo francês. Mais grave ainda: desde há mais de quarenta anos, a cultura profissionalizou-se tanto que foram criados centenas de milhares de empregos assalariados (e não apenas de artistas) nas diferentes disciplinas artísticas e culturais e nas profissões técnicas que lhes são essenciais. E isso à custa do desaparecimento de muitas práticas amadoras de qualidade, gratuitas e ancoradas em territórios onde asseguravam a animação no quotidiano.
O estatuto francês dos intermitentes do espectáculo, único no mundo, socialmente generoso e economicamente absurdo, é o fruto híbrido das políticas de ajuda ao emprego face ao desemprego de massa e da recusa dos produtores e dos utilizadores a pagar o verdadeiro preço dos seus consumos culturais. Se todos os verdadeiros profissionais do mundo cultural fossem empresários e assalariados de direito comum, facturando as suas prestações pelo preço real, teríamos uma imagem verdadeira dessas profissões e da realidade dos seus públicos. Por outro lado, os profissionais limitariam talvez as suas exigências cada vez maiores e mais onerosas em termos de técnicas de construção, encenação, exposição.
Mas será possível mudar esta vertente cultural do Estado Providência? Não para voltar a um estado antigo que se supõe melhor, mas trabalhando com cada sector, ao nível dos territórios e especialmente com as colectividades responsáveis pela vida destes territórios, para definir políticas culturais sustentáveis, distinguindo e associando as necessidades e a procura da população em sentido lato (culturas e patrimónios vivos), os profissionais e os meios da educação, da investigação, da criação e das práticas exigentes (alta cultura) e da indústria do turismo e dos lazeres (economia da cultura), para lhes fornecer respostas diferenciadas e viáveis.
Isso significaria passar de uma política da oferta dita cultural, na realidade missionária no seu vocabulário bem como nas suas práticas, em nome das crenças de um pequeno meio próximo dos círculos do poder, para uma política da procura, estreitamente ligada às práticas e à criatividade das pessoas, em todos os níveis da sociedade e de todas as idades.
Seria sem dúvida necessário, nessa hipótese, suprimir o ministério da cultura, ou então limitar a sua responsabilidade à gestão de algumas instituições nacionais que não poderiam caber a nenhuma colectividade de nível inferior, essencialmente instituições do património material e imaterial, como o Louvre, Versailles, a Comédie Française e a Ópera de Paris. Para tudo o resto, a regra seria a subsidiariedade e a participação activa e responsável dos públicos da cultura e dos meios interessados, que deveria assegurar a sustentabilidade das artes e do património em França. Tudo isto é herético e provocador, e o tempo que vivemos não é favorável a que se ponham em causa certezas que, aliás, não têm mais de sessenta anos e que repousam em afirmações de árbitros de gosto e especialistas autoproclamados que defendem os pontos de vista de uma minoria de privilegiados.