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ITINERÁRIO
De uma maneira geral trabalho sem custo, pelo menos oito horas por dia, e isso porque consegui uma fusão de trabalho em si com o jogo do prazer criativo. Essa devia ser, aliás, uma possibilidade oferecida a todas as pessoas, ou conquistada por todas as pessoas. (Entrevista de Fernando Dacosta, 1978, “D.N.”)
Nunca fui de fazer grandes exposições. Para mim, expor é secundário, embora todas as pessoas gostem de ser gostadas. O expor é uma situação de oferta, de comunicação com os outros, de amor… É mais estimulante a palavra que se recebe de alguém que não se conhece do que o discurso oficial. (Idem)
ANOS 60, PISO ZERO
Como dividir em períodos ou etapas a continuidade da pintura e a sua mudança constante e aparentemente súbita? Ou em tópicos de um longo e diverso itinerário. Dispôs-se de uma cronologia das obras e de um espaço muito específico, difícil. Aqui ir-se-á fazendo também referência a telas ausentes associadas às que se mostram, e propõe-se aos interessados a simultânea consulta dos dois volumes do Catálogo Raisonné, também acessíveis no espaço do Atelier-Museu Júlio Pomar.
O piso zero, dedicado aos primeiros anos 60, organizou-se em núcleos temáticos, cenas de trabalho, touros e cavalos, animais, paisagens, pontuado por algumas relevantes peças soltas e também pela irrupção desencontrada, mas em diálogo, de três obras de data posterior: um retrato de Teresa Marta, 1975, um Auto-retrato de 1972, numa composição dupla e reversível acompanhando o artista-palhaço com uma cara de macaco (optou-se por colocá-la por cima), e, já de passagem para o piso superior, a emblemática serigrafia Graça de Abril, de 1974.
As peças soltas, e são todas importantes, surgem isoladas, numa outra triangulação: O Carro das Mulas (colecção Igrejas Caeiro, exposto no Salão da Primavera de 1960), que divide a entrada com uma grande Cena de Praia, nocturna, de 1959-60 (coleção CAM-FCG), e nelas sobrevive uma fase negra e ibérica que quis associar Goya e Columbano. Note-se aqui a densidade matérica do óleo, e a luz que emana da cor sombria. Acrescentou-se depois Cegos de Madrid, de 1957-59, também do CAM, que vem de uma cena surpreendida na viagem por Madrid do ano anterior, e a comprová-lo está um desenho na black box feito da ocasião. Longe, o Casamento, de 1961, é (também) um grupo em movimento que se conjuga com uma ausente Procissão (1962, C.R. n.º 222) e com outros casos em que a imagem aparece e irrompe, frontal, e se detém sobre o espaço plano vertical e abstracto da tela (Metros e Corridas de Cavalos tratam a mesma «questão»). E algo escondida à entrada a Batalha d’après Uccello, de 1964, num formato 50x150cm que o pintor usará com frequência (Pomar irá relacionar com os seus Maios os guerreiros do mestre italiano preferido). Observem-se as caveiras dos cegos que se amparam com as lotarias pregadas à roupa e as duas caveiras em Casamento, também muito presentes numa das gravuras do mesmo assunto, que não foi editada; depois em Parade, 1966 (nº 343) – a caveira foi um motivo muitas vezes desenhado do natural no Musée de l’Homme. E é interessante que o Casamento tenha sido o mais caro quadro vendido em leilão, depois do Almoço do Trolha.
Nas paredes exteriores da black box, Tauromaquias e Corridas, que são as séries mais numerosas e conhecidas, comparecem de modo sintético: são as telas mais emblemáticas desta fase de interesse pela conjunção/explosão de forças e velocidades, com a gestualidade do óleo fluida, leve e vibrante.
Mais abundantes aqui são as cenas de trabalho do povo, as paisagens, em geral ignoradas, e os animais (de estimação) que também estão na terceira parede da caixa negra.
Os temas do trabalho vinham de 1959 (duas Fonte da Telha) e prosseguiram até 1963: pescadores e sargaceiros, a recolha das redes, a pisa do vinho, faltando aqui uma das Debulhas, de 1961, em que o pintor insistiu, mas à qual não se teve acesso. Dois Sargaços, de um conjunto de 6, com dois deles não fotografados nem localizados, e parece agora que o importante Cena de Praia (col. CAM) será também referente à apanha do sargaço, em opraias a norte.
Não será um intencional programa antropológico ou social, são espectáculos vistos, situações observadas em férias na praia (Albufeira, 1961, por três meses) ou no campo – férias de observação e de trabalho quase sempre –, e é ainda a interessada relação com o povo, que também continuava muito presente na gravura. Pisa I, de 1961, é uma de três, até 63, certamente vistas em Aregos, Resende, Viseu, onde muito desenhou, e esta pertenceu ao amigo e cúmplice Manuel Torres, gestor da Cooperativa Gravura e sempre proprietário do Almoço do Trolha, que o recebia na sua quinta e na moradia do Restelo, para a qual Pomar fez decorações exteriores. Irrompem no espaço vago, aberto, indefinido do «fundo» seis rostos frontais que lembram Goya – recorde-se Mogiganga (1962, Col. Manuel de Brito/111), ausente da exposição, que é variação sobre uma gravura de Goya, pequena cena burlesca de tourada, passada do preto e branco à explosão de vermelhos. Há outras situações de movimentos colectivos em quadros singulares: além de Casamento e Procissão, importaria ver Queimar o Judas, de 63 (nº 250) – e as cenas de touros são também trabalhos e espectáculos populares. Fazem falta as vistas da gente de Marrocos (Rua Moura, Berberes e Canto Berbere, também de 63), três quadros da viagem com Alice Jorge em 62. Já em França, houve Parade (desfile de máscaras ou caveiras) e Foire du Trône (feira popular, fête foraine) de 66, com várias variantes destruídas (ver Relatórios de Bolseiro de 1966 e Void* vol. III).
O núcleo das paisagens aparecerá como uma surpresa – nunca constituíram séries, mas foram existindo ocultas entre outros interesses. Existiram as primeiras já em 1952-53 (Azenhas do Mar, Ericeira), coincidindo em discretos formatos intimistas com obras militantes e encomendas decorativas desses anos mais difíceis. A paisagem é para Pomar um género raro; tentado na segunda metade da mesma década de 50, com variável resultado, Lisboa (a Avenida, o Coliseu) vista a partir do 4º andar da Rua da Alegria. Existe de 1958 um interessante e amplo Cais da Ribeira (Col. Mário Soares).
Aqui abriu-se a secção com uma das duas vistas de Barcos no mar de Albufeira, 1962, certamente nunca expostas – a que deveria associar-se uma Figueira «abstracta», da colecção DN/Global Media, não emprestado (vejam-se dois desenhos vindos de todo um caderno de «estudos», na black box) – e acompanharam as cenas de pescadores. Seria um possível núcleo referente a Albufeira (e surge a ideia de toda uma possível exposição futura de quadros de viagem, de lugares visitados e de férias, de praias, paisagens e motivos locais, que passaria pelas Astúrias, 57-59, até aos Mascarados de Pirenópolis e aos Índios da Amazónia, de 1986-90, sempre séries surgidas de convites e/ou de oportunidades de veraneio activo).
Continuando pelas paisagens mostradas, temos a muito movimentada Paisagem de Lisboa de 1961 (col. Jorge de Brito), e logo a pequena Ponte D. Luiz, Porto, 1962 (antiga colecção Alice Jorge), que teve de isolar-se no piso superior. As pontes, sempre nocturnas, foram várias e uma de grande dimensão, perdida, foi a Pittsburg, concurso então mais famoso que Veneza; outra estará em Luanda, já de 1965 (não fotografada), retomando o tema numa encomenda de Manuel Vinhas: «Ficou pronta e entregue – afinal não é para o Porto, mas para Luanda, para o Banco Comercial de Angola. Deu jeito (para pagar as férias!) E tive prazer a fazê-la; ficou uma coisa cinzenta, muito pouco definida; fui saltando de fotografia para fotografia, e fi-la relativamente depressa» (carta de Setembro 1965). É simultânea dos três quadros dos Beatles («penso continuar a série, tenho impressão que vai dar pano para mangas» - idem - mas foram destruídos).
Lisboa está também presente em Visto da Janela, 1966, que poderia ser entendida como uma «pintura abstracta», que não é – talvez memória da casa de infância às Janelas Verdes e onde, acima à direita, se vislumbra o Tejo e um barco (certamente inédita até 2004, col. Ilidio Pinho, vinda da antiga col. Augusto Abreu/Burmester). Por fim, Saudades de Lisboa, já de 1968, inédito também até 2004 («Autobiografia», Sintra Museu Berardo) com título atribuído por Manuel Vinhas, que encomendou, e que veio de Paris, paisagem imaginada com um rio amarelo. E vejam-se na black box, quando da chegada a Paris, pequenos desenhos da Pont des Arts, junto a apontamentos do Metro e às praias da Caparica, paisagem humana, do ano da partida.
De 1976, conhece-se Belle-Isle-en-Mer (col. FJP/AMJP), que é obra charneira, vista do lugar (em férias) e corpos em metamorfose, fim de ciclo e começo de outro.
Outro núcleo inesperado, os animais, que estavam presentes desde o início da carreira. Dois Chimpanzé, 1962 em grande formato, e os pequenos Mocho, 1960 (faltou a Coruja, col. DN/ Global Media) e Abutre, de Paris 1963 (haverá outros Mochos em 1972, diversões muito a divergir dos Banhos d’après Ingres e dos Retratos). Os símios, com Mono Sábio/Singerie, foram mostrados nas exposições das Galerias DN e Lacloche («Tauromachies»), eram obras maiores, e os dois expostos são retratos de corpo inteiro que nos olham de frente, únicos personagens isolados na pintura desses anos de intensa e vibrante produção. O terceiro referido veio de uma tabuleta de comércio vista em Lisboa (?) ou só fotografada. Há macacos desde o princípio, no livro Bichos, Bichinhos e Bicharocos, com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1948, e logo se multiplicaram os «Animais Sábios» em cerâmicas e pequenas esculturas de imediato sucesso (exposições de 1950 e 1951), quase todas desaparecidas. Da chegada a Paris datam cadernos de desenhos de observação, com macacos e inúmeros outros bichos (apontados na black box), e sempre lhes está associado o humor, que com a expressão erótica é uma das linhas condutoras (linhas mestras?) da produção do pintor. Houve também pequenas Porquinhas/Truies amáveis em 66, intervalos de trabalho livre, oferecidas e agora inacessíveis. Viriam muito mais tarde os ciclos de bichos antropomórficos, os macacos humanizados e trocistas e os porcos ligados às aventuras de Ulisses e Circe, que foram uma vez arrumados por Marcelin Pleynet entre os «Animais de Companhia» (2004, «Autobiografia»). O largo bestiário desenhado liga o gosto da observação, o exercício da mão e do olhar, e o humor.
Continue-se no Piso 0 com a presença de dois D. Quixote (de entre os seis do ciclo que surgiu por extensão das ilustrações e das gravuras, 1960-63), um deles inédito e o outro, com os Carneiros, é uma grande pintura dinâmica e explosiva onde o cavaleiro avança sobre o espectador, como avançará D. Fuas, noutro programa posterior (1988-89, ver 2022 catálogo Pintura de Histórias). Associa-se-lhes a escultura Guerreiro, mas que deles ficou distanciada. Ao lado estão algumas esculturas-assemblagens de 1967, outros volumes, esses «abstractos», que agregam objectos encontrados, interrompem o curso da obra pintada e terão consequências indirectas nos Banhos Turcos e nos Retratos e depois no ciclo das colagens de telas recortadas. A escultura em ferro associada ao Quixote, Guerreiro (há, em cima, um Torso forjado, pequena peça singular), é uma muito diferente prática escultórica depois dos retratos modelados de amigos, nos anos 40/50, e da cerâmica figurativa que fez desde início. Os ferros soldados como inovação vêm dos anos 30 (Picasso e Gonzalez) e permitem o desenho no espaço; com David Smith, Chillida, Mark di Suvero reanimam-se nos anos 50 no campo da abstracção, enquanto a «figuração expressiva ou existencial» ou biomórfica (1986, Margot Rowell) tem também largo curso paralelo em escultura. César é uma referência entre as duas vias. Mais do que desenho, é em Pomar pintura no espaço, a preto e branco, precedendo a assemblagem.
Ainda os Quixote: a ilustração foi desde o início uma actividade constante por cumplicidades literárias e encomenda editorial, que equilibrava o escasso mercado – mas os desenhos para Pantagruel (65-66) foram uma iniciativa sua, a única entre os alheios convites. Mais tarde, desde 1976, os desafios de Joaquim Vital associam-se a novas séries de pinturas: Tigres, o Corvo de Poe, A Caça ao Snak de Lewis Carroll, as Mães Índias de Pedro Vaz de Caminha, Carta do Achamento do Brasil. «A bem dizer, eu não ilustro um texto: o texto sugere-me desenhos que o podem acompanhar e estes procuro fazê-los, para meu prazer, o melhor que posso e sei» (1980, Helena V. Silva). A ilustração de encomenda, cumprida em geral sem obrigação descritiva, é ocasião de «experiências», que dão lugar a novas obras e direcções – a relação com a literatura é um continente de que se fez a revisão em 2022 e 23 (Os Livros de Júlio Pomar e Pintura de Histórias, exposições e catálogos do Atelier-Museu).
Na caixa negra, muito resumidamente, está o desenho de observação – apontamentos, estudos – que conservou nos pequenos cadernos de bolso e de viagem e de férias (Albufeira, Marrocos, Caparica, etc.) e em especial da chegada a Paris (Musée de l’Homme, Jardin des Plantes e Ménagerie, o zoo, Jardin d’Acclimatation, Pont des Arts) e do Louvre, anotações de imagens e textos de reflexão, citações. Mas é disciplina autónoma nas Courses, nos Catch de 65-66, no referido Pantagruel, e nos Retratos a Lápis (1987, ed. INCM), que vão de 1970 a 77. Toda uma parede foi dedicada aos desenhos eróticos: mostram-se Étreintes de 60 levadas à II Exposição Gulbenkian, Nus de 61 (exposição de grupo «O Modelo», na Galeria DN) – os nus femininos vêm de 1947, da prisão (a Onda), e motivaram logo rejeições e defesas. Há Étreintes e Tauromaquias juntas num mesmo caderno de 63. É uma linha de trabalho e de vida que acompanha toda a carreira. Corpos. Femininos, cúmplices, mas os sexos são ambíguos em dois desenhos passados a litografia da série Catch (foi a figura ser masculina que bloqueou a sua versão em pintura?) Aí se incluíram também as ilustrações para A Selva, numa irrupção frontal da cor, figuras fragmentadas, narrativas. E encerra-se o piso, ao lado, com uma selecção variada de gravuras, onde se verá que a gestualidade da pintura se liga à materialidade do desenho gravado com os ácidos, em especial nas Tauromaquias.
ANOS 60/70, PISO 1
No piso superior ficaram, num topo da galeria, um Rugby e um Maio, emblemáticos do tempo de mudança. As duas séries foram antes mostradas no Atelier-Museu (2018 e 2019). A seguir, mas anterior no tempo, vem toda uma abordagem à abstracção, do Metro aos Estudos para tapeçarias de 1967, dos quais se falou antes.
É significativo ver a pontuação da mudança da obra na simultaneidade das direcções, na Mêlée (Rugby) de 68, no retrato Manuel Vinhas e no primeiro Banho Turco, todos da mesma data (e em baixo ficou Saudades de Lisboa). E logo Mesa dos Jogos, 69-70 (Col. CAM), de secções amovíveis, passando à Superfície Vermelha de 72 (de uma série de sete em dois formatos), um corpo em recorte de arabesco sobre o plano liso em cores unidas, que está já na sequência dos primeiros retratos (Manuela e Viana são de 1970), e é paralelo em data a Tétis (Col. Rui Victorino). Todo este núcleo que vai das odaliscas de Ingres aos retratos íntimos é uma marcação conjunta de dois conjuntos temáticos onde vai longe a exibição do erotismo. A influência de Matisse juntara-se ao agrado pela Pop, e a relação com a estética do cartaz foi evidente em Viana, Almada, etc. – mas nunca se incluíram estas obras, vá-se lá saber porquê (é cegueira dos comissários e talvez vontade de exclusão) nas abordagens nacionais à Arte Pop, de 1997, «The Pop’60’s - Travessia Transatlântica», de Marco Livingstone com Alexandre Melo, no CCB, e de «Pós-pop. Fora do lugar comum - desvios da Pop em Portugal e Inglaterra, 1965-1975», de Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas, na Gulbenkian em 2018 (ver «Anos Pop» em 2023, A. Pomar).
Viu-se que o retrato fora ensaiado com êxito em 67-68, dois de encomenda e aparato (José Ribeiro da Cunha, então já falecido, e Manuel Vinhas, aqui exposto e homenagem ao amigo e coleccionador) e outro em liberdade (a amiga Fátima, Lopes). A eles regressa pouco depois, longa e diversamente (Manuela, 1968-70; Eduardo Viana, 1970; Almada Negreiros, 1972, Fernando Pessoa e Camões, 1973; outras e outros amigos; os auto-retratos), já relacionados com os Banhos Turcos e já em paralelo em pintura e desenho. «A semelhança do retrato é para mim fundamental. (…) A semelhança funciona como a marca. É como o nome escrito. O resto vem quase involuntariamente e tem por função ‘accrocher’ (prender) a personagem à tela» (1991, H.V. Silva).
Aqui a propósito de Manuel Vinhas, lembre-se também Jorge de Brito, não retratado. Um industrial e proprietário – Pomar era convidado para as tentas no Zambujal –, o segundo bancário e aventureiro das finanças, ambos amigos pessoais e coleccionadores desde os anos 50, também de vários modos mecenas, até às mudanças de 75. Com parte substancial da colecção Jorge Brito se fez o início do CAM e várias obras da exposição são, ou vieram, das colecções de ambos.
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REVOLUÇÕES
Do corpo a corpo do espectador com a obra se recria esta, e aquele, e o mundo em que ambos se situam. Relatório de Bolseiro Maio 1966
Revoluções foram duas, 68 e 74/75. Mais as que as acompanharam e continuaram, em especial, no que importa também à obra de Júlio Pomar, a anti-psiquiatria e a revolução sexual. Outras alterações, mais ou menos revolucionárias, aconteceram ao pintor - e faz-se já uma primeira síntese que a seguir se desdobrará. Adiante percorre-se a fortuna crítica e preferem-se as declarações da época às interpretações mais tardias
Debulha, 1961, 50x61cm, nº 208. Col. particular (não disponibilizado para a exp.)
NOTA 1: exposto na revisão comemorativa de Serralves, “Pré/Pós - Declinações visuais do 25 de Abril”.
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Paisagem de Lisboa, 1961, 73x116cm (CR I nº 217) Col. Jorge de Brito
PALAVRAS DITAS
em entrevistas de Maria Lamas, Adriano de Carvalho, Joaquim Furtado, Maria Antónia Palla, Manuel de Lima e um anónimo
Um quadro é menos uma maçã ou um touro, do que tudo que em nós permanentemente vive. Amor, raiva, esperança, desespero. Toda a arte é uma confissão pública e secreta. (Maria Lamas 1964, “Diário de Lisboa” - a seguir D.L.)
O artista que «segue» crê estar de acordo com o seu tempo. Ele não demora a fazer pela sua mão o que se fazia anteontem em Paris, ontem em New York. Ele não percebe porque os conhecedores – os que amam, vivem – se não detêm na sua mercadoria (em saldo!), julga-se vítima, sem sorte. Não querendo (ou não podendo?) correr o risco de uma posição solitária, acaba por definhar sozinho no meio do rebanho a que se esforçou por pertencer. (Idem)
Não me interessam escolas, interessam-me personalidades, as quais, evidentemente, não acontecem em série. (Idem)
Quando é que «verdade» deixará de ter que ver com «parecido»? (Idem)
Se em Goya intervém o humor negro ou solar, para Velazquez a majestade significa o mesmo que uma maçã para Cézanne. A sua indiferença (mais que desrespeito, indiferença) perante os poderes estabelecidos (que ele, como homem da corte, respeita naturalmente) faz dele o primeiro dos modernos. (Este aparecimento aqui da palavra «moderno» - bem gasta, coitadinha! – não é do meu gosto. Passe agora como solução de recurso, se não iríamos dar a outra história - e bem larga!) (Idem)
É preciso ultrapassar a oposição absurda entre passado e presente. Se, ou inconscientemente ou pela força do hábito, nos escudamos nela, pouco vimos a entender do homem; e nada, mas mesmo nada de Arte. (Idem)
O acaso juntou na mesma página do meu caderno de bolso uma frase de Ovídio e outra de Picasso. Ovídio – «é preciso temperar o prazer pelo domínio de si mesmo». Picasso - «a pintura é mais forte do que eu, obriga-me a fazer o que ela quer». Entre uma e outra, de uma parte a outra, vai toda a maravilha (e toda a danação também!) da pintura, da poesia, porque não da vida humana? E sobre o acaso - não será ele o mais exigente dos nossos mestres? (Idem)
«Realista»? É impossível pôr apenas um adjectivo. Além disso, detesto as fórmulas, as tentativas de concisão que, as mais das vezes, são o empobrecimento das próprias coisas (Anónimo 1966, “Flama”)
Ao contrário do que acontece com a poesia (pode ser-se poeta aos 20 anos), a pintura é uma obra de maturidade. (Adriano de Carvalho 1966, “Século Ilustrado”, a seguir S.I.)
O universal objectiva-se através de referências muito particulares, que resultam da experiência do indivíduo. O geral não é senão uma experiência pessoal, exacerbada. Posta a nu. Não há um universal abstracto, aquém. (Joaquim Furtado 1973, D.L.)
O importante não é o quadro representar um cavalo ou uma paisagem, mas o que nele está da luta do indivíduo que o fez para viver ou sobreviver, na medida em que nele estão expressas as suas relações consigo próprio e com os outros. É uma tomada de posição perante o real. (Idem)
Ser livre é uma coisa que custa muito aprender, mas depois não se quer outra coisa. (Maria Antónia Palla, 1973 S.I.)
Ser pintor é a minha situação particular de ser vivo. É a minha maneira de me exprimir como ser. (Idem)
Quando se gosta de uma coisa toma-se todas as liberdades com ela. (Idem)
A liberdade finda quando as relações passam de sujeito-sujeito a sujeito-objecto ou sujeito-sujeitado. (Idem)
Posso ter tomado aparentes liberdades, tão grandes que a figura parece desaparecer. Mas ela está sempre lá. Porquê? Não sei…. É uma maneira de ser. Gosto muito de carne, de coisas bem vivas, palpáveis. É-me totalmente impossível pensar num quadro com uma formulação 100 por cento abstracta (se é que isso tem algum sentido…). Com isto, não nego o mérito ou a influência que a pintura abstracta, como a de Mondrian, possa ter tido sobre mim. (Idem)
A pintura em mim nasce de um corpo-a-corpo diário com o ofício. Não há dissociação entre projecto e a obra: nascem ligados. Preciso de trabalhar todos os dias. [Mas] só posso pintar em estado de disponibilidade total. A pintura não é um refúgio contra, mas uma maneira de estar. (Idem)
Quando pinto, nunca faço em termos de “exposição”, coisa que me acontece muito pouco, também. As coisas, em mim, passavam-se assim: interessava-me pelo que estava a fazer, vivia-o intensamente. Isto, porque as coisas que faço me interessam enquanto estou a fazer, enquanto as posso tocar, transformar. (Idem)
Fazer arte é tão integral, tão visceral como rir ou fazer amor. ... mas aqui não se exclui a ideia de pensar no assunto. (Manuel de Lima 1974, S.I.)
O que Cézanne disse do acto de fazer pintura: uma maneira de pensar. (Idem)
O pintor para mim é um trabalhador. Com a vantagem ou a agravante de que para ele não há diferença entre trabalho, obrigação, lazer, jogo, prazer. (Idem)
O 25 de Abril foi na vida portuguesa um acto criador, insólito na aclimatação quotidiana, como um acto poético. Dizia Lautréamont que a poesia deve ser feita por todos. Ousemos corrigir. A poesia é feita por todos, e na consciência disso é o jogo a jogar e a chamar-se Revolução! (Idem)
Posted at 23:37 in 2024, Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
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Antes de 60, até 63
Deve notar-se a abrir a apresentação de “Revoluções 1960-1975” que não é a mudança de década que estabelece fronteiras dentro da pintura de Júlio Pomar. A saída do neo-realismo manifestou-se em quadros singulares e incompreendidos como O Baile e Circo, duas festas urbanas nitidamente tristes (1955). “J. P.... que converteu o Baile num verdadeiro ‘sabatt’ observa as projecções das ruas de Lisboa [Rua de Lisboa, Catálogo Raisonné (CR) nº 121] e sabe ainda arrancar à vida humana, em traços fortes, todos os seus reflexos.” Artur Portela Filho (P. F.), III Exposição Colectiva de Artistas Portugueses, Galeria Pórtico. Diário de Notícias (DN), ?-11-1954.
** Circo, 1º salão dos Artistas de Hoje, SNBA 1956.
Tal acontecia logo depois de um período mais intensamente militante, de 1951 a 54, de que Marcha e os Estudos para o Ciclo ‘Arroz’ são expressão mais forte, a par de encomendas decorativas em colaboração com os arquitectos Conceição Silva ou Victor Palla e Bento de Almeida (vitrais da Igreja da Pontinha, na Amadora, painéis para o Restaurante Vera Cruz), e também a par de pequenas paisagens intimistas (Azenhas do Mar, Ericeira): são três linhas de trabalho simultâneas e diversas, quando os quadros ainda não se vendiam.
O neo-realismo não tivera nenhum resultado prático, disse Pomar em 1955. «De resto, não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função, refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público» (entrevista DN 22-9-55). Acabavam por esse tempo as Exposições Gerais, já trocadas por novas colectivas na Galeria Pórtico, em 1954, dinamizada por uma nova geração, e na SNBA, o Salão dos Artistas de Hoje em 1956, com a Fundação Gulbenkian a gerar novas oportunidades e expectativas. Era um tempo de mudança, em ruptura com a herança de 1945.
Houve para Pomar, entretanto, hesitações paisagísticas: Lisboa vista do 4º andar da Rua da Alegria, para onde se mudara com Alice Jorge, mas também revisitações mais ou menos realistas “modernizadas” - breve série Astúrias, 1957-59, da viagem de carro até Paris, por Altamira, com Manuel Torres; e pescadores da Fonte da Telha, 1959, a praia, sempre. Mas logo esses últimos anos da década foram marcados por meia dúzia de pinturas de grande ambição e sucesso, que surpreendiam em mostras colectivas, para as quais o próprio artista e alguma crítica apontavam a procura de um desígnio ibérico, conjugar Goya e Columbano, uma fase “negra”.
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José-Augusto França escrevera em 1955: “O grupo neo-realista (...) com tais composições, dum realismo sobretudo de tipo magazinesco, parece estar a lograr as sensíveis e honestas promessas que há dez anos fizera” (Exposição de Pintura Moderna Portuguesa, Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, organizada por Rui Mário Gonçalves, ver “Comércio do Porto” 12-04-55; in Da Pintura Portuguesa, Ática 1960, p. 169 - esta é uma importante antologia de artigos nunca reeditada).
A apreciação mudou em 1958: “O quadro de Júlio Pomar [Lota], curiosamente absorvido por valores picturais abstractos, desejando uma genealogia em que Goya e Columbano se encontram de má vontade, involuntariamente se aproxima dum Lanskoy, cuja arte, suponho, o pintor ignora e nisso se realiza como obra de muito interesse e de notável qualidade. O «moderno”, insólito em Pomar, e consciente em Daciano...” (sobre o 1º Salão de Arte Moderna, “Colóquio” nº 1, janeiro 1959; op. cit. p. 206)
Segundo Artur Portela Filho, então crítico activo, “Pomar surge truculento, maciço, crispado. As suas duas largas telas <ou só a Lota?>, de temática populista e atmosfera poética, são uma prova esmagadora que estamos perante um dos artistas mais profundamente portugueses. (...) Pomar tem um forte sentido telúrico e o dramatismo dos seus climaas não exclui, antes acentua, contrapontiza, sublinha, uma poesia cheia de vibração e de intensidade. Pomar estilhaça os limites de uma estética semi-oficializada com galo de Barcelos, Sol e Tejo. Cria uma humanidade onde há um a angústia riscada de gritos e risadas e de uma troça orgulhosa e livre.” Diário de Lisboa (DL) 18-10-58
J. A. França em 1959: «Pomar vai firmemente e com extrema qualidade pictórica no caminho que o víramos no Salão Moderno da SNBA, aceitando já em perfeita consciência valores abstractizantes que o próprio ritmo do pintar lhe impõe. O encontro de Goya e de Columbano do seu ‘projecto’ é agora absorvido, reelaborado interiormente com uma ‘fugue' que a pintura portuguesa não iguala» (“50 Artistas Independentes”, “Comércio do Porto”, 23-06-59; op. cit., p. 211 - expunha Cegos de Madrid e Cena no Cais, este levado à 2ª Exposição de Pintura Moderna, promovida pelo Grupo Desportivo e Cultural da “Cuca”, em Luanda, com catálogo prefaciado por Manuel Vinhas).
Portela Filho, sobre Cegos de Madrid: “J.P. ainda goyesco no gesto largo, validamente retórico, trágico, expressionista, atinge uma força que não se encontra em qualquer outro artista na pintura portuguesa. Dir-se-á que ele não é um autêntico pintor português e que chega a ser, pela qualidade e ‘quantidade’ de pintura, pela linguagem, pelo tema, um pintor espanhol”, DL 15-6-1959.
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A anterior individual de pintura datava de 1951 e a seguinte é só de 1962 - um longo hiato de visibidade, não de trabalho, mas na época os Salões apresentavam as novas obras periodicamente (eram uma oportunidade que depois se combateu e extinguiu, perdendo-se o largo público interessado). Datam de 1957 a 1960, e estabelecem um dos patamares mais elevados na longa carreira, os quadros Maria da Fonte, Lota, o referido Cena no Cais (depois oferecido por Champalimaud para o previsto Museu de Arte Moderna de Luanda, e lá ficou, invisível, ao que se sabe) e também Cegos de Madrid?, Cena na Praia, O Carro das Mulas (estes três últimos agora expostos), mais o grande Estaleiro que respondeu a encomenda para o paquete Infante D. Henrique (agora no Museu da Marinha - “entre os objectos mais belos desta minha terra, do Pintor, da Arte Portuguesa: uma reivindicação de grandeza, um magnífico acto de resistência, pois a verdadeira Beleza é incompatível com a opressão” - escreveu Ernesto de Sousa, na monografia citada).
Coexistem com as 30 ilustrações pintadas a preto e branco, seis gravuras, quatro esculturas de ferros soldados (veja-se Guerreiro) e seis pinturas relativas a Dom Quixote, então traduzido imaginativamente por Aquilino Ribeiro, ed. Bertrand 1960 (D. Quixote e os Carneiros e outro Quixote expatriado e inédito expõem-se agora). É um primeiro capítulo literário da sua pintura de imaginação que mereceu logo pequena exposição própria na Galeria Gravura naquele ano - regressará a Cervantes em 2005 para ilustrar uma nova edição, do “Expresso”. Surgem igualmente os primeiros Touros em gravura e no quadro de 1960, Touro, oferecido a Alves Redol, como peças do vasto Bestiário e já “Tauromaquias”.
Esses anos contaram com as duas Exposições Gulbenkian de 1957 (Maria da Fonte) e 1961 (Pega, CR nº 188; Cavaleiro e Touro, nº 190; D. Quixote e os Moinhos, nº 197; Debulha, nº 205; a escultura em ferro D. Quixote II, nº 177), onde obteve respectivamente Prémios de Gravura e de Pintura, sempre ex-aequo. Seguem-se as duas individuais na Galeria DN) em 1962 e 63, já como continuidade e reconhecida maturidade, com forte notoriedade pública e crescente tensão por parte da crítica instituída. Prolongam e diversificam os exercícios de observação de figuras e de situações que estão praticava com um dinamismo gestual a conviver com a abstractização dos motivos: cenas de trabalho, espectáculos populares e públicos (as “Tauromaquias”, e também Casamento e Procissão), paisagens, sargaceiros, os grupos de Marrocos em 63, pintura de realidades vistas. Pintura de observação e também de viagem.
Artur Portela sobre Maria da Fonte: “Pomar é uma explosão de potencialidades. Artista total, personalidade variada, com um conhecimento absoluto e espantoso do seu mister, pintor de convulsões expressionistas, desenhador admirável, com provas de gravura invulgares, é uma das maiores afirmações deste certame. (...) é uma larga, uma imensa, uma movimentada e atormentada tela, povoada por uma humanidade goyesca de tons sombrios e surdos que não lhe apagam a vida, que pulsa, palpita e ascende aqui à pureza do símbolo”. DL 11-12-57
Evolui procurando sugerir o movimento das figuras com pinceladas rápidas os temas adaptam-se a uma figuração fragmentária, descontínua e repetitiva RMG, BB
A forte notoriedade mediática circula nos diários da época, atentos e influentes:
1962, exposição na Galeria DN: “J. P. lírico e telúrico, dramático e irónico”, por Manuela de Azevedo, não assinado, DN 20-5-62: “Onde parece exprimir-se o lirismo gritante de um Kandinsky. (...) Uma luta de primazias entre o abstracto, o figurativo e, até, o impressionismo. (...) Desta pequena galeria - Pomar é preguiçoso, não quer banalizar-se ou é lento na fecundação artística? - o jovem e consagrado pintor pode afirmar que, através de uma liberdade quase sem limites... se tiram sempre efeitos novos e imprevistos.
1963, exposição na Gal. DN, crítica de Fernando Rau (R.): "Movimento e cor na pintura de J.P. em vésperas de partida “, DL 10-10-63 : “o artista está em plena forma criadora e transmite-nos momentos de verdadeiro prazer a contemplação da sua pintura vigorosa nas cores, no movimento e na força anímica que irradiam todos os seus quadros.”
Ou “Sangue arena na expressão fremente da arte de Pomar”, Manuela de Azevedo, DN 10-10-63.
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As pinturas tinham deixado de ser neo-realistas, mas eram de qualquer modo documentárias, mesmo se especialmente se equacionavam, e o artista sublinhava, as questões formais. Trocavam pela densidade e teatralidade pictural a reconhecibilidade descritiva da mensagem; o “intenso dramatismo” era referido, a “inspiração espanhola” (Adriano de Gusmão, 1957). Eram motivos de espectáculos vistos, cenas observadas, registos circunstanciais e ao mesmo tempo questionamentos formais. Pintura descritiva, talvez mesmo pintura de reportagem, mesmo se o peso do formalismo tardo-moderno reinante obrigava a negá-lo: Interessam-lhe, diz, “todos os espectáculos em que os sentidos se completam, em que a imagem é múltipla: multidões, praias de pescadores, fainas de campo, mercados, as grandes cidades e, naturalmente as corridas de touros. O que se agita, move, transforma.” (entrevista de Maria Lamas em Paris, DL 5-3-64, ). “A pintura (não) me interessa como arte de reportagem” dirá já por ocasião dos Tigres (1980), em obediência ainda com o “modernismo” que desvalorizava o assunto. O que mudaria com os ciclos literários tardios.
O abstraccionismo ia-se tomando como uma fatalidade universal, imposição da crítica dominante, mas Mário Dionísio e Nikias Skapinakis valorizavam possíveis diálogos com a figuração (na época Pomar não escreve, pinta): “Nos dias de hoje, abstraccionismo e tendência realista buscam-se, aparentam-se, interpenetram-se, elaboram demorada mas manifestamente a sua síntese” (M.D., Conflito e unidade da arte contemporânea, conferência integrada na 1ª Exposição Gulbenkian, 1957, ed. Casa da Achada 2015, p. 50). “Júlio Pomar superou a crise do neo-realismo (...) Define essa superação, que me parece total no caso das gravuras, uma conciliação entre a necessidade ideológica do neo-realismo e o entendimento de uma lição formal abstractizante. O que portanto se transfere do neo-realismo, paralisada a sua tentativa de aprofundamento do real, é a necessidade de encontrar uma figuração que de novo, e actualizadamente, reintegre o real no quadro” (N.S., Modernos Figurativos Portugueses, conferência de 29-01-1959 na SNBA, ed. Separata de “Arquitectura”, 1959, p. 10)
Figuração-abstracção, figuração-desfiguração, são tópicos críticos do tempo com que o pintor se confronta: “Claro que é o movimento que fundamentalmente me interessa. Enquanto que nas Tauromaquias o problema era o de uma síntese de movimentos contrários, agora [nas Corridas] trata-se de um movimento de trajectória única” (carta de junho de 64*).
Ernesto de Sousa, na primeira monografia (Júlio Pomar, ed Artis, 1960, p. 11) escreve que “um encontro se tornava necessário com as técnicas da abstracção: para destruir os quadros materiais do espectáculo”. Fala de “equilibrio instável” (...) do “encontro de um espaço dramático, na sua raiz tradicional ibérica, com uma temática.” “Alguns dos quadros das Tauromaquia atingem um clímax de riqueza dramática, comparável aos exemplos mais altos da pintura ibérica”. Abria o ensaio com uma declaração forte: “Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva e Amadeu Sousa Cardoso são três nomes cardinais para a compreensão da pintura portuguesa dos nossos dias”.
Alguma recepção crítica que viria a ser dominante, dominadora, e sempre formalista, então facultada nas revistas, era ditada pelas questões da conflitualidade entre figuração «naturalista» e abstraccionismo, que persistiram em Portugal até tarde, ora se valorizando as vias da possível síntese com a abstração, ora se supondo fatalmente necessária a desaparição da figura e do referente, do assunto. Na lógica de uma pintura «pura», defendida como colectivo estilo moderno, contrária às novas figurações que se procuravam, saudavam-se o informalismo gestual e os valores abstractos, mas supunha-se dever suceder-lhes o abandono das referências ao mundo visível. “Evolução gestual e abstractrizante”, “uma esgrima de pincelada habilíssima” (J.A. França 1984).
Rui Mário Gonçalves, 1962: “numa linguagem que, não sendo a dum pintor abstracto, nada deve, porém, a essa imagem antiga da realidade, que o academismo pretende manter.” “um período de libertação dos elementos da sua linguagem: o grafismo e a cor”. “o apoio na realidade visível mantém-se”. “Toda a pintura é fundamentalmente uma especulação sobre o espaço” (“Jornal de Letras e Artes”, 06-06-1962)
Nelson di Maggio 1965: “adverte-se uma concessão excessiva ao bom gosto burguês que debilitam a rotundidade e a força da sua mensagem. De facto, a sua pintura tem enveredado pelo aspecto mundano e agradável”. “Flama”, 25-02-1965
Idem 1966: “Pomar passou a «actualizar a sua linguagem a partir das conquistas dos vanduardistas abstractos, mas sem se atrever a encarar metódicamente o problema da renovacão estrutural». como escreveu Rui Mário Goncalves”. “Em definitivo o que lhe interessa é reconstituir uma realidade passada, contar uma anedota, mais ou menos disfarçada pela dinâmica irradiacão da composição. O autêntico criador de formas está ausente. E o que se evidencia ostensivamente é o pintor sensível, agradável e superficial, para contentar o gosto de uma burguesia cómoda e satisfeita. Como Boldini no século passado. Todas as telas estão muito bem resolvidas e calculadas. Quem poderia ficar indiferente? Quem poderia deixar de sentir um santimento fruitivo?” (“Alla maniera di Boldini”, “Jornal de Letras e Artes” 16-02-1966)
Fernando Pernes 1966: “figurativismo desenvolto”; “uma estética do compromisso entre a aceitação do modelo convulsionado e a acção sobre ele instaurável”; “estilizações de uma realidade apriorística mas, por necessário ajuste, tomada nos seus aspectos mais movimentados”; “Pomar veio a alhear-se do existente dramático para desembocar numa temática mundana e espectacular, sempre habilmente transposta em telas resolvidas com acerto e de menor ambição” “Colóquio” nº 38, 1966; in Dizer a Imagem, ed Serralves 2015, p. 45-46.
Haveria por consequência «uma hesitação estética» e «uma íntima contradição expressiva», um debate não resolvido «entre um compromisso figurativo e uma vontade de expressão directa», argumentos muito repetidos que em geral se prolongavam no reconhecimento ambíguo de uma «espantosa habilidade oficinal». argumentos que se prolongavam no tema do virtuosismo, usado como arma de arremesso. O mercado privado crescia no início dos anos 60 e a crítica encartada associava o sucesso galerístico à satisfação do gosto burguês.
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Os "Anos 60" começam antes - ou não é o começo da década que marca a diferença na sequência da obra de Júlio Pomar. Com o fim da referência neo-realista, em 1955 (O Baile, Catatuas, Rua de Lisboa, Circo) , surgiam novos propósitos figurativos, que conduzem a obras maiores como Maria da Fonte de 1957, Lota 1958, Cegos de Madrid 1957-59 - e também às ilustrações para 'O Barão' de Branquinho da Fonseca e 'D. Quixote' de Cervantes. Destacam-se também o Estaleiro (grande encomenda para o paquete Infante D. Henrique, 1960) e as pinturas sobre figuras de D. Quixote: Dulcineia, O Carro dos Cómicos, Manteação de Sancho, 1960. O encontro com Goya em Madrid marca, com o interesse pelo primeiro Columbano, um projecto de convergência ibérica, em "pinturas negras" que vão até O Carro dos Cómicos, 1960. A mudança é contemporânea do fim das Exposições Gerais e do 1º Salão dos Artistas de Hoje, em 1956, da 1ª Exposição Gulbenkian, 1957, do início dos Salões de Arte Moderna da SNBA em 1958, dos "50 Artistas Independentes em 1959".
1960-1975 Revoluções - Atelier-Museu Júlio Pomar
Comissários: Alexandre Pomar e Óscar Faria
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Tags: Júlio Pomar
Quatro páginas para apresentar a exposição a inaugurar dia 10, 4ª feira. A década de 60 e os primeiros anos 70 foram marcados pela passagem para Paris e por novos temas de pintura, e pela transformação da sua pintura a partir das séries RUGBY e MAIO'68, a que se seguiram o ciclo do BANHO TURCO e outras variações sobre Ingres, e a série seguinte dos RETRATOS.
Maio de 68 e Abril de 74 marcaram a produção de Júlio Pomar, já depois da grande destruição de pinturas anteriores, em 1966 (deixando a expressão gestual e a relação com o abstracccionismo), e do início da construção de assemblages em 1967, quando é atraído pela pintura Pop anglo-saxónica.
Mostram-se algumas obras inéditas e outras que não voltaram a ser expostas desde os anos 60. A exposição agrupa algumas obras da viragem dos anos 50/60 (pinturas "negras" de uma pista ibérica que reuniria Goya e o primeiro Columbano), depois as cenas do trabalho do povo (pescadores e mariscadores, a pisa do vinho); algumas paisagens de 1961 a 68 (Albufeira, Lisboa, Porto e um Vista da Janela não localizado); algumas figuras de um bestiário pessoal; as tauromaquias e corridas de cavalos e as variações sobre uma Batalha de Uccello...
Comissarios: Alexandre Pomar e Óscar Faria
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Sobre o artigo de Diogo Ramada Curto, agradecendo a atenção crítica que dedicou ao livro JÚLIO POMAR. DEPOIS DO NOVO REALISMO, Guerra & Paz, 2023, depois de já ter participado no respectivo lançamento no Atelier-Museu (o presente artigo, há muito tempo entregue para publicação, inclui o essencial das considerações críticas que então formulara). Esta é a oportunidade para rever o conteúdo e as teses do meu livro, em diálogo com um leitor atento. CRÍTICA DA CRÍTICA sem qualquer intenção polémica, que não há razão para isso, aprofundamento de leituras esclarecendo alguns pormenores que terei deixado pouco claros.
Artigo de Diogo Ramada Curto publicado no Expresso Revista E em 19-04-2024, p.58-59.
<original a negro, anotações a azul >
(1º)
Esta obra escrita por um filho acerca do seu pai não é muito esclarecedora dos aspetos privados da vida de Júlio Pomar. Tão-pouco procura reconstituir a rede de relações em que se inseriu a atividade do artista plástico. Talvez seja descabido julgar o livro pelo que escapou à intenção deliberada do seu autor <1> . Sublinhe-se, ainda, que o mesmo propõe um argumento principal: a produção de Júlio Pomar teve um carácter experimental e heterogéneo que não se encaixa em categorizações simplistas.
Assim, a formulação de Mickhaïl Bakhtine sobre Dostoievski poderá ser-lhe aplicada: “A pluralidade de vozes e consciências independentes e distintas, uma autêntica polifonia de vozes no seu conjunto, constituem o traço fundamental dos (seus) romances.” Quando incide sobre Júlio Pomar, o argumento tem duas consequências: por um lado, torna impossível reduzir a obra de Pomar, dinâmica e polifónica, ao neorrealismo e à sua filiação no Partido Comunista; por outro, a própria categoria do neorrealismo é posta em causa no que respeita à sua filiação comunista e soviética. <2>
A polifonia em 1952-53: painel para restaurante Vera Cruz e Marcha, 1952, e Paisagem (Lisboa), de 1953
Os novos dados biográficos oferecidos por este livro não vão além de algumas cartas de Júlio Pomar para os filhos. Por isso, o contraste é grande em relação à entrevista de vida feita pela jornalista Helena Vaz da Silva, em 1980. Nela, procurou-se saber se as suas mudanças correspondiam às mulheres que tivera como companheiras. Seria ele “permeável, influenciável...” ou, pelo contrário, ser-lhe-iam periféricos “os universos das mulheres”? Em lugar de enfrentar estas questões íntimas, Alexandre Pomar limita-se a uma curta referência acerca das mulheres retratadas pelo pai — Manuela, Graça, Teresa. <3>
<1> Sim, será certamente descabido, e não se tratou de escapar..., as intenções deliberadas foram outras e estão explicitadas na Apresentação do volume, p. 11-14.
<2> Sim, não se fixou num estilo, colectivo ou individual, numa imagem de marca, numa fórmula, depois de ter promovido o neo-realismo durante dez anos, 1945-54; no entanto, em vez de polifonia logo referida no título, a qual supõe uma simultaneidade de meios ou vozes, haverá que falar na diversidade de um percurso no tempo, nas várias mutações de linguagens ou “estilos”; nas fases e nos períodos e ciclos sucessivos. Não é uma obra única, um romance, mas uma longa carreira de oito décadas. Mas poder-se-á certamente falar de polifonia, de sobreposição de camadas ou de vozes, escritas e pintadas, quanto ao último tempo do novo realismo, 1951-54, apontando a simultaneidade de pinturas militantes, trabalhos alimentares e obras pessoais não expostas - exemplificando, a pintura Marcha, painéis para o restaurante Vera Cruz e pequenas paisagens (Azenhas do Mar, Lisboa, todas de 1952) -, bem como os artigos do Comércio do Porto e da revista de Paris Soleil Noir. >
<3> O que é principal no livro, na sua parte inicial, é fazer a marcação do arranque do NR nas artes plásticas no momento do fim da 2ª Guerra e na expectativa da queda do regime, como uma afirmação geracional, afirmadamente moderna, propondo eu o reconhecimento (inédito) de uma Geração de 45, a qual depois se dividiria pouco depois em diferentes práticas ou tendências. A análise daquele arranque contraria a habitual diluição das temáticas sociais NR nos seus precedentes, naturalismos, populismos e miserabilismos, ou humanismos, e a confusão com o NR literário bem como com o realismo socialista soviético, que não foi uma influência, mas uma informação rejeitada. A afirmação dos jovens pintores em 1945 é autónoma e pioneira em relação aos realismos sociais que se afirmariam nos anos seguintes da reconstrução europeia, e ao realismo socialista: oficial chegado de França cerca de 1948. A relação com as Américas marcou a diferença.>
<3> Há seguramente muitos outros dados biográficos... desde logo, para falar só de cartas, no 2º anexo, as em que intervém o coleccionador e amigo Manuel Vinhas, influente por ocasião da partida para Paris em 1963 e responsável por encomendas e por curiosas recomendações já de 1974. O projecto é outro, o lugar do autor é diverso, de investigador e crítico, não de jornalista e amigo. “Os universos das mulheres”: é uma pista tentadora, mas a síntese é redutora e não vem ao caso; não me interessou “enfrentar questões íntimas”, nem fazer uma entrevista de vida.
O quadro de informações afigura-se mais rico ao passar para as relações de Pomar. Um campo vasto formado por colegas (artistas e escritores como Mário Dionísio, Cardoso Pires, etc.), mecenas (Manuel Vinhas, Jorge de Brito e Ilídio Pinho) ou o galerista Manuel de Brito <4>. Por exemplo, entre a adesão ao PCP, em 1945, e a sua prisão por razões políticas, em 1947, o jovem Pomar coordenou uma página artística de “A Tarde”, um jornal vespertino do “Jornal de Notícias”. A seu lado, como colaboradores estiveram Fernando Lanhas e Victor Palla, mais Júlio Resende e Nadir Afonso, estes últimos “menos interessados pela política”. Alexandre Pomar acrescenta outros nomes, como Mário Cesariny, para falar da Geração de 45, de orientações diferentes <5>. No entanto, se a página coordenada por Júlio Pomar manifestava um tom panfletário, em defesa de uma “arte socialmente interveniente”, o jornal tinha uma agenda conservadora.
Se as menções aos mecenas ajudam a pôr em perspetiva as condições em que Pomar trabalhou, a questão do mercado também é posta, com coragem. Trata-se de um desabafo a respeito da exibição das pinturas sobre os índios da Amazónia, envolvendo a Fundação Gulbenkian e o Ministério da Cultura do Brasil, que culmina no reconhecimento da fraca internacionalização do artista plástico: “Mais uma vez nada da mostra institucional entra no mercado brasileiro ou internacional porque tudo é absorvido em Lisboa, ou de Paris para Lisboa, despreocupado e inábil o artista como sempre.” <6>
Alexandre Pomar mostra a sua insatisfação em relação àqueles que reduziram Júlio Pomar ao estatuto de pintor neorrealista, sem procurar compreender a sua evolução. O livro constrói-se em função de um ‘chega-para-lá’ dos saberes impregnados do bafio académico. As farpas são, neste caso, dirigidas a José-Augusto França e à sua “descendência escolar”, representada por Raquel Henriques da Silva, sem esquecer o posicionamento do Museu do Neo-Realismo na mesma simplificação forçada. Na voragem de uma oposição aos saberes académicos, Alexandre Pomar só se esqueceu da tese, mais elaborada, de Luísa Duarte Santos, “Realidade, Consciência e Compromisso Humanista na Arte, 1936-1961” (Caleidoscópio, 2017) <7>.
Ao longo do livro, o autor quer demonstrar o lado dinâmico, experimental, heterogéneo e polifónico de Júlio Pomar. Assim, o próprio neorrealismo, longe de poder ser considerado o produto de uma influência socialista ou soviética, nasceu colado a ideias americanas (com Portinari e Rivera) e, sobretudo, norte-americanas. Depois, há que considerar, desde o início da atividade de Júlio Pomar, a colaboração com artistas conotados com correntes opostas (do surrealismo de Cesariny ao geometrismo de Lanhas). < 8>
<4> Especialmente relevante, acrescente-se, foi a relação editorial e de amizade com Joaquim Vital, em Paris, que abriu espaço para o convívio com autores e críticos parisienses, e para numerosas publicações em livro, e mesmo séries de obras desde os ano 70.
<5> Fernando Lanhas, Júlio Resende e Nadir Afonso colaboraram na página "Arte" com reproduções de obras; também colaboraram com textos Fernando Azevedo, Pedro Oom, Vespeira etc, que à data não tinham “orientações diferentes”. Juntavam-se antigos colegas de Lisboa e os novos colegas do Porto, o que reforça o carácter geracional da movimentação.
<6> mais que desabafo é uma crítica ao mercado galerístico fechado sobre o país, e à despreocupação do artista com a sua promoção - mas nos anos 60 a Galerie Lacloche assegurara uma circulação relevante, e a presença no Louvre a propósito de Ingres em 1972 foi marcante, para além da posterior divulgação da obra de J P assegurada pelas Editions de la Difference, de J. Vital, o qual esteve na origem de séries de pinturas dos anos 80-90 como o Corvo de Poe e a Caça ao Snark de Carroll. Embora tivesse clientes nacionais persistentes, a carreira de J P desenvolve--se em Paris desde 1963, o que não é reflectido por DR.
<7> Essa ‘redução‘ ao NR perdeu rapidamente eficácia crítica logo nos fim dos anos 1950, e passou a ser só a menção de um lugar de partida juvenil. Mais do que "bafio" tratou-se de uma guerrilha nacional que apostava quer na divisão entre neo-realistas e surrealistas, e depois figurativos e abstractos, sempre aplicada na importação de sucessivas vanguardas (eram os alegados “pioneiros” dos vários estilos sucessivos), quer na desconfiança face ao mercado, com que se impunha a tutela da crítica sobre a criação pessoal. Devo dizer que 'esqueci' muita outra literatura; essa tese de extenso sumário de dados e fontes ditas “humanistas” vinha reiterar a tradição escolar. A velha competição entre “humanistas” e “formalistas” foi pouco produtiva. O que mais me interessou está no título “depois do Novo Realismo”.
<8> Sobre o capítulo NR seria essencial referir a minha proposta de uma periodização inédita, seguindo a obra e a escrita de J P: 1. a afirmação militante de 45-47; 2. o “lirismo, complacente, que tende a substituir agressividade dramática das primeiras tentativas”, nos anos de 49 a 51 (a respectiva autocrítica motiva ruptura com Dionísio); 3. o novo vigor interventivo dos anos 51-54, no diferente contexto da Guerra Fria e das campanhas da paz soviética.
(3)
A partir daqui, identificam-se três domínios em que Alexandre Pomar constata a referida heterogeneidade ou polifonia. O primeiro diz respeito à variedade de suportes ou de técnicas com base nos quais o pai efetuou diferentes experiências: fotografia, livros ilustrados, gravura ou tapeçaria — esta última, por solicitação de um arquiteto como Conceição e Silva. O segundo domínio é relativo aos anos Pop, sobre os quais se defende que a breve série de pinturas sobre os Beatles foi a primeira em que o pintor abordou o tema, sem ter estado presente. Corrijo: o mesmo já teria acontecido com “Histórias da Terra Negra” de 1960, livro sobre cultura africana e colonialismo de Castro Soromenho, um dos maiores escritores anticoloniais. Pomar ilustrou-o a meias com a sua companheira, Alice Jorge.
O último domínio foca a relação entre prática artística e escrita, para a qual Alexandre Pomar carreia elementos importantes que se prestam a diversas interpretações. O envolvimento com a escrita terá sido substituído, a partir de 1950, por uma ligação a dois tipos de projetos editoriais. Por um lado, encontra-se um conjunto de obras ilustradas por Pomar, que fazem parte do cânone da literatura ocidental, como “Guerra e Paz”, de Tolstoi (1957), o “Dom Quixote”, de Cervantes (1959-1963), o “Pantagruel”, de Rabelais (1967) ou as xilogravuras para o “Purgatório”, de Dante (1961), publicadas mais tarde. A própria série conhecida pelos tigres, pintada em redor de 1982, é para o filho indissociável da leitura de um conto de Jorge Luis Borges.
Por outro lado, há que ter em conta as obras de autores portugueses que Pomar ilustrou, a começar pelo “Romance de Camilo” (1957), de Aquilino Ribeiro; a referida obra de Castro Soromenho; “Emigrantes”, de Ferreira de Castro (1966); a que se seguiram livros de José Cardoso Pires, Eça de Queirós e outros. Aliciante será imaginar que o envolvimento de Pomar com a literatura corresponde a um apagamento da sua própria prática da escrita. E que, ao mesmo tempo, se teria dado uma cada vez maior aproximação a obras que configuraram uma identidade nacional e europeia — só contrariada pela atenção às populações africanas, como sucedeu no livro de Castro Soromenho; e, nos anos 1980, aos índios da Amazónia, também em luta pelos seus direitos.
Em conclusão, Alexandre Pomar escreveu sobre o pai um livro que, além de ter um argumento forte, põe em causa interpretações anteriores. Ao insistir numa visão dinâmica e polifónica da obra de Júlio Pomar, sugere pistas situadas na contracorrente das visões da crítica e da história de arte, que tendem a reduzir o pintor à categoria de neorrealista, pondo de lado outros aspetos.
De um ponto de vista mais pessoal, só tenho a acrescentar uma nota em relação àquele que é um dos maiores pintores portugueses da segunda metade do século XX. Reconheça-se que a sua grandeza experimental terá alcançado a sua maior consistência na fase dita neorrealista. Para isso, contribuiu uma espécie de convergência entre o muralismo americano e o expressionismo alemão. Porém, foi na técnica pictórica que essa grandeza, primeiro dita neorrealista, se transferiu para outras fases: entre a ilustração, o pop, os tigres, os índios e as colagens.
Enfim, será sempre difícil reduzir Júlio Pomar a qualquer tipo de categorias, quer as do neorrealismo, quer a da polifonia. Tão-pouco a técnica do desenho ou pictórica, em que foi exímio, terá sido por ele submetida a um projeto ideológico. Conforme o próprio pintor escreveu a Menez, em janeiro de 1980: “Como é difícil, céus! Há vezes em que dá cada desalento com a tinta a escorregar sobre os pincéis, tudo viscoso ou papa aguada. Nunca se sabe nada. A recomeçar de cada vez.”
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Em 1955 despede-se do neo-realismo. Não existe declaração formal, apenas uma resposta em entrevista ao Diário de Notícias (1), onde fica dito que o movimento não teve nenhum resultado prático. «De resto – acrescenta – não creio que isso deva preocupar o artista. Quando digo que a pintura tem uma função refiro-me mais à função que ela desempenha como expressão ou libertação de um estado de espírito do que como acção sobre o público».
Na pintura, a viragem manifesta-se em quatro obras (ou cinco, uma desconhecida) que poderão ter surpreendido quem seguira o período de militância renovada que vai de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951 (Salão da Primavera) aos retratos de Maria Lamas (VIII EGAP) e José Cardoso Pires de 1954, cumprindo-se a recomendação comunista-internacionalista do culto das personalidades.
Esse fora o tempo do Ciclo “Arroz” (VII e VIII EGAP) e dos quadros-manifesto Marcha (só exposto em 2021) e Os Carpinteiros (VII EGAP: os controleiros do PC deslocavam-se de bicicleta por razões de segurança conspirativa), com que esconjurava o “desvio lírico” (o lirismo complacente, o maneirismo e formalismo, a renúncia dos objectivos...) do fim da anterior década, condenado no artigo de balanço e reafirmação do neo-realismo que publicou no Comércio do Porto em 1953 (2). Esta crítica motivou a ruptura com Mário Dionísio (3) com quem partilhara desde início a condução do movimento, juntando-se a fulgurante energia juvenil ao prestígio do crítico literário e militante do PC dez anos mais velho. Dionísio afasta-se das Gerais nesse ano, e da SNBA, por recusa da alegada cumplicidade com o SNI por ocasião da 2ª Bienal de São Paulo, e desliga-se do partido, discordando do sectarismo que condenava a revista Ler, edição da Europa-América, onde os Lyon de Castro e Piteira Santos trocavam Estaline por Tito e por Browder.
Em simultâneo, foram também anos de indispensáveis produções decorativas (encomenda para o Restaurante Vera Cruz, 1952; vitrais para a igreja da Pontinha, de Victor Palla e Bento de Almeida instalados em 1954), mas era igualmente a ocasião fugaz de ensaios privados, pequenas paisagens de férias nas Azenhas do Mar e vistas da Ericeira (Barcos nº 94) e de Lisboa (?), onde mais se aproximou de desvios surrealistas, com árvores vermelhas orgânicas (CR I nº 93). As muito pequenas paisagens das Azenhas eram vistas abstractas de rochedos em close-up, de construção vigorosa e áspera. Pinturas não mostradas todas elas, enquanto num texto francês, “O assunto não é o conteúdo”, tradução se afirmava independente de todos os papas (4). Parece haver diferentes identidades sobrepostas numa prática que se questiona. Diferentes vozes no tempo neo-realista, na polifonia sugerida por Diogo Ramada Curto (5), mas só nesse tempo.
Será significativo que dois dos quatro quadros de viragem - O Baile e Rua de Lisboa, 1955 e 56 - tenham sido expostos na terceira das colectivas da Galeria Pórtico (1955-57), dinamizada por uma nova geração ou promoção de artistas surgidos na ESBAL e de próxima partida para o estrangeiro. Iam publicando irregularmente a revista escolar Ver (1953-57, de início organizada por António Lopes Alves, René Bertholo e Sebastião Fonseca) e viriam a editar em Paris a KWY (de 1958 a 1964). Além do singular Catatuas, certamente nunca exposto, conhece-se Circo (1º Salão dos Artistas de Hoje), e desconhece-se o chamado Quarto andar (não localizado nem fotografado, apresentado na 2ª Exposição de Pintura Moderna, em Luanda, dinamizada por Manuel Vinhas e Cruzeiro Seixas). Todos eles são cenas ou vistas urbanas, burguesas, não proletárias. Não parece ter havido testemunho crítico do que se veria com surpresa.
Com a estranha melancolia de O Baile e Circo, duas festas tristes, despede-se o artista desses anos mais aguerridos e também opressivos. Viaja então com mais assiduidade, até Paris (56, de carro com o amigo de sempre Manuel Torres, pelas Astúrias, Altamira, Chartres, etc) e pela Itália (58 e 60, Bienal de Veneza), depois de ter visitado Madrid em 50 (“A romagem ao Prado e Santo António de La Florida. Contacto ao vivo com Goya, e depois Columbano, duplo encontro...” - Nota 6) e Paris em 51, de onde trouxera os pincéis japoneses com que passará a desenhar. (7)
Dez anos depois da afirmação geracional do pós-guerra, o meio da arte voltava a mudar. As Exposições Gerais chegavam ao fim com a 10ª edição, já retrospectiva, de Junho 1956, precedida em fevereiro pelo Salão dos Artistas de Hoje, o qual é antecedente da primeira exposição Gulbenkian de dezembro 1957, ainda na SNBA, havendo perspectivas de bolsas desde 56. A criação da cooperativa Gravura também em 1956 é outro pólo com efeitos de mercado e de convivência de correntes.
O Movimento de Renovação da Arte Religiosa tinha sido fundado em 1952. José-Augusto França conduzira a Galeria de Março de Março de 1952 a 1954, onde lançou o Prémio da Jovem Pintura e a colectiva Pintores Portugueses Contemporâneos, ambos em 1953, mas que encerrou por falta de compradores. Vale a pena registar que Bértholo comparece na EGAP de 1953 convidado por Pomar e no Salão de Arte Abstracta da Galeria de Março em 1954 a convite de JAF. Era um dos elementos mais activos da nova conjuntura, em torno da ESBAL, da Ver e da Pórtico, com José Escada, Costa Pinheiro, Lourdes de Castro. O impacto público destas aparições ficou assinalado pela reportagem de capa do Século Ilustrado (6 Abril 1957) com Lourdes de Castro e intitulada «Os jovens pintores sem bênção».
À exposição da Gulbenkian leva Maria da Fonte, vinda das ilustrações para a vida de Camilo, que tornava bem visível a nova caminhada (é uma nova Marcha, a 3ª, vontade de pintura de história), mas também foi vista como obra culminante do neo-realismo. Mostrou também desenhos, as primeiras etreintes, teriam longa continuidade - e foi premiado por gravuras. Pelo meio tinham ficado várias obras indecisisas, incluindo paisagens vistas a partir da casa da Rua da Alegria e continuidades do neo-realismo anterior.
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«Não sou pintor de naturezas-mortas» escreveu o pintor - e essa foi a tradição que menos praticou. Mas existiram algumas, são obras maiores e ficaram a marcar uma transição brusca entre ciclos, dos retratos íntimos para os recortes de figuração erótica. São também um momento forte do diálogo sempre procurado com a arte dos museus*, que vários artistas da Pop norte-americana praticavam e então o interessavam, desde a longa relação com Ingres e com Matisse, no início da década de 1970.
Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. E lá me encontrei: situação sem conforto, de que há que partir. Isto vale para a pintura e para o resto. Nota (p. 27)
Três magníficas natureza mortas a partir de Chardin, em 1976: “Vá-se lá saber porque é que o meu período de retratos (1968-1976) se afoga em naturezas-mortas. E a verdade é que nunca me apetecera tentar o género”. Confessa todavia a “admiração sem limites por Chardin (que) sempre me entusiasmou diante das suas pirâmides de fruta e da carne miraculada dos seus utensílios, ditos humildes” - “um pintor obcecado pelo lado carnal da presença”. Nas mesmas páginas de Da Cegueira dos Pintores em que reflectia sobre o fazer da pintura, “relacionava também... os seus belos vazios com aqueles tempos tão densos que Morandi assinala entre os frascos e as cafeteiras anónimas”.
A natureza-morta é um “micromundo ou inacabável modelo do mundo... (e a tradução literal de nature morte repete a estupidez da expressão original (francesa), a opacidade que still life, vida silenciosa ou quieta, não tem): o silêncio nas coisas ou a quietude destas não é obrigatoriamente apanágio de cadáver. “
Enquanto se ocupava de uma difícil paisagem*, Belle-Isle-en-Mer, e elas foram sempre raras, “a lembrança de Chardin começou a mexer em mim. Iniciei um estudo a partir de La Raie (mais um rosto!), e outro a partir de Le Chaudron de cuivre. Seguiu-se Le Pot d’étain. A partir de Juan Gris, arrisquei as duas telas que foram mais tarde distinguidas com o título Table des matières.”
“Nessa altura... precisava de uma espécie de terreno neutro.” “Vivia então uma espécie de purga. Escolhera os simples e confiara aos seus poderes o cuidado de disciplinar a libertinagem, enquanto o olhar desperto guardava as suas distâncias. O rigor pretendia-se impermeável ao tremor da mão. Uma geometria cortante. Dei comigo a fabricar quadros que pareciam ter sido paridos por luvas assépticas. Nenhum sinal de temperamento na pincelada, a escrita artística eliminada deliberadamente, nenhuma subtileza de feitura, tréguas na transparência. Tudo se pretendia exacto, seco, impessoal.”
O “lado carnal da presença” em Chardin, era igualmente ausência, vazio dos espaços de formas e fundo liso: “O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença.” Falou em “ordenação das emoções”. “Pintura que parte da coisa para se tornar pintura do vazio, do vazio como coisa; pintura da coisa grávida do seu vazio, da coisa chamada ausência, da coisa semelhante à sua ausência. Pintura que apresenta o vazio que a forma deixou, contra o vazio que a teria rodeado. A forma era assinalada como ausente, no vazio que teria habitado. O recorte nítido, a nitidez dos contornos marcariam a perda ou a partida dos objectos, mais do que a sua presença.”
São só cinco telas, a Raia d’après Chardin, o caldeiro de cobre em que a tela crua interior desenha um corpo e o humilde pote de estanho no fundo vermelho; a par das duas apropriações de Jean Gris em que aparecem guitarras e sexos. Em 1976, depois dos Maios’68 e de Ingres, de Van Eyck e Courbet revisitados até 1973. A par da essencial Belle-Isle-en-Mer.
Da Cegueira dos Pintores, tradução de Pedro Tamen, ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda 1986, de Discours sur la cécité du peintre, ed. Différence, Paris 1985. Reed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta 2014.
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COM A LITERATURA
Desde os retratos dos poetas nos anos 50 para a colecção “Cancioneiro Geral” do Centro Bibliográfico (Mário Dionísio, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, etc, na edição especial de 40 exemplares), ou mesmo desde a primeira capa em 1946 para “Maria I - Escada de Serviço”, de Afonso Ribeiro, até às interpretações e ilustrações de “A Caça ao Snark” de Lewis Carroll, 1999, ou ao retrato de Vasco Graça Moura em 2014, a obra de JP avançou sempre associada à literatura, em desenhos, pinturas e também esculturas, com intervalos abertos para outros interesses e ciclos de trabalhos. Uma exposição e um livro de 1991 ("Pomar et la Littérature" / "Les Mots de la Peinture", Charleroi, Bélgica; ed. Différence) fizeram uma primeira aproximação ao tema da literatura, por iniciativa de um editor parisiense, Joaquim Vital, que esteve na origem de muitos convites para ilustrações. Em 2002, o Atelier-Museu actualizou o assunto também em exposição e livro,"Os Livros de Júlio Pomar" / The Books of Júlio Pomar", com organização de Mariana Pinto dos Santos.
Júlio Pomar pintor literário, sem que a sua pintura seja ilustrativa ou livresca. Também escritor*: crítico, ensaísta e poeta.
Se a relação com a literatura era visceral (ficaram livros assinados Júlio 1942), a ilustração - e a decoração*, de maior ou menor ambição - foi em certas épocas uma importante retaguarda financeira, quando a pintura se vendia pouco num mercado estreito (Pomar viveu sempre do trabalho de pintor, só com dois anos de bolsas da Gulbenkian já depois de se instalar em Paris em 1963; a cerâmica* e depois a gravura* cumpriram o mesmo papel de acessível suporte económico), e as leituras eram igualmente oportunidade de se encontrar com novos temas, necessários a um pintor sempre figurativo e sempre em mudança.
Já vimos (...) que os poetas - Camões, Bocage, Pessoa e Almada - desenhados no Metro de Lisboa e os autores das versões de “O Corvo” de Edgar Allen Poe, Baudelaire, Mallarmé e Pessoa, estiveram no início do estilo tardio da sua obra. E veremos que, de facto, toda a sua produção, no neo-realismo à Pintura de História* se partilhou entre a observação de cenas vistas, o real (os espectáculos do trabalho: debulhas, pisas, pesca, lotas; das Tauromaquias e Corridas de cavalos, do Catch, dos retratos e corpos) e a imaginação literária, por livros lidos e invenções sobre os mitos*. Até a longa série dos Tigres tem origem em ilustrações para um conto de Borges, em que aparece um tigre invisível, seguindo depois o pintor o seu caminho em total liberdade de figurar.
Com uma excepção confessada, a relação com a literatura resulta de propostas e encomendas, que em vários momentos resolviam a procura de assuntos a que um pintor se poderia dedicar, quando ele não se fixa na natureza morta* ou na paisagem*, ambos géneros raros, ou não se entrega à “abstracção”.
“D. Quixote” foi o livro mais trabalhado, em duas épocas bem distanciadas, os anos 1959/63 e 2005/12. No primeiro caso, as ilustrações para uma tradução de Aquilino Ribeiro (30 pequenas pinturas a preto e branco sobre cartão) prolongaram-se em quadros, gravuras e esculturas em ferros soldados, num tempo especialmente criativo (foi uma primeira maturidade). No segundo caso, uma ambiciosa edição em fascículos de iniciativa do semanário Expresso incluiu centenas de desenhos de variadíssimos formatos e processos, quando o contrato exigia só 10 por fascículo, e deu origem a uma nova série de pinturas que foram fotografadas ‘in progress’ e depois mais ou menos retrabalhadas, expostas em 2009 e em 2012 (“Navio Negreiro” e “Cartilha do Marialva”, estão já mais ou menos distanciadas do pretexto cervantino). Note-se que Quixote e mais ainda Sancho Pança foram uma espécie de alter-egos do pintor que neles por vezes se retratou.
Para além da série O Corvo, Fernando Pessoa aparece envolvido na série da “Mensagem”, e antes em retratos que começaram em 1973, em contacto com a Pop, e que depois foram até aos anos 2010, então na companhia de Marceneiro: dois emblemas nacionais no contexto do interesse pelo fado* e os fadistas. A música estava até aí ausente na obra, mesmo se era muito ouvida no atelier.
Lewis Carroll está presente, com o seu humor e gosto pelo absurdo lógico, num conjunto de grandes telas que excederam o propósito de ilustrar o poema "The Hunting of the Snark"/ “La Chasse au Snark” para a Différence, em 1999, o que motivou uma série paralela de desenhos e litografias para a edição prevista.
E também a Carta do Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha foi assunto de uma encomenda, surgindo uma Mãe Índia, que já se instruía com a estada na Amazónia. De um quadro de 1999, para o centenário da “descoberta”, surgiu depois uma série de outras Mães e filhos (“Mères Indiennes / Meridiennes”), em álbum e exposição. Juntavam-se, muito depois da viagem ao Xingu, a pintura de observação e a literatura, e também o mito.
Regressando ao princípio das oito décadas têm de referir-se as ilustrações desenhadas para “O Romance de Camilo” de Aquilino Ribeiro, 1957, e para “Guerra e Paz” de Tolstoi, 1956-58; “O Purgatório” de Dante, 1961 (e 2006), e o Grande Fabulário de Portugal e Brasil” 1961 (ambos em gravuras); “Terra Negra” de Castro Soromenho, 1960, e “O Cristo Cigano” de Sophia de Mello Breyner Andresen, 1961, já desenhados com o pincel japonês, tal como “Pantagruel” de Rabelais, 1967, que foi, segundo lembrou o autor, o único projecto ilustrado pela sua própria iniciativa. Seguiram-se grandes projectos associados a Ferreira de Castro, “Emigrantes” e “A Selva”, 1966 e 1974, e logo “Uma Abelha na Chuva” de Carlos de Oliveira, 1976, praticados como pinturas de pequenos formatos.
Em Paris, com Joaquim Vital, destacam-se os pequenos livros de Malcolm Lowry, 1976, e Jorge Luis Borges, 1978, com papeis recortados seguindo o exemplo de Matisse, e os desenhos eróticos (hardcore) para Gilbert Lely, o biógrafo de Sade, 1977, mais alguns grandes projectos até 2003, incluindo capas para Eça de Queiroz, 1985-1991.
Duas edições para um público juvenil, que foram únicas no género, ficaram a marcar o princípio e o fim da relação com a literatura: “Bichos, Bichinhos e Bicharocos” com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1949, e “O Cão que Comia Chuva”, de Richard Zimler, 2016.
No volume “Les Mots de la Peinture”, Différence 1991, dividiu-se a sequência das obras reproduzidas em Retratos de escritores, Quadros de leitura e Quadros sem história. Se de facto, o pintor já ia abordando e subvertendo os mitos e a Pintura de História, por vias da ilustração, aconteceu que na série Elipses de 1984, rapidamente pintada nos intervalos d’ “O Corvo” de Poe, foram surgindo Salomé, Leda, o Rapto de Europa, o Julgamento de Páris, Diana e Acteon. Foram ocupando um lugar crescente no seu trabalho.
("in progress", A.P. 28.11.23) + Citações e Bibliografia. * indicam tópicos previstos
1991, Différence; 2006, Tavira ; 2022 e 2023, Atelier-Museu
Posted at 16:06 in 2023, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
Posted at 11:04 in 2023, Júlio Pomar, Santander | Permalink | Comments (1)
Reuni neste volume textos de vários destinos e diversos temas, com predomínio do capítulo neo-realismo/novo realismo, mas alargando o horizonte até aos últimos anos da obra de Júlio Pomar, sem a pretensão de abordar todas as décadas, e foram oito... O neo-realismo é só o começo, muito referido quando se fala do artista, por fixação cómoda aos estilos colectivos, como uma marca indelével, que muitas vezes cega ou esconde, como se fosse um lugar fixo na história. Mas também acontece que ela, a história, é mal contada. É, por isso, de uma correcção de versões académicas e de correntes que em grande medida por aqui se trata, propondo diferentes pistas. O neo-realismo não é o que dele se disse. Como exemplo e eloquente ilustração, a abordagem de algumas obras então trocadas com outros artistas (Fernando Lanhas, Victor Palla, Mário Dionísio, João Abel Manta).
Quase tudo aconteceu na obra de Pomar depois do neo-realismo, e por isso o título. Nos anexos acrescentei 25 textos dispersos, não incluídos nas recolhas publicadas em 2014 pelo Atelier-Museu Júlio Pomar (AMJP), porque eram então desconhecidos. Prefácios para catálogos seus e de outros, uma palestra sobre o desenho e o pincel japonês («A mão contraditória»), apresentações de obras e de um filme, homenagens a amigos e lembranças de circunstância ou de oportunidade – desde 1947 a 2017, com uma gravação de ignoradas data e intenção que ficou a abrir a sequência por tratar da infância. E no segundo anexo publico a pouca correspondência com interesse que sobreviveu às mudanças da vida, sem ser coleccionada: cartas singulares da Galerie Lacloche antes da partida para França, dos amigos Mário Dionísio, Manuel Vinhas, Paula Rego, José Cardoso Pires, mais os extractos de duas dezenas enviadas aos filhos Alexandre e Vitor que percorrem os primeiros anos de Paris, e uma última escrita no Xingu. Outras cartas, trocadas com Menez na viragem dos anos 70/80, já tiveram edição própria do AMJP: ficou a saber-se que a pintura não é produção fácil para alguns pintores e isso raramente se escreve (só em cartas privadas?) e menos ainda se divulga.
Destaco um primeiro texto analítico mais longo que abriu o volume I do Catálogo Raisonné, em 2004, onde identifiquei a Geração de 45, a emergência simultânea e cúmplice de jovens artistas em Lisboa e Porto no fim da Segunda Guerra Mundial, e a originalidade do neo-realismo português no contexto dos realismos sociais e socialistas do mesmo tempo internacional – e aí se seguiu também brevemente a mudança sequencial da obra até 1968, fim desse volume. A informação vinda das Américas e a atenção cosmopolita, fortalecida pela falta de qualquer tradição realista nacional e moderna que fosse reconhecida pelos novos, determinaram a excepção do caso nacional, que teve, logo depois, para outros artistas de uma geração plural, derivas por surrealismos e «abstracções» próprias da época. Recordo também um muito anterior escrito polémico sobre a grande exposição «Os Anos 40» (Gulbenkian, 1982), que sumariou questões críticas não desmentidas e teve uma decisiva consequência pessoal – fiquei comprometido nestes terrenos, e os reparos permaneceram a desafiar o status quo. Aliás, os anos 40 perduraram por várias décadas, a vários níveis. São a grande ruptura do século XX, pela actualização da informação, o contacto internacional e a aparição de grandes artistas modernos com longevidade.
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Posted at 10:31 in 2023, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
Anos Pop (capítulo de um livro a editar em breve: "Júlio Pomar. Depois do novo realismo"
«‘Em pintura, a descoberta da América foi decisiva’ - J.P., 1966
A coincidência entre a mostra do Atelier-Museu Júlio Pomar, «O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68» (15-05 a 29-09-2018), e a exposição «Pós-Pop. Fora do lugar comum – Desvios da ‘Pop’ em Portugal e Inglaterra, 1965-1975», na Fundação Gulbenkian (20-04 a 10-09-2018), em que não esteve representado, foi uma oportunidade propícia para a identificação dos anos Pop de Júlio Pomar, assunto sempre ausente dos ensaios sobre a sua obra. A exposição do ano seguinte do AMJP, «Formas que se tornam outras» (02-05 a 29-09-2019), veio confirmar essa leitura, a partir da reflexão «sobre o modo como o corpo, o erotismo, a sensualidade e a sexualidade atravessaram o percurso do artista». Uma outra exploração alargada sobre a galáxia Pop ocorrera já em 1997 (N1), também sem incluir Pomar, sendo a consideração da Pop sempre alargada muito para lá das suas formas mais canónicas ou mediatizadas, e poucos artistas são reconhecidos sob essa marca.
Para Pomar não se tratou da identificação com uma actualidade de grupo ou tendência, nem da adesão a um estilo colectivo, que aliás a arte Pop não foi. Não foi o efeito de uma estada em Londres. Importa ver a Pop na sua extensão como a resposta bem-sucedida à procura de alternativas à ordem abstraccionista que se entendia como caminho único, por entre procuras de retorno à figuração (que nunca terminara), de novas figurações e diferentes realismos. A segunda metade dos anos 50 dera origem às demandas de uma Figuration autre, em especial por parte do crítico Michel Ragon (na sequência de Dubuffet, Fautrier, Bacon e os Cobra: com Berni, Baj, Dado, Saura, Lebenstein, etc. N2). Por outro lado, na relação sempre atenta com a produção que lhe era contemporânea, as viragens de Pomar nunca foram mimetismo, ou efeito da novidade, mas algo que acontece por necessidade própria, e as influências, ou antes as informações, são acolhidas sem urgência.
«A arte Pop é um novo paisagismo bidimensional (two-dimensional landscape painting), no qual o artista responde especificamente ao seu envolvimento visual. O artista voltou a olhar à volta de si e pinta o que vê». Disse-o um dos seus mais calorosos defensores, Henry Geldzaher, no tempestuoso simpósio sobre a Pop, realizado no MoMA, logo em 1962. Mas também se afirmou que era um «estilo estúpido e desprezível dos ruminantes de pastilha elástica...» (Max Kozloff). A polémica era acesa, enquanto se popularizava nos magazines, com uma projecção nunca conhecida por qualquer corrente artística.
Em França, a apresentação da Pop norte-americana não foi particularmente tardia – chegou com a galeria Sonnabend em 1962, primeiro os neo-dadaistas, depois «Pop Art Américain» em 63, e viu-se no Salon de Mai de 1964; tornou-se então omnipresente e foi em grande parte rejeitada, face à vitória de Rauschenberg em Veneza, nesse ano. O contexto era o da defesa chauvinista dos «Novos Realistas» de Pierre Restany e logo a seguir das «Novas Figurações». O anarquista e influente Michel Ragon, que a defendia desde o início, disse que foi recebida pela crítica da época como «uma arte de analfabetos»; era rejeitada pela elite intelectual e falou-se de um novo assalto da Escola de Nova Iorque contra a cultura nacional, já na sequência do expressionismo abstracto do Pós-guerra (N3).
Pomar estava nos primeiros tempos da instalação em Paris mas em todo este período não se aproxima das «Mythologies Quotidiennes» e da «Figuration Narrative» de Gassiot-Talabot (1964 e 65), exposições que marcavam o tempo local. Não lhe interessa a «narração discursiva», escreveu num relatório de bolseiro da Gulbenkian, em Outubro de 1965. E o engajamento político de muitos não o atrai.
Posted at 12:29 in 2023, Júlio Pomar, Pop | Permalink | Comments (0)
Foi interessante a referência do Manuel Castro Caldas à 1ª estada de Júlio Pomar em Nova Iorque, que ocorreu em 1981 e em que o acompanhou na visita aos museus. Numa sessção realizada no dia 4 no Atelier-Museu, falou do contacto admirativo com os grandes formatos dos expressionistas abstractos aí vistos, sublinhando a propósito (ou a despropósito?) a importância da ruptura que a Pop trouxera à pintura ocidental, ausente em Pomar. É uma interpretação algo estranha.
De facto, os anos 60 em Paris (JP chegou em 1963) contaram com uma circulação considerável de exposições norte-americanas e nomeadamente de Rauschenberg na Galeria Ileana Sonnabend, duas em 1964, vencendo a Bienal de Veneza no mesmo ano. Pomar refere-se a Rauschenberg por duas vezes em entrevistas de 1966 (por ocasião da sua exp. na SNBA) e aponta-o, a par de Velazquez, como um seu artista de referência. "Em pintura, a descoberta da América foi decisiva" disse então a Mário Dionísio. Sobre Rauschenberg afirmava que "É a integração da imagem num novo conceito plástico. Quando a arte abstracta se preocupa com não distinguir o céu da terra, ele, partindo dos elementos mais corriqueiros, imagens gastas, batidas, consegue conferir um valor plástico àquilo que os nossos olhos anteriormente não viam. Uma roda, um movimento, funcionam da mesma maneira que um azul-cobalto. Uma refusão total do mecanismo da visão."
Para vários críticos essa é a ruptura (proto-pop) mais decisiva - depois da invenção da colagem que se associa ao cubismo e ao ready-made, nas primeiras décadas do século XX. Em cartas ainda inéditas Pomar refere-se ao apreço pelos pintores Pop britânicos e norte-americanos, e à distância face à "nova figuração" narrativa francesa. A mutação que conhece a sua pintura a partir de 1966-67, com as séries dedicadas ao Rugby e Maio 68 e com o posterior ciclo dedicado a Ingres e aos retratos, de óbvia relação com a Pop, mas então ignorada, é contemporânea de uma grande destruição de pinturas anteriores existentes no atelier (reproduzidas em Void* vol. III) e da realização das primeiras assemblages.
A "descoberta da América" ocorreu na 1ª metade dos anos 60 e não em 1981.
*
Comuniquei por mail ao Manuel CC o meu comentário à sua intervenção, colocado no Facebook e no blog, e ele respondeu logo depois. (O meu 1º texto era público e ele não me pediu reserva, pelo que me parece oportuno divulgar a sua resposta. Há poucas oportunidades de conversar sobre estes temas)
«Sim, mantenho tudo o que disse (não foi inventado em cima do joelho ontem...). Ter "descoberto" alguma coisa no Rauschenberg, gostar dele, ou dizer que gostava de Pop e de Matisse e que os artistas Pop admiravam Matisse, nada disso tem a ver com o facto da pintura do Júlio não ter um feeling Pop (idem para os objectos). Ele manobrou bem para não ser um pintor de Paris, mas não é por isso que se tornou subitamente numa pessoa que se encontrou (como os Pops, americanos, sobretudo) encurralado nas suas estratégias e encurralado nos seus procedimentos por causa de uma geração anterior heróica e nacionalmente (politicamente) erigida em mito, como eram os Expressionistas Abstractos.
O Rauschenberg sabia o que fazia quando apagou um desenho do De kooning: abria caminho para poder respirar. É uma situação histórica, sociológica, económica a milhas do que se passava na Europa e em Paris. E não era por "ver" em Paris trabalhos vindos dos EUA que ele podia encarnar nessa situação que não era e nunca seria a dele nem a dos franceses (nem dos portugueses). Semelhanças formais, iconográficas e outras, tal como afirmações ditas ou escritas, não nos dizem nada se as separarmos de uma análise dos procedimentos compositivos - no sentido mais lato - que o trabalho plástico deixa ver. Trata-se de responder à questão "O que é uma pintura?" num determinado momento. E o Pop respondeu de uma certa maneira, mais claramente nuns casos do que noutros, e o que mostravam é que achavam que uma pintura podia e devia prescindir de muitos dos procedimentos e pressupostos da geração anterior. As pinturas e trípticos (inteiramente) brancos e negros do Rauschenberg - que acompanharam de perto o gesto de apagar o desenho do De kooning - são gestos de libertação, nos quais o pintor prova a si mesmo que não responde da mesma maneira que os seus antecessores à pergunta "O que é uma pintura?". Só depois desse gesto pôde seguir para os Combine Paintings, etc.
Os franceses, todos estes anos passados, ainda não perceberam o quanto de "francês" ainda subsiste na sua maneira de fazer as coisas. Se italianos como o Clemente se safaram de ficar subjugados pelo peso histórico da sua herança cultural, foi porque outras tradições (a Índia e depois NY) vieram ajudá-los a fazer uma verdadeira secessão - um corte, também existencial. Não se trata de falar de misturas formais ou outras, trata-se de modos de encarar a missão de pintor num momento histórico determinado. O resto são as "aparências", isso que jaz na superfície das telas e dos objectos e que está lá para esconder coisas, não para mostrar. Há sempre muitas camadas nas obras de arte, mas elas têm uma ordem (ou uma hierarquia) e chegam ao nosso olhar segundo essa ordem, que se torna mais ou menos sistemática no interior de um dado estilo. Essa ordem diz-nos o que é prioritário e orienta o sentido. Enfim, é como eu vejo....»
*
É óbvio que discordo absolutamente. O desenho apagado (pedido ao De Kooning) é um gesto neo-dadaísta e não abre qualquer caminho. É uma atitude relacional que marca relações entre artistas e entre gerações de artistas de um mesmo meio local e intelectual. Tal como as pinturas brancas ou negras refazem os russos apagando os norte-americanos da época. O que importa são as pinturas seguintes e as combine paintings, que integram iconografias mediáticas.
De facto não entendo o q diz o MCC; não se pinta para "responder à questão "O que é uma pintura?" num determinado momento". É tudo um pouco mais complexo e menos programático. Julgo que é tudo mais experimental, mais vivencial.
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actualizado, aumentado
Nasceu em 1947 em Lisboa. Jornalista e crítico de arte. É autor de inúmeros artigos sobre política e cultura, tendo publicado primeiro no Jornal Novo, em 1975, depois no Diário de Notícias e, entre 1982 e 2007, no semanário Expresso, onde foi editor e coordenador da área da cultura, dividindo a sua atividade entre o jornalismo e a crítica de artes plásticas e fotografia. Investigador na área da história da fotografia em Portugal e de Moçambique.
Organizou e prefaciou o “Catalogue Raisonné “de Júlio Pomar, vol. I e II (1942-1985), Éditions de la Différence, Paris, 2002 e 2004. Co-autor de “Júlio Pomar - Obra Gráfica”, com Mariana Pinto dos Santos, ed. Caleidoscópio, 2015; editor de “Júlio Pomar - D. Quixote”, 2016 e “Júlio Pomar - Xingu”, 2017, ed. Fundação Julio Pomar. Publicou “Quatro Fotógrafos de Moçambique - Moira Forjaz, José Cabral, Luis Basto, Filipe Branquinho”, 2016; “José Cabral - Moçambique” (fotografia), ed. XYZ Books, Lisboa / Kulungwana, Maputo, 2018; “Luisa Cortesão - Voltar a Maputo”, 2018. Tem no prelo o livro “Júlio Pomar - Depois do Neo-realismo”.
Como comissário de exposições, apresentou nomeadamente “Júlio Pomar - Pinturas recentes”, com José Sommer Ribeiro, Câmara Municipal de Aveiro, 2001; “Xana” (Alexandre Barata), com Lúcia Marques, Culturgest, 2005, Lisboa e Tavira; “As Áfricas de Pancho Guedes”, com Rui M. Pereira, Mercado de Santa Clara, para a Câmara de Lisboa, 2010; «Grupo de Évora» (fotografia), A Pequena Galeria, Lisboa, 2013, depois em Évora, Palácio D. Manuel, e Sines, Centro Cultural Emmerico Nunes); «De Maputo», A Pequena Galeria, 2013; «Fantasia Africana - Exposição-Feira Angola 1938», A Pequena Galeria, 2014; « 4 Fotógrafos de Moçambique», Museu da Imagem em Movimento, Leiria, 2015, Galeria Municipal de Almada e Centro Cultural Emmerico Nunes, Sines; “Jorge Soares - Solar dos Jorges”, Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras, 2015. “Júlio Pomar - Pintura de Histórias”, com Sara Antónia Matos, Atelier-Museu Júlio Pomar, 2022.
Produtor para a Fundação Júlio Pomar do filme “Só o Teatro é Real”, realização de Tiago Pereira, 2013. Produtor e co-autor do filme «Solar dos Jorges», 2014, com Tiago Pereira, sobre o artista «espontâneo» Jorge Soares.
Desde 2006 é autor dos blogs http://alexandrepomar.typepad.com/ e https://alxpomar.blogspot.com/
É administrador da Fundação Júlio Pomar.
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investigação, apontamentos, pistas, informações, contactos, curiosidade(s)
Fundação Manuel Cargaleiro - Castelo Branco - dd 1990
instituída por escritura pública de 31 de janeiro de 1990, e reconhecida por portaria publicada no Diário da República II Série, n.º 124, de 30 de maio de 1990. Por despacho do Primeiro-ministro, publicado em portaria no Diário da República II Série, n.º 79, de 5 de abril de 1991, obteve a declaração de utilidade pública ao abrigo do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro.
http://www.fundacaomanuelcargaleiro.pt/fundacao.aspx
Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva - instituida pelo estado, a CML, Azeredo Perdigão, FLAD e Fundação Cidade de Lisboa em 1990. DL 149/90
https://fasvs.pt/wp-content/uploads/2022/12/Estatutos-FASVS_Decreto-Lei.pdf
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Com um notável projecto de arquitectura de Artur Andrade (1913-2005), o Cinema Batalha foi inaugurado em 29 de Maio de 1947, encontrando-se à data não concluído o fresco da parede maior, o hall. Júlio Pomar tinha sido detido a 27 de Abril, em Évora, por pertencer à Comissão Central do MUD Juvenil, como todos os seus outros elementos, excepto Octávio Pato devido a uma confusão de nomes. A 2 de Maio, o arquitecto (Empresa Forum) pediu por carta dirigida à PIDE que se autorizasse o artista a vir ao Porto concluir o trabalho; o mesmo fez a empresa do cinema, que era orientada por Luís Neves Real (1910-1985), matemático afastado do ensino e cineclubista. Não tiveram êxito.
O diário portuense O Primeiro de Janeiro de 28-05-1948 (pág. 4) incluiu uma pequena notícia, «O Cinema Batalha é inaugurado amanhã», onde refere que «foi decorado com motivos ligeiros de arte modernista». Em Setembro-Outubro desse ano, libertado o artista a 26 de Agosto, o fresco foi terminado. Por essa altura realizava no Porto, na Galeria Portugália, a sua primeira exposição individual, de desenhos, alguns realizados na prisão e vários reproduzidos no álbum XVI Desenhos, prefaciado por Mário Dionísio e iniciativa da revista Vértice.
Foi já em 1948 que o governador civil Antão Santos da Cunha, antes subdirector da Policia Judiciária do Porto, depois deputado, impôs a eliminação das pinturas. Segundo uma carta enviada ao artista em 17 Junho pela empresa Neves & Pascaud, proprietária até hoje, «uma determinação das autoridades» obrigava-a a «eliminar da decoração do seu Cinema Batalha as pinturas murais», fixando 25 de Junho como data limite para o efeito – mais de um ano depois da inauguração. Cconhecido recentemente um ofício dirigido ao ministro do Interior pelo presidente da Câmara do Porto, Luís de Pina Guimarães, tentando contrariar o ordem de ocultação ou destruição: «que [Sua Excia] se digne de considerar o caso relativo à legalização das obras executadas no Cinema Batalha, visto ter chegado ao meu conhecimento, por informações fornecidas pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que as pinturas existentes no Interior do edifício foram já devidamente modificadas de modo a poderem ser consideradas aceitáveis.» Tem a data de 15 de Julho e refere um anterior ofício no mesmo sentido enviado a 6 de Março. Desconhecem-se pormenores do desentendimento entre as autoridades do Porto e não há indicação de qualquer modificação da obra, depois da troca inicial do tema, dos trabalhos do vinho no Douro (de que existe um estudo) pelo dos arraiais do São João. Mas o cumprimento da ordem pelo cinema terá sido cauteloso, recobrindo-se o fresco sem o destruir, talvez contando com uma próxima recuperação: não se previa que o regime se eternizasse.
Nenhum escândalo público ou teor figurativo dos frescos justificavam a eliminação de uma obra não panfletária e assumidamente decorativa, mas onde a presença do povo em liberdade e em festa podia desafiar a razão repressiva. Se não tiver sido uma arbitrariedade do cacique local, é possível ter-se tratado já de uma retaliação do regime no contexto repressivo contra a candidatura de Norton de Matos à Presidência. O general apresentava-se então oficialmente às eleições, sendo o seu Manifesto «À Nação» distribuído a 9 de Julho. Pode não passar de uma coincidência em tempos que eram mais lentos. A campanha eleitoral começou formalmente a 3 de Janeiro de 1949, e as eleições realizaram-se em 13 de Fevereiro, com a desistência do candidato. O retrato do general desenhado por Pomar teve uma grande presença na campanha e nesse ano ele foi demitido do lugar de professor de desenho do ensino técnico, o último emprego que teve. Disse o artista numa entrevista: «O acto censório que manda destruir o meu mural no cinema Batalha, no Porto, é deliberado e, do ponto de vista de quem exerceu essa autoridade, acho-o perfeitamente coerente. Se esse acto de mandar destruir uma obra era coerente com o que pensavam os poderes públicos, não quer dizer que aceitemos esses poderes. No fundo, embora não houvesse um conteúdo revolucionário evidente — não havia foices e martelos — os homens e as mulheres que lá andaram e que eu pintei na parede não tinham a ver com as imagens estereotipadas que eram fornecidas como imagem do chamado povo. Eram outra coisa, mas nessa altura as autoridades perceberam perfeitamente que as personagens que eu lá pus não eram ranchos folclóricos. Era uma outra verdade, inconveniente – in «O que a vida me ensinou», entrevista de Valdemar Cruz, Expresso / Única, 05-03-2005.
A realização dos murais do Batalha foi encomendada e iniciada em 1946. A revista Horizonte, Jornal de Arte, Lisboa, nº 2, de Novembro, informou: «A decoração mural (11x6 metros) que Júlio Pomar vai realizar para o 'hall' do cinema Batalha, do Porto, da autoria do arq. Artur Andrade, foi fixada pelo preço de 30.000$00». Outra notícia, referente ao que foi uma conspiração contra os murais em execução, que não tinha a ver com a posterior ocultação, mas sim com movimentações de artistas mais conceituados que detestaram ser preteridos a favor de um estudante, foi publicada por Manuel de Azevedo: «Um escândalo artístico – Está ameaçado de destruição o painel do Cinema Batalha, do Porto», numa destacada página inteira do Mundo Literário, Lisboa, nº 37, 18 de Janeiro 1947 (inclui 2 fotografias das obras em execução). Era um jornalista amigo do pintor, cinéfilo e cineclubista, vindo já da página «Arte» do jornal A Tarde, ao qual o artista pedira a intervenção cúmplice.
As pinturas murais eram muito frequentes ao tempo, até aos anos 60, a fresco ou não, em estafes temporários na Exposição do Mundo Português, de que ainda restam poucos exemplos menores, nas gares do Almada, a preencher as galerias do Museu de Arte Popular, por coincidência inauguradas também em 1947, com outro povo, etnográfico ou folclórico; em instituições públicas, escolas, cinemas, pousadas. Os artistas que não conviviam mal com o regime viviam bem das decorações e eram professores, o mercado de quadros vinha por acréscimo (1).
Artur Andrade projectara pouco antes o Café Rialto no edifício de Rogério de Azevedo, à Praça D. João I, um inédito arranha-céus. Era uma primeira obra onde o espaço interior se desenvolvia numa galeria de dois espaços articulados, um café luxuoso onde se aplicava o ideal da integração das três artes com um grande mural desenhado a carvão por Abel Salazar em que, «a traço vigoroso, está simbolizado o esforço da Humanidade através da História», O Século, 1944. Está agora entaipado numa loja de gadgets, o que é um escândalo. Havia também frescos de Dordio Gomes e Guilherme Camarinha (ocultados ou já destruídos?) e um baixo-relevo de João Fragoso, este desaparecido. Logo depois (1944) projectou a Livraria Portugália, na Rua 31 de Janeiro, com «um hall magnífico, que vai do passeio ao segundo andar, decorado com alegorias dos principais ramos das especialidades de obras que a casa vai representar» (A Tarde, 1945), em dez altos relevos do escultor Américo Braga, e duas pinturas executadas por Augusto Gomes. Victor Palla acompanhou o projecto, propôs a instalação de uma galeria no andar superior, activa de 1945 a 1951, e acrescentou as montras que circundavam o hall (2).
A que se seguiu o Batalha, onde integrou um muito grande relevo do escultor Américo (Soares) Braga na fachada (à data retirou-se o martelo, agora reposto em metal, mas deixara-se a foice), os frescos de Pomar, frisos decorativos de Augusto Gomes e António Sampaio, que lembravam criações de Walt Disney, mais uma estátua, nu feminino, Flora, de Arlindo (Gonçalves) Rocha, então seguidor de Maillol e depois escultor 'abstracto', a qual se conservou e agora se mostra.
Era insólito que uma encomenda de tal envergadura (11x6 metros no ‘hall’ e 6x3m no bar) fosse entregue a um jovem que acabara de fazer 20 anos, sem carreira escolar (andava no 2º ano da Escola de Belas Artes), embora reconhecido desde as Exposições Independentes e as pinturas de Évora (o Gadanheiro), e que por essa altura organizava a Exposição da Primavera no Ateneu Comercial do Porto. A ordem pública e política andava ainda alterada desde o fim da 2ª Guerra. Na realidade, já em 1945, quando dirigia a página “Arte”, onde se afirmava o neo-realismo, Pomar realizara estudos de projectos decorativos (incluindo pelo menos um baixo relevo documentado) previstos para os empreendimentos turísticos de Ofir, nomeadamente de Alfredo Ângelo de Magalhães, outro colaborador da página, e para Vianna de Lima. Vários desses desenhos conservam-se nos acervos de Ernesto de Sousa e do Atelier-Museu. Pomar contou ter desistido dos projectos para Ofir perante a oportunidade da IX Missão Estética em Évora com Dordio Gomes.
Ernesto de Sousa anunciou os frescos do Batalha sem os identificar, no artigo «A arte e o público» Seara Nova, 28-09-1946 (3): «Quais as superfícies em que os artistas pintarão para a maioria do povo? Aqui se verá mais uma vez o encontro desses dois factores determinando-se reciprocamente: por um lado, uma vida colectiva mais intensa e em formas mais evoluídas, está oferecendo ao pintor vastas construções colectivas, com vastas superfícies; por outro, essa cultura que vimos ser a da maioria dos homens, a do povo, determinará uma pintura que não se poderá contentar com os quadros de cavalete, mais interessantes para as intimidades recônditas de quem se isolou dos homens. Estes dois factores concorrerão para uma nova pintura mural – o que já começou a acontecer.»
Os frescos do Batalha ficaram conhecidos por fotografias feitas por Ernesto de Sousa, certamente para corresponder a um pedido de José-Augusto França. Tornaram-se essenciais para os trabalhos de restauro realizados em 2022. Uma carta do futuro historiador, de 29 de setembro de 1947, justifica essa hipótese: «Passei ultimamente pelo Porto e fui ver os frescos de Júlio Pomar ao Batalha. A coisa agradou-me debaixo de muitos pontos de vista e gostaria de fazer um pequeno estudo sobre eles. Para tal, e supondo que o seu amigo Pomar ainda não está ‘visível’, pretendia eu que você me facilitasse alguns ‘dados históricos’ e pretendia o Horizonte algumas fotografias ou estudos, etc, para publicar também». Tinha urgência na resposta porque partia para Paris dentro de dias. França, que se subscrevia aí como «camarada às ordens», tinha então interesse pelos realistas modernos como Fougeron (artigo em Horizonte, Abril 1947). Não escreveu o texto, mas na sua História do séc. XX, lembrava-se de que tinha ainda podido ver no local «o mural [...] que seria coberto com escândalo»: ele «dá-nos a medida do seu talento e da sua originalidade, definida por um desenho de grande potência barroca com a expressão espacial das suas curvas e línguas de fogo que ligam dinamicamente figuras e fundo» (A Arte em Portugal..., 2ª ed., pág. 367).
Invisíveis depois, a fortuna crítica foi escassa. Manuel de Azevedo apresenta o Batalha na Seara Nova de 21-06-1947: «um cinema de feição moderna, rasgado para o exterior por largos espaços envidraçados onde funcionam varandins, terraços e escadas sem paredes. E assim temos que o elemento humano, a própria multidão, é o primeiro elemento decorativo chamado a colaborar com a arquitetura. O contacto entre o espectador e o mundo exterior mantêm-se e a multidão faz parte da própria ideia do conjunto. [...] O arquitecto procurou valorizar o seu trabalho chamando a colaborar com ele uma equipa de artistas novos, novos como ele, o que acabou por fazer do Cinema Batalha um caso sem paralelo em Portugal. O pintor Júlio Pomar foi encarregado de pintar a fresco duas superfícies enormes que quase concluiu e que, mesmo incompletas como se encontram, o afirmam um artista de largos recursos técnicos e invulgares dotes decorativos, sabendo retirar daquele género a força e o efeito impressionantes da sua habitual personalidade, mercê de processos hábeis e originais de usar as tintas a água que o fresco implica.» Ernesto de Sousa, que foi sempre divulgando as suas fotos, considerou que «a história destes frescos pontua o fim da fase de formação e o alcance da maturidade» do pintor, a iniciar-se com o Almoço do Trolha e Farrapeira. Referindo a «firmeza de um primeiro impulso para a linha sinuosa dos motivos» presente em obras anteriores às «inéditas coordenadas de um novo realismo», diz que «o arabesco retomava em parte os seus direitos, em parte cedia-os à nova paixão, nos luminosos frescos do cinema Batalha.» (Pomar, ed. Artis, 1960, pág. 9).
Podemos hoje percorrer detidamente os murais, seguindo as figuras que se destacam ou organizam em grupos a circular pelo largo espaço dinâmico da festa, entre as ondas das formas decorativas que organizam os fundos. No fresco maior, em cima à esquerda há quatro pares enlaçados que dançam, e em baixo está um casal sentado com tambor, grandes mãos que o tocam, rostos tristes. E logo cinco figuras em movimento que se dirigem para o centro da composição, eles com bonés de operário, como quem vai à luta. Pelo meio fica um miúdo agachado que come da gamela – alguém apontou aí uma referência à fome, o que teria desagradado. Há um largo intervalo central flamejante, onde arde uma fogueira e sobem balões. Mais figuras à direita, três mulheres sós, outro par dançante, talvez artistas de circo com fatos aos losangos, um homem agachado que é arlequim ou mendigo, e logo em baixo os dois homens do tambor e da concertina, que são figuras poderosas, e mais outro balão a subir da fogueira.
As figuras são corpos e não vultos, e são rostos expressivos e individualizados, e não máscaras, muitos deles rostos firmes, decididos, e há muitos pés descalços, o que era impróprio. É mesmo povo quem invade a grande parede, e entende-se a recepção repressiva.
Em cima, no bar, está o alongado painel dos músicos, num palco, por entre as curvas de panejamentos com ramagens. São vistos com as suas sombras, os dois da esquerda com chapéus que parecem herdados do regionalismo norte-americano (um camponês de Thomas H. Benton) e o outro que olha o céu cujo perfil vem obviamente da Guernica, da mãe com o filho morto. À direita, bem separado da festa, um grupo de mãe e filhos, ela com um olhar frontal que inquieta, um miúdo descalço. São os pobres. Pomar entendia a grandeza do desafio, citando Picasso, afirma as suas ambições e as suas referências. O famigerado governador civil não se deixou enganar, e cumpriu o seu papel.
Note-se que é durante a realização dos frescos que escreve o artigo «O pintor e o presente», reflexão íntima e prudente sobre a pintura mural, onde parece justificar a condição decorativa que não podia cumprir o «programa máximo» do neo-realismo:
As grandes pinturas que sonhamos são de amanhã, só um amanhã bem diferente dos dias de hoje as tornará possíveis na escala desejada — um amanhã para a realização do qual devem incidir todas as nossas tarefas actuais. E o problema que hoje se põe ao artista deve cifrar-se, sim, em achar, no presente, quais as suas tarefas específicas — como, a seu modo, poderá desde já participar na marcha dos homens do seu tempo. (...) A questão da pintura mural está, entre nós, mais francamente na ordem do dia das discussões do que na ordem do dia das realizações. Algumas paredes se têm pintado, outras se virão a pintar. Cremos que, quer as já pintadas, quer as que se venham por agora a pintar, nada adiantam quanto ao problema da utilização popular da pintura: pintura de intuitos apenas decorativos, ou pouco mais, filha, em regra, de uma série de compromissos de difícil libertação — eis o que, por agora, se nos oferece, tudo bem longe daquela arte francamente popular, esclarecedora e construtiva, para a qual a razão nos norteia. – Seara Nova, 11 janeiro 1947, reed. in Notas sobre uma Arte Útil, pp. 109-113.
O Almoço do Trolha é contemporâneo e foi pintado no Porto, «O quadro aconteceu porque, na realidade, era uma cena com que eu me deparava todos os dias, nos intervalos da pintura do mural do Batalha. De lá de cima, enquanto parava para fumar, espreitava cá para fora e via, todos os dias, as mulheres dos trolhas a levarem-lhes as marmitas e a partilharem com os maridos a refeição. Foi um quadro que me impressionou e passei-o para a tela.» – “Nem olhei para trás para pintar o mural do Batalha”, entrevista, 21-02-2008, Jornal de Notícias. Estava também por concluir quando foi apresentado na II Geral de Artes Plásticas e só foi terminado para a primeira individual de pintura, em 1950 na SNBA, já visto como uma obra de excepção (note-se o preço de catálogo: 10 mil escudos) e não foi ao Porto para a mostra seguinte na Galeria Portugália.
Era persistente a dúvida sobre a sobrevivência dos murais, várias vezes questionada depois de 1974. Em 2005/06 foi feita uma tentativa de desocultação dos frescos, mal conduzida e sem êxito, por iniciativa da Associação Comercial do Porto, num programa chamado Comércio Vivo financiado por compensações pagas pelo Grupo Amorim pela construção do centro comercial Via Catarina. A intervenção foi bárbara. Atravessando as camadas de tinta (o fresco e as posteriores aplicações de pintura que o ocultavam) encontraram-se apenas vestígios dos desenhos prévios (sinópias). Admitiu-se que os murais teriam sido eliminados, ou pretendeu-se que não eram mesmo frescos e desapareceram. Feita a «pesquisa» sem quaisquer condições de rigor, rasgaram-se grandes janelas em lugares centrais, antes da operação ser denunciada na imprensa e suspensa. O IPPAR veio fiscalizar a intervenção e produziu um incompetente relatório onde confirmava a impossibilidade do restauro por inexistência da superfície pintada. Errou também. O Batalha fechara em 2000. Reabriu entre 2006 e 2010. Voltou a arruinar-se.
Em 2016-17, por ocasião de um novo projecto de reabilitação do edifício, a realizar pela Câmara do Porto e a cargo dos arquitectos Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez (Atelier 15), considerou-se, com a participação do artista, o uso de meios fotográficos e de peças documentais para devolver à cidade a memória dos frescos. Mas, a seguir, uma empresa de restauro então convocada, Signinum, de Braga, fez novas pesquisas e alertou: «Após as diligências e dos trabalhos concretizados, é possível afirmar a existência do mural com elevado grau de correspondência com as fotografias a preto e branco do que seria o original, atribuído a Júlio Pomar». A informação não foi então divulgada, mas a recuperação foi incluída no orçamento das obras do Batalha. Do restauro se encarregou mais tarde a empresa Nova Conservação, de Lisboa, que descascou por processos químicos as camadas de tinta sobrepostas aos murais e propôs soluções técnicas para o preenchimento das lacunas existentes, algumas de larga dimensão e estas mediante a colocação amovível de superfícies de fibra de carbono revestida a resina com capacidade para receber pintura a aguarela. Tratar-se-á de «uma restituição gráfica fidedigna, dado que o desenho é impresso a laser sobre a resina a partir das imagens de Ernesto de Sousa, sendo o acabamento / policromia realizado a aguarela» (relatório técnico). A operação pôde acompanhar-se (e aprovar-se) em outubro e novembro, realizada com entusiasmo e competência, ao que julgo, e o agora designado Batalha Centro de Cinema inaugura-se em 9 de dezembro com os murais já visíveis.
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Agradeço informações e documentos comunicados por Isabel Alves, Paula Parente Pinto, Sónia Moura, e Maria João Revez e João Aguiar (Nova Conservação).
(1). Ver Maria Catarina V. Figueiredo, Patrimonializar as pinturas murais da cidade de Lisboa na época do Estado Novo, tese de doutoramento, Lisboa 2017 ( http://www.museologia-portugal.net/files/upload/doutoramentos/catarina_figueiredo.pdf ).
(2) Sónia Moura, Portugália, Um galeria moderna no Porto dos anos 40, tese de mestrado, Porto 2013 ( https://sigarra.up.pt/faup/pt/pub_geral.show_file?pi_doc_id=36782).
(3) http://ric.slhi.pt/Seara_Nova/visualizador/?id=09913.099.004&pag=7.
Posted at 18:38 in 2022, Júlio Pomar, Porto | Permalink | Comments (0)
Júlio Pomar. 1942-2018. Depois do neo-realismo
Apresentação ou Prefácio
Reuni neste volume textos de vários destinos e diversos temas, com predomínio do capítulo neo-realismo / novo realismo, mas alargando o horizonte até aos últimos anos da obra de Júlio Pomar, sem a pretensão de abordar todas as décadas, e foram oito... O neo-realismo é só o começo, muito referido quando se fala do artista, por fixação cómoda aos estilos colectivos, como uma marca indelével, que muitas vezes cega ou esconde, como se fosse um lugar fixo na história. Mas também acontece que ela, a história, é mal contada. É por isso de uma correcção de versões académicas e correntes que em grande medida por aqui se trata, propondo diferentes pistas. O neo-realismo não é o que dele se disse. Como exemplo, a abordagem de algumas obras então trocadas com outros artistas (Fernando Lanhas, Victor Palla, Mário Dionísio, João Abel Manta) serve de eloquente ilustração
Quase tudo aconteceu na obra de Pomar depois do neo-realismo, e por isso o título.
Nos anexos acrescentei 24 textos dispersos não incluídos nas recolhas publicadas em 2014 pelo Atelier-Museu - porque eram então desconhecidos. Prefácios para catálogos seus e de outros, uma palestra sobre o desenho e o pincel japonês («A mão contraditória»), apresentações, homenagens a amigos e lembranças de circunstância ou de oportunidade – desde 1947 a 2017, com uma gravação de ignoradas data e intenção que ficou a abrir a sequência por tratar da infância. E no segundo anexo publico a pouca correspondência com interesse que sobreviveu às mudanças da vida, sem ser coleccionada: cartas singulares da Galerie Lacloche antes da partida para França, dos amigos Mário Dionísio, Manuel Vinhas, Paula Rego, José Cardoso Pires, mais os extractos de duas dezenas enviadas aos filhos Alexandre e Vitor que percorrem os primeiros anos de Paris, e uma última escrita no Xingu. Outras cartas trocadas com Menez na viragem dos anos 70/80 já tiveram edição própria do Atelier-Museu: ficou a saber-se que a pintura não é produção fácil para alguns pintores e isso raramente se escreve (só em cartas privadas?) e menos ainda se divulga.
Destaco um primeiro texto analítico mais longo que abriu o volume I do Catálogo Raisonné, em 2004, onde identifiquei a Geração de 45, a emergência simultânea e cúmplice de jovens artistas em Lisboa e Porto no fim da 2ª Guerra, e a originalidade do neo-realismo português no contexto dos realismos sociais e socialistas do mesmo tempo internacional – e aí se seguiu também brevemente a mudança sequencial da obra até 1968, fim desse volume. A informação vinda das Américas e a atenção cosmopolita, fortalecida pela falta de qualquer tradição realista nacional e moderna que fosse reconhecida pelos novos, determinaram a excepção do caso nacional, que teve logo depois, para outros artistas de uma geração plural, derivas por surrealismos e «abstracções» próprias da época. Recordo também um muito anterior escrito polémico sobre a grande exposição Os Anos 40 (Gulbenkian, 1982), que sumariou questões críticas não desmentidas e teve uma decisiva consequência pessoal – fiquei comprometido nestes terrenos, e os reparos permaneceram a desafiar o status quo. Aliás, os anos 40 perduraram por várias décadas, a vários níveis. São a grande ruptura do século XX, pela actualização da informação, o contacto internacional e a aparição de grandes artistas modernos com longevidade.
A investigação sobre as referências internacionais presentes nos escritos da época e o inventário possível da biblioteca sobrevivente de Pomar, desde 1942 (16 anos), documentou aquela tese. A propósito, acrescento uma breve digressão internacional sobre realismos. Também é inédita a valorização de um segundo período do novo realismo de Pomar, já no início da década de 50, no contexto de uma renovada mobilização partidária que falava de Paz no tempo das Coreias em guerra, com diferentes relações francesas mas sempre com desejada independência estética. Este capítulo, o do Atelier da Praça da Alegria (dez anos depois do da Rua das Flores, ambos de grupo), quando Pomar condena o seu «desvio lírico», foi propiciado pela primeira apresentação pública da Marcha de 1952, o grande painel com o retrato (premonitório?) de José Dias Coelho, e fica prolongado até às obras maiores do Ciclo do Arroz. No que contesto a leitura de Mário Dionísio, depois de antes ter recusado a versão do neo-realismo estabelecida por José-Augusto França, esta com larga descendência escolar. Face à circulação habitual de informação em segunda mão, nunca escrutinada, é preciso ir às fontes com alguma minúcia.
A seguir abordam-se temas sectoriais, como os frescos do Batalha, agora com nova actualidade, a confirmar o seu lugar mítico sem paralelo, o desenho inicial e vindo de Caxias, a tapeçaria, a obra gráfica. E esclarecem-se momentos de afirmação colectiva que foram sendo vítimas de equívocos: a exposição de 1942, que não recobria paredes com folhas do Diário da Manhã, como passou a contar-se, seguindo um Vespeira tardio; os supostos «Passeios à Ribeira» antedatados e exagerados, outro mito; a dinâmica de uma afirmação geracional vibrante no imediato Pós-guerra (página «Arte», Missão Estética de Évora, Independentes do Porto, etc); logo as Exposições Gerais até 1956, a sua larga abrangência e o seu termo. Não se trata de empolar no espaço das artes plásticas a história do neo-realismo ou, melhor, do novo realismo, como logo passou a dizer-se. Foi em muito grande medida um episódio político e para alguns um breve caminho inicial, embora com obras desde logo reconhecidas e marcantes, em especial no caso de Pomar. Foi também a sequência nacional bem informada e possível dos realismos anti-fascistas internacionais dos anos 30/40, antes da sua deturpação às mãos de soviéticos e alemães, e da respectiva ocultação num Pós-guerra demasiado norte-americano. Paradoxalmente, ou não, é muito pouco exposto (é certo que há pouco para expor, em quantidade e qualidade) mas é demasiado falado, como um fantasma persistente.
Passando adiante no tempo, Depois do novo realismo..., abordo o que pode chamar-se a inspiração Pop, que se manifesta pelo final da década de 60, a seguir a indecisões no trabalho da pintura e destruições de quadros: fechava-se então um caminho vivido num contexto pessoal sempre sensível a mutações globais, que já tinha sido o de uma primeira ou mesmo segunda maturidade. Essa inspiração passa pelos Beatles (o ar do tempo), pelo ultimo Catch e os Rugby’s (a fotografia apropriada) e Maio’68, para seguir dos Banhos Turcos d’après Ingres aos Retratos, sempre sem ser a adesão explicitada a um estilo colectivo, que aliás a Pop não foi. Do interesse pela cultura popular ao diálogo com a arte dos museus, que vários Pop praticavam – em especial nas três magníficas natureza mortas a partir de Chardin, de 1976. Foi cedo testemunhado, mas discretamente, o interesse do artista pelo que de novo via em Paris (uma carta de 1965, duas entrevistas de 66): Rauschenberg e a Pop anglo-saxónica – embora falando mais de Matisse, que, aliás, também interessava aos novos pintores, Warhol, Wesselmann e Lichtenstein, que o citam com frequência. A reorientação foi da gestualidade em que as formas se dissolviam sem remédio para as superfícies recortadas de cores lisas, onde a figura se refaz, inteira ou fragmentada mas emblemática. Eram novos realismos. Antes de passar a outra «fase», erótica, mais austera parecendo o contrário, numa circulação rápida que fazia desorientar a apreciação crítica.
Os períodos dos Retratos das décadas de 70 e 80 têm uma rápida abordagem própria, a propósito da antologia que foi exposta no Atelier-Museu; houve muitos retratos desenhados no início da carreira e marcaram também o final, estes pintados, em geral retratos relacionais, cumplicidades. Passou-se do retrato-cartaz Pop (Viana e Almada) e da figura mais presente e íntima, a do retrato nu, tal como o auto-retrato, já depois dos dois notáveis retratos de cerimónia e encomenda dos 60, mais um livre por opção, para a liberdade lúdica do retrato literário, de imaginação e ilustração, a qual vai conduzir às figuras das mitologias, com que se configura um último e longo período tardio, que ainda foi interrompido e fecundado pelo encontro com os espectáculos brasileiros, Marcarados e Índios, 1987-90. Chegando ao presente, ao ritmo das exposições recentes do Atelier-Museu, a longa relação com a literatura, ilustração, pintura literária, pintura narrativa, contra os tabus do tardo-modernismo formalista (essencialista também), é questionada em «Ver histórias, ler quadros». Reflexão que deu origem à proposta da exposição seguinte, para rever ficções e mitos que não seguem livros e inventam enredos, a produção mais tardia, pouco conhecida. Num tempo derradeiro de pintar a «Comédia Humana» que Helmuth Wohl baptizou em 2004, e que se apresentou no Atelier-Museu em 2022 como «Pintura de Histórias», e de História, onde incluímos a permanência de D. Quixote e memórias da Amazónia, quando também aconteciam retratos dos amigos no retorno do pintor a Lisboa e convívios com o Fado.
O alinhamento segue a cronologia dos temas, não a das publicações, e todos os textos, quando não são inéditos, foram alargados, revistos, actualizados e anotados, mais ou menos profundamente. Não é a edição original, por vezes jornalística, que aqui importa, a qual pode ser consultada nos sites/sitios próprios, mas sim o estado presente das questões tratadas – em certos casos raros acrescentei adendas e alterações entre parêntesis rectos quando se mudaram opiniões vencidas respeitando a prosa anterior. Há informações que por vezes se repetem em textos diferentes, para sistematizar a informação, mas a leitura do volume não será corrida e deve ser segura, sobre factos e referências. Cumpre agradecer convites para colaborar em edições várias, a Joaquim Vital das Éditions de la Différence, a António Redol e à directora do Atelier-Museu Júlio Pomar, Sara Antónia Matos, para além do que foi como ponto de partida trabalho no Diário de Notícias e no Expresso.
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(A segunda parte militante da década neo-realista de Pomar (1945-1955). Das gravuras políticas ao Ciclo do Arroz)
Nunca exposto até agora e nunca antes referido, embora incluído em 2004 no Catálogo Raisonné graças à memória do artista, Marcha é uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospectivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela PIDE em 1961. Reconhecível entre as figuras do casal que avança em primeiro plano, ocupa um lugar central correspondente na época à sua posição como activista que animava as intervenções dos artistas do PCP nos primeiros anos 50 (ou seria mesmo o seu informal controleiro, um controleiro não sectário, segundo me disse Júlio Pomar). Em 1955 trocou a carreira artística reconhecida pela passagem à clandestinidade como responsável por uma oficina de falsificação de documentos.
A condição política da pintura, obviamente partidária, que justificava a sua ocultação, relaciona-a com as campanhas pela paz que o PCP promovia nos anos 1949-54, ao tempo da Guerra Fria e da guerra quente da Coreia. Mobilizavam-se acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares, aprovado em 1950, e em especial contra a reunião do Conselho do Atlântico, em Fevereiro de 1952 no Instituto Superior Técnico, depois de a adesão portuguesa à NATO ter sido ratificada em Julho de 1949 – acontecimento e movimentações que vinham abrir brechas nas dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária, separando comunistas e democratas.
Em 1952 Marcha tinha de ser uma obra clandestina: era o lado soviético de uma trincheira paralegal, animada num atelier e tertúlia activos em período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Ruy Luís Gomes (em 1949 e 1951, respectivamente). Naquele ano a SNBA foi fechada e interrompeu-se a sequência das Exposições Gerais, por Eduardo Malta ter sido expulso de sócio devido a um conflito público com Dias Coelho. Era também o tempo da polémica interna do neo-realismo, em torno da orientação da Vértice, por efeito de um «desvio sectário» que fracturava os meios intelectuais, com um PC debilitado por muitas prisões. Depois, com a morte de Stalin e o relatório de Khrushchev, viria o chamado «desvio oportunista de direita», de 1956-59, a seguir «corrigido» pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961, sempre segundo a dramática pequena história ziguezagueante do antifascismo. Razões de segurança e o ocaso do neo-realismo mais militante, bem como prováveis opções pessoais, podem explicar que Marcha seja uma pintura nunca divulgada antes e também depois do 25 de Abril. O artista nunca a procurou incluir nas suas antologias e a iconografia de Dias Coelho e do PCP nunca a recuperou.
Mesmo que a condição panfletária venha dificultar a classificação como «obra-prima», este é um quadro maior, e não só por coincidirem a ambição do assunto e o grande formato, inédito à época. O encontro entre o manifesto político e o retrato de grupo, de um momento e local bem precisos (o atelier da Praça da Alegria, como veremos), concede-lhe uma verdade prática e uma intensidade emotiva que é fusional com as qualidades formais que o fazem seguramente uma das peças mais marcantes do neo-realismo, que aí se identifica com o campo alargado do realismo socialista embora sem concessão académica. É uma obra bem representativa de um tempo político e suas contingências, é uma peça única na carreira do pintor (apesar de renovar o programa da primeira Marcha de 1946, e de antecipar o Maria da Fonte de 1957, numa idêntica linha de pintura de história), e é decisiva para rever a carreira neo-realista de Pomar.
De facto, Marcha vem exigir uma nova abordagem da década neo-realista de Pomar – de 1945 a 1955 –, e ilumina uma segunda metade incompreendida e ocultada por opções mais políticas que de razão crítica. Reapreciando agora esta obra de 1952, e outras próximas, é possível contrariar a desvalorização desse período (mesmo que depois tal tenha sido por vezes aceite pelo artista), e partir daí para rever a história habitual do movimento, estabelecendo uma divisão em dois períodos diferentes, em especial quanto à obra do seu principal animador, intérprete e crítico.
O primeiro, após o fulgor inicial, 1945, tendeu a tornar-se sentimental e formalista, numa série apreciada de famílias, maternidades e meninos que se associa à situação pessoal do pintor e pai (mas note-se que a Varina comendo melancia de 1949, obra que ficou em sua casa, retomava a imprevisibilidade formal da Mulher com uma pá daquele ano, trocada com o amigo Fernando Lanhas, “que era com quem eu melhor me entendia no ramal das artes” - escreveu em 2003 (Temas..., p. 236) -, apesar da divergência política). O segundo período, a partir de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951, recupera a firmeza austera de um realismo social interventivo, seguramente sensível ao debate estético chegado de França, mas com independência; o artista fez nesse ano a primeira viagem a Paris e aí encontrou Pignon, Fougeron e Taslitzky, mas não deixou testemunho do que viu, apenas referências aos nomes. Algumas obras-chave ficaram a marcar aquela nova orientação e Marcha é a sua bandeira. No mesmo ano Mário Dionísio publicava na Vértice os seus Encontros em Paris, onde dialogava com muita reserva com os três pintores referidos, e em 1952 deixou o PCP, na sequência do conflito sobre as colaborações de comunistas na revista Ler, das Publicações Europa-América.
É conhecido o conflito então aberto entre os dois artistas e teóricos do neo-realismo, que veio a ser registado por Dionísio muitos anos depois, sem a reconsideração do que o tempo mudara:
Quando em 52 vários escritores saem desse mesmo Partido, por discordâncias várias que se ligam também, e muito, a problemas ideológicos no domínio da arte, ele fica. E, como fica, tem de esforçar-se por seguir novos ideólogos, um deles, por sinal, de conversão recente, cuja visão é tão obcecada quanto curta. E conhecida [?]. Seguir sem discussão o exemplo da URSS e os conhecidos mandamentos jdanovistas: representação de cenas, colhidas in loco, de trabalho e luta (ainda que a não houvesse senão como desejo) numa linguagem de pronto a todos “acessível”. Ou seja, um naturalismo impossível de refazer no nosso século e por isso dessorado. Como toda a gente (hoje) sabe, incluindo o Partido em questão. E na URSS também, ou muito em vias disso. Foi um momento de “recuo” na linha evolutiva da obra de Pomar.
Foi o que escreveu no ensaio “O último baluarte” que abre o álbum monográfico Pomar, Publicações Europa-América, 1990, p. 24. Em Passageiro Clandestino I. 1950-1957, os diários de Mário Dionísio, o corte é referido com veemência: “O correio que hoje me trouxe o Comércio do Porto com um artigo do sr. Pomar - uma das várias serpentes que ingenuamente abriguei no meu seio” (p.. 112). Interrompia-se aí uma cumplicidade que vinha de sempre, o que justificaria, quinze anos depois, já em Paris, o título do artigo-entrevista «Reencontro com Pomar» (Diário de Lisboa, 02.03.67). E foi a opinião, com referência directa ao «ciclo do Arroz», notoriamente ditada pela circunstância da conflitualidade partidária e por certo errada em termos da avaliação crítica, que prevaleceu nos sumários históricos.
De facto, a reconsideração do movimento neo-realista e a explícita autocrítica presentes no artigo de Pomar publicado em 1953 n’ O Comércio do Porto (e não na Vértice como era mais habitual) não eram uma cedência circunstancial à pressão partidária, mas foi muitas vezes como tal interpretada. Escrevia Pomar:
As razões desta fragmentação [no seio da corrente ou tendência do “realismo social”] devem procurar[-se] na evolução dos acontecimentos da vida portuguesa, no cair das ilusões que uma interpretação apressada das consequências da II Guerra Mundial ajudara a criar.
Entre aqueles que se afirmavam dentro dos princípios da corrente, alguns perigosos caminhos começaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a substituir a agressividade dramática das primeiras tentativas. A procura de soluções formais começa a sobrepor-se ao vigor de conteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemas realmente vivos. Boa parte do que pintei nos anos de 49 a 51 oferece tais características, e desvios de tipo análogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio.
Tinham-se aberto «as portas ao maneirismo e ao formalismo e, em último grau, à renúncia dos objectivos abraçados com entusiasmo» (Júlio Pomar, «A tendência para um novo realismo entre os novos pintores portugueses», reeditado em Notas..., pp. 287-288.
Porque foi este o seu último artigo publicado na imprensa, à época, ficou sempre por esclarecer.
QUEM É QUEM
Veja-se então a pintura. Marcha, entendida como retrato de grupo, identifica sem o representar expressamente o atelier da Praça da Alegria (antigo atelier que já fora de José Malhoa), alugado e chefiado pelo escultor Vasco Pereira da Conceição, militante e ex-preso político, que se reconhece a entrar em cena pelo bordo direito do quadro. Aí trabalhavam também Maria Barreira, sua mulher, certamente referida pela Maternidade, na direita baixa, que é um tema comum na escultura do casal, sem filhos. Mais Júlio Pomar desde 1949 (ou 51?) e às vezes José Dias Coelho e Maurício Penha, mais tarde talvez Alice Jorge. Era lugar de trabalho e também de tertúlia artística e política, onde se conspirou a oposição à NATO e que uma testemunha agora ouvida aponta como uma espécie de antecâmara das Exposições Gerais de Artes Plásticas, em cuja organização participavam então activamente Dias Coelho e também Pomar, que as acompanhava assiduamente na imprensa.
No friso de retratos, ao lado do casal em primeiro plano, está o engenheiro Frederico Pinheiro Chagas, amigo e visita assídua do atelier, cúmplice e proprietário de sempre da obra, e logo ao lado, com o único rosto frontal, vê-se a sua mulher, Dina. Um dos rostos do par heróico de jovens militantes que avança de mão dada, encabeçando a Marcha, guiando o povo segundo uma tradição revolucionária que se partilha com os códigos das apologéticas religiosas, teve por modelo o carpinteiro Francisco Bento, militante libertado da prisão pouco tempo antes, que frequentava o atelier e realizou mobiliário para vários camaradas. A figura feminina permanece por identificar, apesar do inquérito tentado. Uma foto sobrevivente de um estudo desenhado e a possível pista de um busto contemporâneo (Zita) não ajudaram. De Pinheiro Chagas existe também um rigoroso retrato, de desenho neo-clássico. Falta identificar, igualmente, a menina à esquerda, que será alguém em particular e talvez agora alguém se reconheça – a «presença» realista dos modelos, retratos e não figuras «abstractas» ou idealizadas, vem adensar a força mobilizadora do manifesto.
A alegoria tem mais dois pólos laterais, simétricos: a figura da Maternidade à direita, como emblema de futuro, e o estranho personagem visto obliquamente de costas, à esquerda, um (falso) profeta, um velho frade?, vendedor de ilusões, que aponta para uma cidade em versão futurista, em construção, com guindastesn e personagens hieráticos (robotizados); ao fundo, montes áridos e nuvens pesadas. De um lado, as ilusórias promessas do presente, do outro a infância e outros amanhãs. Na metade direita, por trás do friso das figuras, está uma alongada parede ou casa vermelha, que toma o lugar de uma (im)possível bandeira. Também se pode reconhecer ou adivinhar aí, mesmo em cima à direita, uma praia, o céu limpo e um barco, amarelo e azul, que rimam ou se repetem em primeiro plano a rasgar de luz o ventre e o vestido azul da mulher – e este é um inesperado elemento de composição com eficácia moderna que rompe o plano superficial da tela. Todo o alongado primeiro plano – as voltas do xaile da mãe, o fato-de-macaco, as pregas do vestido que se abrem, as dobras do traje do velho – é uma construção sequencial de espaços articulados e dinâmicos.
O atelier da Praça da Alegria, n.º 47, situado entre o Maxime e o Hot Club recém-fundado, ao lado de uma leitaria (Flor da Alegria – fotografada como lugar de tertúlia na revista Eva de Março de 1955), era também frequentado por escritores: José Cardoso Pires, com os primeiros livros e intensa actividade política, que aí conheceu em 1954 a sua mulher, Edite, irmã de Vasco da Conceição, por ocasião do retrato que Pomar pintava, sendo ela retratada por Alice Jorge no ano seguinte; Orlando da Costa, que aí levou Maria Antónia Palla; Alexandre Cabral, amigo do engenheiro, o arquitecto Manuel Tainha e outros mais do círculo político e neo-realista 2.
Para o grande formato de Marcha, único ao tempo – 122 × 199 cm, a têmpera sobre aglomerado, ou masonite –, Pomar usou uma placa da mesma série de três outras alargadas tábuas que pintou para o restaurante Vera Cruz, na Avenida da Liberdade, projecto de Victor Palla e Bento d’Almeida, com quem Pomar mantinha frequente colaboração (elas passaram depois para o restaurante Tarantela, no largo da Estefânea, e dispersaram-se nos anos 90 - Catálogo Raisonné nº 83 a 85; o maior vê-se na Tranquilidade). A vocação decorativa de referência brasileira realiza-se aí com soluções de pintura mural, o que também sugere a Marcha.
Afastado do ensino em 1949, sem outro emprego regular, as encomendas decorativas (não oficiais) substituíam a pouca pintura que se fazia, quase restrita às participações nos três salões anuais da SNBA, e que menos ainda se vendia. À época «produz pouco, absorvido principalmente por trabalhos alimentares», anotou na cronologia crítica que escreveu para a sua primeira monografia editada em Paris (Julio Pomar, Art Moderne Internationale, 1981, p. 48). Algumas ilustrações para editoras de amigos, mal pagas, e a produção de cerâmicas no Bombarral, depois nas Caldas (antes que a circulação das gravuras pudesse financeiramente substituí-la) preenchem anos lembrados como muito difíceis.
ANTES E DEPOIS DA MARCHA
Como disse atrás, Marcha vem proporcionar uma nova leitura sobre a primeira metade da década, o que implica corrigir estudos anteriores. É um período intranquilo e, sem dúvida, de produção irregular ou mesmo desequilibrada, em que facilmente se passa do melhor ao pior, em que há ensaios em direcções contrárias e onde o que há de continuidade e renovação se vai abeirar do seu fim, de 1951 até 1955, quando o neo-realismo acaba em pintura, embora possa prosseguir nas gravuras. Não por acaso, a mostra individual de 1950 (na SNBA, e na Livraria-Galeria Portugália do Porto no início do ano seguinte) só em 1962 terá sequência (Galeria Diário de Notícias), já com Tauromaquias e cenas que continuam a ser de trabalho (Sargaço, Pisa, Debulha, Chegada - de pescadores) mas de que está ausente o programa neo-realista da leitura e mensagem acessível para todos: «A escrita toma uma aparência mais livre, rápida, gestual», «os temas que se impõem ao pintor são os que naturalmente apelam a uma figuração descontínua, fragmentária, repetitiva» (da mesma cronologia, p. 48). É um longo hiato na apresentação pública e uma mudança radical da obra, uma primeira maturidade.
Nesse longo intervalo, no entanto, havia a presença regular nas colectivas periódicas, e de trás vem ainda a exposição de desenhos, aguarelas, gravuras e cerâmicas, apresentada em 1952 na Galeria de Março que José-Augusto França dirigia, e de que pouco mais se sabe do que a divisão em três tópicos, num catálogo prefaciado por três poemas de Alexandre O’Neill: «Os Animais Sábios» (o bestiário, e o humor), «As Imagens de Paz» (onde alguns nus femininos se prestaram a reparos, tal como já sucedera com os da primeira mostra de desenhos, em 1947 – «Pomar compraz-se sobretudo em sentir a deliciosa canção das linhas que melodicamente reconstroem o mais tépido e macio de um corpo jovem de mulher», criticou o então muito ortodoxo Lima de Freitas, Vértice, n.º 113, Janeiro 1953, p. 62) e «Monstros e Homens lado a lado» («expressão simbólica ou naturalista dos problemas humanos», segundo o também pintor José Júlio, Ler, n.º 10, Janeiro 1953, p. 19).
Na antologia de 1986 (itinerante no Brasil e vista no Centro de Arte Moderna) saltava-se de 1951 para 1960. Na retrospectiva de 1978 (Gulbenkian, Museu Soares dos Reis e Bruxelas) tinham entrado onze obras da década de 40 e duas da de 50: só Mulheres na Lota (Nazaré), que ficara na casa de Lisboa com Alice Jorge, e o Ciclo do Arroz II. Tempo de crise, de escassa produção, e apagamento de memórias.
Há então que fazer uma nova escolha de obras maiores desses anos, as quais se devem reconhecer como isoladas, desacompanhadas: Marcha (a surpresa da actual exposição dedicada ao retrato) é precedida por essas Mulheres na Lota, de 1951, e é seguida por Os Carpinteiros (a bicicleta era muito usada pelos funcionários clandestinos) e pelos dois maiores «estudos» para o ciclo «Arroz», de 1953, e logo em 1954 pelo retrato de Cardoso Pires. O maior empenhamento político renova o programa realista e assume uma condição formal austera, de figuração nítida e construção vigorosa, trocando a fluência decorativa e a idealização das máscaras pela prática da observação, em geral com apoio fotográfico conhecido. «1953 – Período marcado por um naturalismo contidos [retenu], sem nunca cair nas convenções do realismo socialista», sempre segundo a cronologia estabelecida pelo próprio (idem, 1981, p. 48), acertadamente.
Para trás tinham ficado duas importantes telas gémeas de 1951, Meninos no Jardim (ou O Eixo Corrido) e Vendedoras de Estrelas, da colecção Jorge de Brito, muito mostradas e apreciadas, sedutoramente maneiristas. Foram expostas na VI EGAP e certamente incluídas na extensa representação nacional enviada à II Bienal de São Paulo, em 1953, que foi um episódio de excepção agenciado por Diogo de Macedo com a Galeria de Março de José-Augusto França, favorecido pelo contexto das comemorações do IV Centenário da cidade 3.
As novas urgências da intervenção partidária afirmaram-se com clareza numa série de gravuras dedicadas ao tema da Paz, que tiveram grande difusão e marcaram presença nas casas de todos os intelectuais de feição comunista, distribuídas pela SEN (Sociedade Editora Norte, Porto), pouco depois encerrada. À linogravura Mulheres Fugindo, que se chamou A Explosão e foi conhecida como A Bomba Atómica, seguem-se no mesmo ano as litografias em que figura a pomba proposta no cartaz de Picasso para o Primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz de Paris, em 1949, como emblema da causa, com referência à filha Paloma: três versões de meninas com pombas e o remake do Almoço do Trolha na versão A Refeição do Menino (ou Família). Com a incisiva edição de As Mães, quatro gravuras foram também enviadas à alargada mostra de São Paulo.
Marcha nunca foi exibida, e são de facto os dois Estudos para o ciclo “Arroz” que polarizaram o comentário (ou o silêncio) sobre esse tempo. Mário Dionísio continuou sempre a opor-se, com uma veemência que deve ser reconsiderada:
“E o que é o ‘ciclo do arroz’? Uma desesperada tentativa [...] São óleos de camponesas ceifando, bebendo água, de que a pintura anda longe. Aquela, pelo menos, que ao artista certamente interessava. São sobretudo duas grandes composições – ‘Ciclo do Arroz’, I e II –, onde o desenho fechado leva a melhor, a pincelada a si mesma se disfarça, como sentimentalmente pareceria convir à gravidade do assunto: mulheres vergadas para a terra manejando enxadas, numa das composições, mulheres, na outra, indo para ou regressando do trabalho em fila indiana, sóbrias, quase rígidas, com a fixidez de instantâneos em pose. Mas manejavam as enxadas? Mas caminhavam? A arte aqui está mesmo no limite de ser apenas meio. A velha história das boas intenções que nunca bastam» (op. cit., 1990, p. 50).
O artista disse depois outra coisa, “um naturalismo contido [retenu, tenso], sem nunca cair nas convenções do realismo socialista», 1981, e depois:
«Vemos aqui a presença do pintor muito mais neutralizada, o quadro a abeirar-se de um realismo fotográfico. Nele houve, voluntariamente, a adopção de uma linguagem a que na altura chamaríamos objectiva. A proximidade da fotografia (de resto foram utilizados documentos fotográficos) é muito grande. No entanto, sob a pretensa objectividade da representação, há uma arquitectura íntima, um jogo de formas nítidas que não anda longe de certas marcas futuras da minha pintura» (Entender a pintura n.º 4, Arte Ibérica, entrevista de Alexandre Melo, 1998, p. 8):
Acontece também que a produção militante de Pomar é acompanhada no mesmo ano da Marcha por obras de feição bem diversa e numa direcção inédita na sua produção, cinco paisagens, numa situação que reflecte uma manifesta pluralidade de interesses – mas nenhum destes pequenos quadros singulares terá sido exposto no seu tempo próprio. Exercício paralelo mas confidencial, exibem experiências sensíveis e liberdades de pintura, que, tal como um curto texto sem título publicado só em Paris, desmentem o gosto por ortodoxias:
«Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. O métier de pintor é um trabalho de pesquisas, de descobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que nascem da vida e a ela retornam» (in Premier bilan de l’art actuel, Le Soleil Noir. Positions, 1953, n.º 3-4, p. 314).
São paisagens das Azenhas do Mar (em férias familiares), da Ericeira e incertamente de Lisboa, datadas de 1952 e 53. Sem outro programa que a curiosidade de pintar, elas circulam da observação à imaginação, à beira da estranheza irrealista de formas e cor. A paisagem foi sempre rara mas iria regressar em 1955 num breve ciclo desenvolvido com dificuldades e pouco êxito quando o pintor se muda para um andar elevado da Rua da Alegria com uma larga vista sobre a cidade.
RETRATOS, RETRATOS
A disciplina do retrato era à época recomendada ou imposta pelos partidos comunistas em tempos de grande pressão do culto da personalidade, designadamente em França, de onde chegava então a informação predominante, via Arts de France (aí surgira em 1949 a «Tribune du Nouveau Réalisme» e a revista desaparece em 1951, vítima do seu sectarismo). A pintura de história também se impunha, mas só podia ser escassa entre nós. Alguns episódios polémicos tiveram retratos por pretexto (foi famoso o caso do Stalin de Picasso, nas Lettres Françaises, à data da morte...), num período em que o combate aos realismos, depois dos rigores nazis e soviéticos, fazia parte do enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Picasso continuaria a retratar livremente, depois os realistas ingleses independentes Freud e Bacon, e a seguir a geração Pop de Hockney e Kitaj, entre os maiores, iriam reafirmar a centralidade, pelo menos a permanência, do retrato na arte do século XX – Bacon e a POP anglo-americana influenciaram directamente Pomar, já em Paris.)
À volta dos retratos pode desenhar-se um mapa habitado da época, e os livros então ilustrados por Júlio Pomar traçam o horizonte das suas relações literárias marcadas pela cumplicidade política e pessoal: Carlos de Oliveira (retrato na edição especial de Colheita Perdida, colecção «Sob o signo do galo», Coimbra, 1948); Sidónio Muralha e Cardoso Pires (desenhos de 1949 e 50); ilustrações para Alves Redol, Raul de Carvalho e Ferreira de Castro (1949) e Alexandre Cabral (1955); retratos desenhados de Mário Dionísio, José Fernandes Fafe, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, Orlando da Costa (para as tiragens especiais de 40 exemplares da colecção Cancioneiro Geral do Centro Bibliográfico, 1950-1953). As grandes encomendas de ilustrações para a Fólio (dirigida por Victor Palla e Cardoso Pires), Sul (de Castro Soromenho), Realizações Artis (de Rogério de Freitas e Leão Penedo), Bertrand, Minotauro (Urbano Tavares Rodrigues), Cor (direcção de José Saramago) e Portugália (Augusto da Costa Dias) virão depois, entre 1956 e 1967.
Em escultura Pomar retratara a sua mulher, Maria Berta Gomes, em 1949 (que também surge como modelo em várias pinturas – Resistência e Marcha), e igualmente os escritores Sidónio Muralha, 1950, e António Navarro, 1951, três obras presentes na actual exposição, mais Armindo Rodrigues, 1951, ficando por aí o número das peças não convencionais. Conhecem-se apenas mais quatro «cabeças», duas de amigos (Ana Moura, mulher de Rui de Moura, depois editor da Prelo) e Joaquim Barata (fundador e gerente da Gravura) e duas outras perdidas (Zita e Liliana, 1951), talvez de encomenda. À escultura só voltará com os ferros soldados associados ao ciclo Dom Quixote, em 1960.
Fez também, em 1954, os retratos pintados de Cardoso Pires e Maria Lamas (esta detida pouco antes, no regresso de Moscovo, e o quadro foi exposto na VIII Geral apesar do contexto repressivo), a que se acrescentam os de Vera Azancot (1954, de encomenda), Alice Jorge (1955, com quem então vivia), Maria José Salvador (1956, mulher de Manuel Torres, amigo para sempre, companheiro das viagens de carro a Espanha e França, e fundador da Gravura).
Ampliando o horizonte a outros artistas, sabemos que, por seu lado, José Dias Coelho, que entrara no mesmo ano de 1942 na Escola de Belas-Artes de Lisboa, apresentou nas Gerais retratos de Rolando Sá Nogueira, 1949; Margarida Tengarrinha, 1950; Alves Redol, 1951; Maria Eugénia Cunhal, 1953; Maria Isabel Aboim Inglês, 1954, entre outros não nomeados. Realizou também os bustos de Fernando Namora e do designer Tomás de Figueiredo. O retrato teve sempre uma forte presença nas Exposições Gerais. Tomando por guia o catálogo Um Tempo e um Lugar (Museu do Neo-realismo, Vila Franca de Xira, 2005 - ver adiante), referem-se ou reproduzem-se obras de Abel Manta (Bento Caraça, 1947), Sá Nogueira (Frederico George e Jorge Vieira de c. 1949), Maria Keil (Abel Manta, 1949), Vasco da Conceição («cabeças» de Maria Barreira, Sidónio Muralha e Lopes Graça, 1948-50), Victor Palla (Cardoso Pires, 1951), Mário Dionísio (Joaquim Namorado e a filha Eduarda, 1953), Lima de Freitas (Alves Redol, 1953, Cardoso Pires, 1954), Alice Jorge (Edite Cardoso Pires, 1955), e também de João Abel Manta (Aquilino Ribeiro, 1940?), Arlindo Vicente (João Gaspar Simões, s/d), José Farinha (Alves Redol, s/d), Euclides Vaz (Celestino Alves, 1949), entre outros retratos indicados sem nome dos modelos. O retrato dos retratos desses anos incluiria boas surpresas.
Publicado no catálogo O Desenho impreciso de cada rosto humano, reflectido! Retratos de Júlio Pomar, pp. 146-156, com tradução inglesa, ed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta, Dezembro 2021 (a exposição decorreu de 22.10.2020 a 28.02.2021). Revisto e aumentado.
1 Marcha, 1952, têmpera sobre aglomerado, 122x199 cm - n.º 86, pp. 84-85, do Catálogo Raisonné I, Editions La Différence / ed. Artemágica, Paris, 2004. Catálogo Atelier-Museu, pp. 144-45.
2 Agradeço a Margarida Tengarrinha, Edite Cardoso Pires e Maria Antónia Palla as suas memórias do atelier da Praça da Alegria, bem como as ajudas de António Redol, Teresa Dias Coelho e Ana Cardoso Pires.
3 Delegação organizada pela Comissão Portuguesa das comemorações do IV Centenário da cidade catálogo: https://issuu.com/bienal/docs/name24c514/31. “Artistas modernos portugueses na II Bienal do Museu de Arte Moderna de S. Paulo - Brasil / [organizado pelo Secretariado Nacional da Informação]. [Lisboa : S.N.I., 1953-1954]. Ver Gerais
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OS LIVROS DE JÚLIO POMAR:
ITINERÂNCIA DA LEITURA, ESCRITA, PINTURA
05 julho 2021 – 10 outubro 2021
Curadoria: Mariana Pinto dos Santos
Não é para contar estórias que tu escreves ou eu pinto.
A estória é o que deitamos na panela a amornar nas cinzas
onde inesperado sopro lhe levantará fervura.
А cozinha é а cozinha сomo uта rosa é uma rosa,
querem coisa mais simples?
Júlio Pomar, Assim trabalho eu, 2004
“Desde cedo, Júlio Pomar estabeleceu uma relação entre a sua pintura e a literatura que lia ou que os seus amigos ou contemporâneos escreviam, traduziam, editavam. Num texto sobre Cardoso Pires, escreveu que «literatura e arte eram coisas perfeitamente indissociáveis». Não só fez várias capas de livros, como também desenhou e pintou variadas obras literárias.
Muitos dos seus trabalhos não “ilustram”: não querem iluminar ou revelar a obra literária com que se relacionam, mas sim continuá-la por outros meios. São «variações», para usar um termo do artista.
Os livros, as pinturas e os desenhos nesta exposição mostram os itinerários de Júlio Pomar entre a leitura, escrita e pintura, considerando a leitura como etapa primordial, um pre-texto para a pintura. A relação entre texto e imagem é sublinhada pela transcrição nas paredes do AMJP de excertos de algumas das obras literárias ou poéticas que os seus trabalhos evocam, numa intervenção visual do artista Horácio Frutuoso.
Propõe-se uma exposição antológica dos livros de Júlio Pomar, entendidos num sentido lato: os livros que fizeram parte do seu imaginário pictórico, os livros que pintou/desenhou, os seus livros e edições de artista, e os seus escritos poéticos e sobre pintura.
Entre as obras de Júlio Pomar apresentadas, poder-se-ão ver exemplos das que abordam os temas de D. Quixote e Ulisses, duas das suas que relações literárias mais duradouras e profícuas, mas também as que derivam de obras de Cardoso Pires, Ferreira de Castro, Tolstoi, Aquilino Ribeiro, Maria Velho da Costa, Malcolm Lowry, Jorge Luís Borges, Castro Soromenho, Eça de Queiroz, Dante, Carlos de Oliveira, Lewis Carroll, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Richard Zimmler, entre outros, incluindo desenhos e pinturas inéditos. Através do percurso aqui proposto desenha-se também uma trama na qual se vislumbra, por via da relação entre o literário e o pictórico, uma história cultural e política, pessoal e colectiva.” MPS / AMJP
Na foto: “Navio Negreiro”, 2005-2012 (a partir de D. Quixote); ilustrações para Terra Negra, de Castro Soromenho; ilustrações para A Selva, de Ferreira de Castro (col. Ilídio Pinho)
Posted at 10:51 in 2021, Atelier-Museu Júlio Pomar, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
nº 1:
Posted at 01:31 in 2021, Atelier-Museu Júlio Pomar, Galeria 111, Júlio Pomar | Permalink | Comments (0)
A que informação internacional podiam aceder os muito jovens artistas que apareciam em 1942 numa colectiva de atelier em Lisboa e a partir de 1943 nas Exposições Independentes, no Porto? E em particular de que fontes dispunha Júlio Pomar no contexto da afirmação neo-realista de 1945, ao tempo da página “Arte” e da IX Missão Estética em Évora, e das primeiras Exposições Gerais na SNBA, desde 1946? Eram os tempos da II Guerra e do pós-guerra, mas não eram anos de isolamento, pelo contrário, e a atenção ao exterior é uma marca constante do meio das artes nacional, forjada na falta de fortes tradições próprias e fixações identitárias. Numa Lisboa que se pretendia neutral, a propaganda dos Aliados estava bem presente, a concorrer com os ventos do Eixo. Propaganda era ainda uma palavra que não se distinguia de Informação, e a que chegava a Lisboa nos anos de guerra incluía a frente cultural, que desde a década de 30 assumira uma forte dinâmica anti-fascista, e não só nas diferentes modalidades dos realismos nacionais. As questões da Guerra Fria, que a partir de 1947 iriam romper o espaço aliado, ainda não se faziam adivinhar.
1. Em diversas ocasiões Júlio Pomar referiu-se à informação que conheceu nos primeiros anos de formação, localizando-a em especial na biblioteca da Academia Nacional de Belas-Artes, que era então acessível aos estudantes e para onde fugia às aulas na companhia de Vespeira: «Ia para a Ribeira ou à biblioteca da Academia de Belas Artes, ao lado da Escola, onde consultava as edições recentes do MoMA de Nova Iorque, recebidas no meio da avalancha de publicações de propaganda que os Estados Unidos despejavam sobre Portugal durante a Segunda Guerra» (Júlio Pomar, E Então a Pintura?, Publicações Dom Quixote, 2002, p. 42). Eram também frequentadas as bibliotecas norte-americana e britânica, e finda a Guerra chegaram revistas da esquerda francesa distribuídas com o carimbo das recentes Publicações Europa-América (desde 1945).
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Posted at 23:32 in 2020, Júlio Pomar, Neo-realismo | Permalink | Comments (0)
O primeiro tomo do diário de Mário Dionísio, intitulado «Passageiro Clandestino» e até agora inédito, escrito intermitentemente a partir de 1950, e a continuar com mais 4 tomos até 1989, foi apresentado no dia 25 de Abril na Casa da Achada (é o volume 11 e 11a da Colecção Mário Dionísio). Esta primeira publicação vai de 1950 a 1957 e é acompanhado por um maior tomo de notas, da autoria de Eduarda Dionísio.
São 230 páginas o 1º vol., com uma breve justificação da Eduarda para a edição do Diário que MD deixou incompleto ou irregularmente escrito e reescrito por volta de 1977. E mais 516 páginas do 2º vol., a que correspondem 809 notas e índice de imagens, num exaustivo ou ciclópico trabalho de pesquisa, transcrição de textos e informação sobre os nomes, edições, espaços, assuntos e acontecimentos que MD vai referindo e que se documentam graças ao arquivo e ao acervo da Casa da Achada-Centro Mário Dionisio. Uma espécie de wikipedia pessoal, bem sistematizada, que se enfrenta como um animado puzzle ou, melhor, que se percorre como uma floresta feita de muitos trilhos e lugares. É um mapa de relações políticas e em especial literárias e artísticas, também biográfico sem derivas mundanas, sobre o fundo neo-realista dos anos 40-50, e da "polémica interna" da revista Vértice de 1952-53, vivido com a ortodoxia austera de um heterodoxo (ou a heterodoxia de um solitário ortodoxo). 2 livros por 30€, ou 25 para Amigos, à venda aqui: http://www.centromariodionisio.org
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Posted at 19:41 in 1952, 2021, Júlio Pomar, Mário Dionísio, Neo-realismo | Permalink | Comments (0)
Tags: 1952, 1953, Júlio Pomar, Marcha, Mário Dionísio, Neo-Realismo, Polémica Interna
'Taberna' e ‘Café' são dois quadros de 1944, do tempo em que JP viveu no Porto, e que deveria ter sido possível voltar a reunir na antologia dos retratos mostrada no Atelier-Museu. Dois auto-retratos de grupo. Os primeiros.
'Taberna', com apenas 22,8 x 45,3 cm, nunca voltou a ser exposto depois de em 1945 ter incluído a 1ª Exposição de Arte Moderna dos Artistas do Norte, organizada pelo SNI no Museu Soares dos Reis (última participação numa iniciativa do regime). Pertenceu durante muito tempo ao arq. e pintor Rui Pimentel, que então assinava ARCO, iniciais de Artista Comunista, expositor das Independentes e das Gerais.
O 'Café', com 63x49 cm, esteve no mesmo salão, e logo no mesmo ano na Exposição Independente trazida a Lisboa, ao IST, mas tinha sido recusado em Janeiro na 9ª Exposição de Arte Moderna do SNI. Várias vezes exposto (1994, 1996, 2004, etc) , foi transposto em 2002 para uma serigrafia editada por La Différence, Paris. Pertence à Colecção Manuel de Brito / Galeeria 111 e não houve agora disponibilidade para o ceder no Atelier-Museu.
Os fundos de ambos são estruturados como planos lisos marcados por grelhas, losangos e quadrados, e os personagens e móveis distribuem-se num espaço livre , "espaço aproximado" frontal, sem perspectiva, de aprendizagem cubista, o que é mais óbvio no 'Café' (Marcelin Pleynet associa-o a algumas obras de Matisse, no seu prefácio ao catálogo raisonné, vol. 1, 2004). Os personagens são cortados pelos bordos do quadro (uma opção construtiva muito frequente). Na 'Taberna' reconhece-se só o pintor, em baixo, com garrafa, copo e cachimbo. No 'Café' descobre-se Victor Palla, então na Escola do Porto, à esquerda, e certamente o também colega e amigo Armando Alves Martins (com três retratos na actual mostra).
São ambos obras anteriores à afirmação neo-realista, pinturas de um "estilo" que foi muito breve, em que, além de estudos desenhados, alguns para decorações murais, se incluiu apenas 'A Guerra' (col. Fernando Lanhas) e uma 'Pintura' circular que foi exposta na 3ª Independente e depois também no IST, e que pertenceu ao mesmo A. Alves Martins (as obras trocavam-se ou ofereciam-se entre amigos). Aqui aparece uma auto-representação alegórica ao centro, o rapaz de punho erguido, e à volta soldados e chaminés de fábricas, e um corpo nu de mulher que um crítico dirá muito mais tarde antecipar outras "fases" do pintor e que Marcelin Pleynet aproxima (premonitoriamente?) do Banho Turco de Ingres.
Nota: JP foi sempre pouco frequentador de cafés (passagens na Brasileira, no Montecarlo...), e nunca confirmou, pela sua parte, a importância atribuída por Cesariny ao Café Hermínius, habitado por alunos da Escola António Arroio em 1942 e 43, segundo a sua "Intervenção Surrealista", Ulisseia 1966.
Posted at 20:53 in 1944, Júlio Pomar, Neo-realismo, retrato | Permalink | Comments (0)
Tags: 1944, Auto-retrato, Café, Neo-realismo, Pintura, Retrato, Taberna
A falta de história e a falta de senso. um cartaz em que os curadores se anunciam.
No Porto 2001 foi assim: duas exposições sérias que ficaram como referência - a comparação é fatal para este novo "projecto".
Porto Anos 60/70: os Artistas e a Cidade - Serralves e Árvore - comissariado de João Fernandes e Fátima Lambert. Jan.-Abril. Cat. com 320 págs. ed. ASA
[+] de 20 grupos e episódios no Porto do século XX - Galeria do Palácio (à data da sua inauguração) - comissariado de Fátima Lambert e Laura Castro. Cat. em 2 vol. de 312 e 276 págs.
E a programação do ano contou ainda com Fernando Lanhas em Serralves e António Quadros na Árvore, mais Júlio Resende extra.-programa em Matosinhos.
Valerá a pena falar de regressão e de irresponsabilidade. E discutir como se dá livre curso ao esquerdismo manipulador de Paulo Mendes, responsável principal acompanhado por José Maia e Paula Parente Pinto (investigação de arquivo).
Posted at 00:26 in 2001, 2021, história de Portugal, Júlio Pomar, Porto, Serralves | Permalink | Comments (0)
(Depois vou digitalizar bem o calendário. ..)
Gostava de saber que circulação teve à época, sendo obviamente uma edição partidária para angariar fundos. Gostava de entender as condições da semi-legalidade do PC nesse tempo de grande confrontação política e activa repressão (de Norton de Matos em 1949 a Rui Luís Gomes, 1951, e Humberto Delgado em 1958), com a entrada de Portugal na Nato em 49 e a reunião do Pacto do Atlântico em Lisboa em 52. Um calendário comunista para 1954, editado por Victor Palla, ao que parece, e ele é pelo menos o autor da capa - a edição não é identificada. Participam também Maria Keil, Querubim Lapa e (outros...), comunistas, simpatizantes e compagnons de route, o núcleo duro dos neo-realistas em 1953, ano em que termina a guerra da Coreia (Julho).
Especialmente relevante é a aberta intervenção anti-colonial de António Domingues, artista de longa carreira pouco conhecida. A "marcha" ou manifestação de massas aparece também nos desenhos de Rogério Ribeiro, Cipriano Dourado e Maria Barreira (esta em versão feminista). A pomba da paz é desenhada por Pomar (lavores femininos); Alice Jorge, que assina M. Alice, em versão multi-étnica; e José Dias Coelho (os namorados).
Esta “fase” militante do movimento neo-realista vai terminar com a morte de Stalin, o relatório de Krutchov, o chamado "desvio de direita" do PC, o fim das Exposições Gerais em 1956, o início das bolsas da Gulbenkian e a sua (1ª) exposição de 1957, numa sucessão muito rápida e articulada. Também com o surgimento de uma nova geração (ou “fornada”) de artistas (que já não nascem no PC e no MUD/MND, alguns católicos, já progressistas, com o Movimento de Renovação da Arte Religiosa, de 1952 : https://www.snpcultura.org/obs_13_movimento_renovacao... ), que já são abstractos antes de ensaiaram as novas figurações continentais e a Pop nos anos 1960, que vão fazer a galeria Pórtico, o jornal Ver (René Bertholo é central) e a seguir emigrar (as bolsas...) e que ainda entram, alguns deles, nas últimas Gerais e decidem participar nas iniciativas do SNI (salões e bienal de Paris), cortando assim com a prática e a tutela da geração de 1945.
*
O que poderia ser um calendário social-democrata, ou, vá lá, socialista? Não o consigo imaginar e certamente é impossível. E isto ajuda a pensar o lugar da figuração militante ou engagé, aqui e em geral no tempo longo, a sua possibilidade e conflitualidade, a questão das vanguardas (política e artística), e a oposição entre “abstração” e figuração nos anos 50 da Guerra Fria, com a condenação de TODA a figuração e a suposta inevitabilidade da abstracção que então se defendeu ou impunha, nomeadamente em Portugal, país muito sensível a modas por falta de formações ou tradições artísticas sólidas.
Neste caso, trata-se de um relançamento do neo-realismo numa particular conjuntura política que se caracterizou pelo que depois se chamou o "desvio sectário" do PC e pelas campanhas da paz no contexto da guerra fria e do últimos anos de Stalin, rompendo com os propósitos de unidade anti-fascista. Ao tempo da polémica interna do neo-realismo (ou da Vértice). Interessa-me agora este calendário por incluir uma iconografia ignorada e em especial por informar sobre o contexto da Marcha (JP, 1952) e por vir preencher um vazio na história do tal neo-realismo da 1ª metade da década de 50, um tempo esquecido e mesmo apagado pelos protagonistas (por JP e Mário Dionisio, que então pessoalmente se distanciam: MD deixa o PC, que não lhe permite passar de militante a simpatizante: as cartas trocadas existem e foram divulgadas - são surpreendentes; JP continua por algum tempo e sai discretamente, e o neo-realismo é para ele uma memória dos anos iniciais, que continuava a polarizar a atenção sobre a sua obra, e de tempos difíceis).
Em 1953 JP publica um importante artigo no Comércio do Porto em que faz o balanço do neo-realismo ("sem discutir a justeza do crisma", diz) e uma auto-crítica que envolve M.D. (In Júlio Pomar, Notas para uma Arte Útil, ed. Atelier-Museu/Documenta p. 285-289):
"... alguns perigosos caminhos começaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a substituir a agressividade dramática dos primeiris tempos. A procura de soluções foirmais começa a sobrepor-se ao vigor do conteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemas realmente vivos. Boa parte do que pintei nos anos 1949 a 51 <o que inclui a individual de 1950> oferece tais características, e desvios de tipoo análogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio. Desse impasse se tem estado a sair. "
É o seu último artigo na imprensa do tempo, por razões desconhecidas. Por acaso ou não, publica no mesmo ano, numa representação nacional numa revista francesa, um breve texto em absoluto discordante da ortodoxia comunista ali patente, mas retomando textos anteriores de oposição ao idanovismo de Cunhal:
"O assunto não é o conteúdo, é um pretexto, e mais nada. O conteúdo é a síntese dialéctica entre o tema e a experiência pessoal e vivida do artista. Ela manifesta-se na forma, vive nela, é exaltado por ela. Os conteúdos das minhas telas são as razões que me ajudam a viver'" (aspas do autor) E antes: "Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. O trabalho (métier) de pintor é um trabalho de pesquisas, de descobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que nascem da vida e ela retornam. Houve um tempo em que desprezei certos assuntos? Erro meu." (Premier bilan de l'art actuel 1937-1953, Le Soleil Noir: Positions, Paris nº3-4, p. 314 - em Notas sobre uma Arte Útil p. 241).
A ideia de pretexto é problemática, parece-me (uma concessão aos abstraccioinismos?). A separação de forma e conteúdo, e do tema e da experiência, não solucionam problemas. Mas importaria mais saber se o texto francês é posterior ao português, ou se é um exercício de versatilidade que se documenta também noutras obras pintadas de 52-53, as paisagens. Aí não estamos (já?) perante a doutrinação neo-realista.
Para além da avaliação da qualidade das obras (muitas delas muito fracas, incipientes, no calendário e no seu tempo, como é "natural") existiu um apagamento do que foi uma renovação da "tendência realista" ou um breve realismo social ou socialista a suceder ao primeiro neo-realismo (1945-50), o qual vigora entre 1951 e 55, no caso de caso de JP, e que não segue o naturalismo e reaccionarismo estético de matriz soviética e tradução francesa. Para lá de se reencontrarem obras, melhores e piores (é a história e a sociologia), importa rever a história da arte desse tempo que foi escrita por protagonistas implicados (J. A. França e herdeiros, Mário Dionísio e Ernesto de Sousa, este actualmente ignorado quanto ao que escreveu antes da adesão súbita à Documenta e a Wostell), e em geral importa pensar o destino da arte, em especial da Guerra Fria até hoje, e a sua possível importância (ou desinteresse) no presente mediaticamente dominado pela sua mercantilização e museologização, em absoluto confundidas na sociedade do espectáculo.
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Atelier-Museu Júlio Pomar (até 28 de Fevereiro)
destacam-se os quatro conjuntos de retratos que marcam a obra da maturidade de Pomar, nos anos 70 e 80, situados entre os períodos mais altos da sua carreira
1. O retrato está presente do início ao fim da carreira e da vida de Júlio Pomar. Pintor de figuras - e de imagens -, essa é uma prática que se pode dizer natural, espontânea, começada na infância, como acontece a todos (mas os seus cadernos foram guardados), e depois sempre continuada: as pessoas são o real mais próximo, e por isso mais acessível à observação, incluindo o auto-retrato.
A representação do visível, do visto, em especial no caso do retrato, sustenta-se da semelhança e no reconhecimento (e exige-os), para além de toda a (re)interpretação, formalização, abstractização e deformação, intencional ou não. Feito do natural (sempre com poses breves, no seu caso, ou de memória) ou documentado sobre referências fotográficas, o seu retrato nunca é naturalista (com uma excepção?) e pode ser ou não ser realista - por algum tempo de formação e afirmação foi neo-realista. As fronteiras diluem-se. O seu retrato nunca é o exercício de um género disciplinado e esteve sempre associado a reorientações da prática da pintura ou do desenho, a mudanças de "fases" - a obra de Pomar não se classifica por um estilo colectivo (depois do neo-realismo inicial) e nunca se fixou numa maneira.
Também sucede que o retrato é para Pomar, quase sempre (para lá de muito escassas encomendas), uma prática relacional que decorre da convivência, do companheirismo, da amizade, da intimidade ou da relação amorosa - e que por sua vez alimenta a relação pessoal com o “modelo”. Através de retratos e auto-retratos existe uma narrativa auto-biográfica que se constrói no tempo longo. E não será diferente, embora sem a presença física dos retratados, o gosto pela representação de escritores já ausentes por quem se interessava, e em diversos casos foram resultado de sugestões alheias, de convites para ilustração de livros. Essas são representações imaginadas, ficcionadas e integradas em situações ficcionais, sustentadas pela iconografia disponível, fotográfica ou já antes artística - o que deu depois passagem directa para as figuras de personagens literários e mitológicos, já representações inventadas ou ficcionadas (Ulisses, Adão e Eva, por exemplo). Quanto ao auto-retrato, praticado ao em sucessivas condições, e que mereceria estudo próprio, ele não surge como exercício narcísico ou este é contrariado pela irrisão, várias vezes em auto-retratos duplos e triplos, em companhia do macaco e do diabo (alter-egos) e na figura do palhaço.
Se em todas as décadas de actividade (oito décadas) os retratos estão presentes, poderão destacar-se desse continuum alguns retratos individuais, numa galeria selecta (Norton de Matos, Cardoso Pires, Soares, Claude Levi-Strauss, Camões, Marisa...), ou acompanhar séries e sequências com coerência temática ou ciclos e períodos, “fases”. Para além dos retratos iniciais, do tempo neo-realista, e dos retratos mais tardios, dos anos 2000 e do regresso a Lisboa, que são períodos de certo modo simétricos, de começo e fim, decisivamente marcados pela afinidade das relações pessoais, considero mais importantes quatro conjunto de retratos que marcam a obra da maturidade de Pomar, nos anos 70 e 80, colocados entre os períodos mais altos da sua carreira.
Viana, 1970 (130x97 cm) e Triplo auto-retrato, 1973 116 x 89 cm (não expostos)
2. O primeiro é constituído pelo ciclo de retratos dos anos 70, que já propus identificar como os seus anos Pop, pinturas de formas recortadas em cores lisas, na sequência dos ‘Banhos Turcos segundo Ingres’ e do interesse por Matisse e pelos contemporâneos Pop ingleses e norte-americanos, ou em montagem de fragmentos e insígnias dos rostos e corpos, mais ou menos dispersos num espaço plano. É um período que vai exactamente de 1970 a 1975, em que a gestualidade e o movimento anteriores se sustêm, a partir dos ‘Rugby’s’ e ‘Maios 68’, e que desde o início inclui retratos de relações pessoais de proximidade e de figuras das artes e da literatura (Eduardo Viana, três Almada’s, dois Pessoa’s, Camões) e também quatro auto-retratos.
Na actual exposição só estão presentes Almada (nº 28 do Catálogo Raisonné vol. 2) e um Ferreira de Castro (de A Selva, nº 72) mais três retratos de mulheres (Manuela, nº 65; Graça, nº 76; e Teresa, nº 113), de um conjunto que foi drasticamente reduzido, contando com mais de 70 telas. Nesta “fase” assinala-se a presença de uma modalidade rara, o retrato nu (sempre escasso quando não se trata de representar modelos profissionais). Na sucessão de ciclos de produção seguiram-se as colagens eróticas, “teatro do corpo / espaço de Eros”, mudando novamente de processos.
Este ciclo de pintura foi acompanhado por uma série autónoma de retratos desenhados a lápis, paralela mas formalmente muito diversa, uma série também extensa, prolongada de 1970 a 1977 ou 78, neste caso sempre de pessoas que lhe eram próximas a vários títulos. Iniciou-se a pedido do poeta Alberto de Lacerda e prosseguiu com amigos (Manuel Torres) e amigas (Mimi Dacosta, Rucha) ou ‘companheiras’, outros pintores (João Abel Manta, Jorge Martins, Costa Pinheiro, Eduardo Luiz, o último retratado e também retratista recíproco) e escritores (Cardoso Pires), um galerista (Manuel de Brito), críticos amigos parisienses (Roger Munier, Patrick Waldberg, antigo surrealista dissidente). Foram reunidos em grande parte num álbum prefaciado por Fernando Gil (Os Retratos a Lápis dos Anos 70, ed. Imprensa Nacional, 1987) e alguns são mostrados agora no Atelier-Museu na escada entre os dois pisos.
Um segundo grupo de retratos pintados inclui apenas escritores, quatro poetas, e resulta de uma proposta para ilustrar um livro sobre o poema “O Corvo” de Edgar Allen Poe e as suas versões traduzidas por Baudelaire, Mallarmé e Pessoa. O projecto, sugerido em 1981 por Joaquim Vital (Editions de la Différence, Paris), à “saída” do ciclo dos ‘Tigres’, alargou-se a uma série extensa de quadros que se prolongou até 1985, com retratos individuais e retratos conjuntos de grande formato (Poe e cada um dos tradutores), e mais dois de grupo, um triplo Pessoa e os quatro poetas reunidos, ultrapassando assim em muito o propósito inicial, como foi frequente suceder, excedendo a ilustração.
O retrato literário não se separa da semelhança, embora a trate com outra liberdade, ficcional e já então de novo gestual, com a presença repetida do Corvo e uma inesperada aparição do Orangotango, acolhendo o acaso que acontece na tela, visitando representações fotográficas e anteriores retratos pintados, designadamente os Poe e Mallarmé de Manet. A série foi apresentada num álbum com texto de Jean-Michel Cluny (retratado noutra ocasião), que se chamou Le Livre des Quatro Corbeaux ou o Livro dos Quatro Corvos, na tradução para a Galeria 111, e igualmente numa caixa de serigrafias, retratos e corvos desdenhados, mas gorou-se à data uma prevista exposição em lugar destacado, dispersando-se em colecções particulares sem a visibilidade que merecia.
A esta série se seguiram de imediato dois retratos autónomos de Fernando Pessoa, de 1985, e um projecto de edição ilustrada da Mensagem, onde incluiu, logo no mesmo ano, os retratos individuais de Camões (agora exposto) e D. Sebastião, e em grupo de Mário de Sá Carneiro, Santa Rita Pintor e Amadeo Souza-Cardoso (‘Lusitânia no Bairro Latino’ - na exposição do AMJP), ou Pessoa (‘Fernando Pessoa encontra D. Sebastião...’), em situações ou histórias livremente imaginadas, a par de três outras “pinturas de história”, sobre os presentes de D. Manuel ao Papa, as peregrinações de Fernão Mendes Pinto e a pregação de Santo António (“7 Histórias Portuguesas”, ed. Clássica Editora, exposição na Galeria 111, 1985). Por essa época tinha começado a ocupar-se com figuras míticas (Salomé, Leda, Actéon, o Julgamento de Paris, o Rapto de Europa) numa série de quadros ovais que foram expostos separadamente em Paris (Ellipses, Galerie Bellechasse, 1984). Vieram a ter larga sequência nas décadas seguintes, mas no final dos anos 80 as viagens do artista ao Brasil vieram outra vez substitui a ficção pela observação, nas figuras dos Mascarados e dos índios da Amazónia - regresso aos real.
Retrato de D Sebastião com um espelho, 1985
Entretanto, interrompendo em 1983-84 a série “O Corvo”, outro grupo de quatro poetas destinados ao revestimento em azulejo da estação Alto dos Moinhos (Lisboa) absorveu o pintor durante “um ano de desenho”. Tratou-se, por ordem cronológica, de Camões, Bocage e de novo Pessoa e Almada. Os retratos lineares em tamanho natural espontaneamente traçados e repetidos com variantes, a marcador sobre papel (quase sempre papel vegetal), acompanharam-se de motivos com que cada um se identifica (sereias e cupidos, espadachins, frades, gaivotas, arlequins e muito mais) numa extensíssima galeria de figuras que passaram a ocupar os átrios e corredores do Metro, alem de terem preenchido um dos pisos do Centre de Arte Moderna, em 1984. Couberam agora no Museu apenas dois retratos, Bocage e Pessoa, que foram acompanhados por um Becket (1987) e Dante (2006), o que é pouco - poderia ter-se feito a exposição em duas ou três partes.
3. Depois de centrar a atenção nos grandes ciclos de retratos, podemos considerar outros períodos, no início e no fim do caminho, e alguns momentos ou pequenos conjuntos de obras também significativas.
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Nunca exposto até agora (1), e nunca referido, 'Marcha' é uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospectivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela Pide em 1961. Bem reconhecível entre as figuras do jovem casal que avança em primeiro plano, ocupa um lugar central que correspondia na época à sua intervenção como artista e activista -- animava e coordenou as acções dos artistas do PCP nos primeiros anos 50 (ou já seria mesmo o respectivo “controleiro”, um controleiro não sectário, segundo J.P.). Em 1955 trocou uma carreira artística já reconhecida pela passagem à clandestinidade como responsável por uma oficina de falsificação de documentos.
A natureza política do quadro, que é de facto uma dimensão partidária, relaciona-o sem dúvida com as campanhas pela paz que o PCP promoveu nos anos de 1949-54, ao tempo da guerra da Coreia e da Guerra Fria, mobilizadas nomeadamente em acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao "Apelo de Estocolmo" pela proibição das armas nucleares, lançado em 1950, e contra a reunião de Lisboa do Conselho do Atlântico em Fevereiro de 1952, depois da adesão portuguesa ter sido ratificada em Julho de 1949, acontecimentos que vieram dividir e alterar profundamente as dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária. Este é muito obviamente, numa pintura clandestina (nunca divulgada, mesmo depois do 25 de Abril, por razões a interrogar), o lado comunista e pro-soviético de uma barricada semi-legal, residente num atelier e tertúlia activos num período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Rui Luís Gomes (1949 e 1951). E também na ocasião de um "desvio sectário" que conheceu grandes fracturas internas nos meios intelectuais e num PC debilitado por muitas prisões, o qual dá lugar a seguir ao chamado “desvio oportunista de direita” de 1956-59, após o relatório de Kruchov, depois “corrigido” pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961, na dramática pequena história ziguiezaguiante do anti-fascismo.
Se esta pintura panfletária não se considerar uma "obra prima", este não é um quadro menor, até pela coincidente ambição do assunto e do formato, e o encontro entre o manifesto e o retrato de grupo concede-lhe uma verdade, uma intensidade que é fusional com as qualidades formais que o fazem seguramente uma das peças mais marcantes do neo-realismo, que aqui se identifica com o realismo socialista sem concessão académica. É uma obra única na carreira do pintor (apesar de renovar o título da primeira Marcha de 1946), e é uma obra bem representativa de um tempo político e suas contingências, que, por sinal, continuou ser uma obra desconhecida - o artista nunca a procurou incluir nas suas antologias e a iconografia de Dias Coelho e do PCP nunca a recuperou.
Partindo da consideração da Marcha de 1952 é necessário tentar contrariar a desvalorização crítica das obras neo-realistas deste período (feita também pelo artista), e a partir daí rever a história habitual do movimento, dividindo-o em dois períodos diferentes, em especial quanto à obra do seu principal animador, intérprete e crítico. O segundo período, a partir de 1951 é sensível à orientação de uma ortodoxia partidária chegada de França no sentido de um realismo social de intervenção militante. Algumas obras-chave mostram-no e a Marcha é o seu emblema maior.
Depois das mostras individuais de 1950-51, em que Pomar reuniu pintores recentes e pintou outras para ocasião - para além de apresentar cerâmicas e pequenas esculturas de barro com maior sucesso de mercado, renovadas na passagem da mostra de Lisboa para o Porto - , duas telas gémeas de 1951 mostram a continuidade da vertente que se pode dizer formalista e lírica, manifesta em Meninos no Jardim (O eixo corrido) e Vendedoras de estrelas. Mas logo se evidencia, ainda nesse ano, uma direcção que é ao mesmo tempo mais empenhada politicamente, renovando o programa realista e assumindo uma condição mais austera, trocando a fluência decorativa pela observação social e a afirmação política. É o caso das Mulheres na lota (Nazaré), ainda de 1951, depois da Marcha, a seguir de Os Carpinteiros e das duas peças maiores do Ciclo "Arroz", a que se acrescenta o retrato de Cardoso Pires, já de 1954. Só a confrontação partidária e a batalha ideológica (e crítica) de oposição aos realismos - no contexto da Guerra Fria e da oposição aos formulários naturalistas autoritários, nazis e estalinistas - veio ocultar estas obras maiores no curso da década de 50 e da carreira do pintor.
As novas condições da intervenção partidária afirmam-se com clareza na produção de uma série de gravuras dedicadas ao tema da Paz, o qual mobiliza o PC na legalidade possível. A Mulheres Fugindo (conhecida como A Bomba Atómica) seguem-se as gravuras em que figura a pomba da paz proposta por Picasso como emblema da causa.
A Marcha como retrato de grupo identifica sem o representar expressamente o atelier da Praça da Alegria (antigo atelier que foi de José Malhoa), alugado e chefiado pelo também escultor Vasco Pereira da Conceição, militante e recente ex-preso político, que é visto a entrar no bordo direito do quadro. Aí trabalharam também Maria Barreira, sua mulher representada pela Maternidade à direita baixa, um tema comum ao casal, e por vezes Dias Coelho e mais tarde talvez Alice Jorge, quando iniciara o relacionamento com Pomar. Lugar de trabalho e também de tertúlia artística e política, que alguém apontou como uma espécie de antecâmara das Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAPs ou Gerais, 1946-56), em cuja organização participava activamente Dias Coelho e que Pomar acompanhava assiduamente na imprensa, até um último artigo em 1953, de avaliação e redefinição do neo-realismo e também auto-crítica militante, em que trocou as publicações habituais pelo mais longínquo Comércio do Porto. Cessa então a colaboração nas revistas, sem se conhecer justificação para tal (sequelas da "polémica interna do neo-realismo", razões pessoais?) e sem ser ainda um afastamento político declarado. Em 1955 a sua pintura deixa de ser neo-realista (mas continuam na gravura as figuras do trabalho), ao cabo de dez anos de prática, e o movimento encerra-se pouco depois, numa última Geral retrospectiva quando se iniciava a era Gulbenkian.
No friso de retratos, ao lado do casal em primeiro plano, está o engenheiro Frederico Pinheiro Chagas, amigo e simpatizante, certamente encomendador e depois proprietário de sempre desta obra, e logo a sua mulher, Dina. O par alegórico dos jovens militantes de mão dada, encabeçando a Marcha, guiando o povo segundo uma tradição revolucionária que se partilha com os códigos da apologética religiosa, contou por modelos o carpinteiro Francisco Bento, saído da prisão pouco tempo antes, que frequentava o atelier e realizou mobiliário para vários camaradas, e ao lado, muito provavelmente, Zita Namora, mulher do escritor, do qual Dias Coelho realizou um busto em 1950-51, o que justificaria a sua passagem pelo atelier. Desta Zita existem fotografias do seu retrato esculpido por Pomar (uma encomenda?) e de um estudo para o quadro (imagens abaixo). De Pinheiro Chagas há também um excelente retrato desenhado. A menina à esquerda não foi identificada, ainda, mas será alguém em particular - a "presença" dos modelos retratados vem reforçar a força mobilizadora da alegoria.
A alegoria tem como pólos simétricos a figura da Maternidade à direita, como promessa de futuro, e o estranho personagem visto obliquamente de costas à esquerda, um (falso) profeta, um velho frade?, vendedor de ilusões, que aponta para uma cidade moderna, em construção, com guindastes, personagens hieráticos (robotizados?); ao fundo, montes áridos. De um lado, o passado e um ilusório presente, do outro a infância e o futuro. Na metade direita, por trás do friso das figuras está uma alongada parede ou casa vermelha, que toma o lugar de uma (im)possível bandeira. Talvez também se reconheça aí, mesmo em cima à direita, uma praia e um barco, amarelo e azul, que rimam ou se repetem em primeiro plano rasgando de luz o ventre e o vestido azul da mulher - e este é um elemento de composição de grande eficácia moderna.
A memória possível do atelier, o interesse pelo retrato e o contexto neo-realista devem ser evocados com detalhe para situar esta obra de excepção, bem como o seu lugar no âmbito da produção de Pomar da primeira metade da década, sinalizando a respectiva diversidade quando se aproxima o fim da sua prática neo-realista.
O atelier da Praça da Alegria, no nº 47, ao que parece, situado entre o Maxime e o Hot Club, ao lado de uma leitaria, era também frequentado por escritores: José Cardoso Pires, com os primeiros livros e grande actividade política, que aí conheceu em 1954 a sua mulher, Edite, irmã de Vasco da Conceição, por ocasião do retrato que Pomar pintava, sendo ela retratada por Alice Jorge no ano seguinte; Orlando da Costa, que aí levou Maria Antónia Palla; Alexandre Cabral, amigo do engenheiro, e outros mais. Esses primeiros anos da década de 50 conheciam uma grande tensão ideológica, a dissidência titista e "browderista" de Piteira Santos, Mário Soares e os Lyon de Castro, associada à denúncia pelo PC do jornal Ler da Europa-América; o debate sobre estética e as fracturas no campo neo-realista, centrado no controle da Vértice; a saída de Mário Dionísio do partido em 1953 e a recusa de continuar a participar nas Gerais, a partir de 54, após a alargada participação nacional na II Bienal de São Paulo enviada pelo SNI no ano anterior. Em 1952 a SNBA esteve encerrada depois de Eduardo Malta ter sido expulso de sócio “pela provocação que encenou contra José Dias Coelho, que encabeçava esta batalha” pela renovação dos júris (2). O atelier da Praça da Alegria era um lugar "ortodoxo" sujeito à pressão do realismo socialista de informação francesa, via Arts de France (a sua "Tribune du Nouveau Réalisme" surge em 1949 e a revista desaparece em 1951), que se ia abatendo sobre a originalidade e a irreverência do primeiro neo-realismo.
Tentando estabelecer um panorama da época, os livros então ilustrados por Júlio Pomar dão um retrato das relações literárias marcadas pela cumplicidade política e pessoal: Carlos de Oliveira (retrato de 1948); Sidónio Muralha e Cardoso Pires (desenhos de 1949, 1950); Alves Redol, Raul de Carvalho e Ferreira de Castro (1949); Mário Dionísio, José Fernandes Fafe, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, Orlando da Costa (todos com retratos desenhados para as tiragens especiais de 40 exemplares da col. Cancioneiro Geral do Centro Bibliográfico, 1950/1953); e Alexandre Cabral (1955). As grandes encomendas editoriais da Fólio (de Victor Palla e Cardoso Pires), Sul (de Castro Soromenho), Realizações Artis (de Rogério de Freitas e Leão Penedo), Bertrand, Minotauro (Urbano Tavares Rodrigues), Cor e Portugália virão depois (1957-1967).
Além da escrita e do desenho para a imprensa, da ilustração e da cerâmica, têm relevância na actividade de Pomar (afastado do ensino em 1949) as encomendas para decoração e a escultura (a pintura era pouca, ao tempo, num mercado apenas de amigos), em retratos e em peças decorativas, que se expunham nas Gerais (assinalam-se adiante com *) e foram desaparecendo ou esquecendo-se em destinos privados: retratara em escultura a sua mulher, Maria Berta, em 1949*, e também os escritores Sidónio Muralha*, 1950, e António Navarro, 1951 (Salão de Outono), obras presentes na actual exposição, igualmente Armindo Rodrigues, 1951*, ficando-se por aí as peças com qualidade moderna, não convencionais. Conhecem-se apenas mais quatro “cabeças”, duas de amigos (Ana Moura*, mulher de Rui de Moura, editor, depois Prelo) e Joaquim Barata* (fundador da Gravura) e as outras (Zita e Liliana, 1951) talvez de encomenda. À escultura só voltará com os ferros soldados do ciclo Dom Quixote, em 1960. Fez também, em 1954, os retratos pintados de Cardoso Pires e Maria Lamas (esta presa pouco antes, no regresso de Moscovo, e o retrato indicado no catálogo da VIII Geral não terá certamente sido exposto, dado o contexto repressivo) - a que se acrescentam os de Vera Azancot (tradutora, 1954*), Alice Jorge (1955), Maria José Salvador (1956, mulher de Manuel Torres, amigo, parceiro de viagens de automóvel e fundador da Gravura). É já de 1958 uma outra encomenda isolada, João Duarte, para a Companhia de Seguros Comércio e Indústria, agora no BCP, que só terá continuidade dez anos depois mas bem diferente.
Por seu lado, José Dias Coelho (n. 1923), que entrara no mesmo ano de 1942 na Escola de Lisboa, apresentou nas Gerais retratos de Rolando Sá Nogueira, 1949; M.T. (Margarida Tengarrinha), 1950; Alves Redol, 1951; M.E.C. (Maria Eugénia Cunhal), 1953; Maria Isabel Aboim Inglês, 1954, entre outros não nomeados. Realizou também os bustos de Fernando Namora e do designer Tomás de Figueiredo. Aliás, o retrato teve sempre uma forte presença nas Gerais. Aí expostos ou não, o catálogo “Um tempo e um lugar” (3) refere ou reproduz obras de Abel Manta (Bento Caraça, 1947), Sá Nogueira (Frederico George e Jorge Vieira de c. 1949), Maria Keil (Abel Manta*, 1949), Vasco da Conceição ("cabeças" de Maria Barreira*, Sidónio Muralha* e Lopes Graça, 1950*); Victor Palla (Cardoso Pires, 1951), Mário Dionísio (Joaquim Namorado* e Eduarda D.*, 1953), Lima de Freitas (Alves Redol*, 1953, Cardoso Pires*, 1954), Alice Jorge (Edite Cardoso Pires*?, 1955), e também de.João Abel Manta, Arlindo Vicente (João Gaspar Simões, sd), José Farinha (Alves Redol, escultura s.d.), Euclides Vaz, entre outros retratos indicados sem nomes dos modelos.
Armindo Rodrigues 1951 de Pomar (col. part.) e Fernando Namora, de J. D. Coelho 1951, bronze (col.Museu Gulbenkian)
Picasso, Maurice Thorez 1945 / Fougeron, retrato da mãe de Thorez, e Picasso, Thorez, croquis 1949 (Art de France 1949) / Boris Taslitzky, A morte de Danielle Casanova
Além da permanência das práticas realistas, a disciplina do retrato era então recomendada ou imposta pelos partidos comunistas num período de maior pressão da ortodoxia (e do culto da personalidade, especialmente em França) - a pintura de história também se impunha mas foi naturalmente mais rara entre nós. Esse é um contexto que seguramente penalizou a respectiva continuidade em anos seguintes, e alguns episódios polémicos tiveram retratos por pretexto (foi famoso o caso do Stalin de Picasso, nas Lettres Françaises, à data da sua morte...), num período em que o combate aos realismos, depois das normas nazis e soviéticas, fazia parte do enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Depois de Picasso, Freud e Bacon, Hockney e Kitaj, Arikha, entre os maiores, iriam a seguir prosseguir e reafirmar a centralidade do retrato na arte do século XX.
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Para o grande formato de Marcha, único ao tempo - 122 x 199 cm, têmpera sobre aglomerado - Pomar usou uma placa de madeira da mesma série de três outras tábuas que pintou para o restaurante Vera Cruz, na Avenida da Liberdade, projecto de Victor Palla e Costa Martins, com quem Pomar manteve várias colaborações (elas passaram depois para o restaurante Tarantela, no largo da Estefânea, e dispersaram-se nos anos 90). A vocação decorativa de referência brasileira realiza-se aí com códigos de pintura mural, o que também ocorre nesta Marcha, embora esta de ambição panfletária, num figurino apologético onde a condição de retrato de grupo e a alegoria asseguram maior complexidade.
A campanha pela Paz está presente em três gravuras de 1951 que tiveram muito grande difusão e marcaram presença nas casas dos intelectuais da Oposição de feição comunista. Mulheres Fugindo, conhecida como A Bomba Atómica e A Explosão, seguida por outras onde já está presente a pomba que em 1949 Picasso promovera da iconografia cristã a símbolo da Paz no cartaz para o Congresso de Paris. Pouco depois, em agosto de 1949, a URSS detonou a sua 1ª bomba nuclear; em março de 1950 o Comité Permanente dos Partidários da Paz lança o Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares,
Outra obra que alude às campanhas da paz e certamente à Coreia é A Vida ou a Morte (conhecido também como Guerra e Paz), datada de 1953 e exposto nesse ano na VII Exp. Geral. O Massacre na Coreia, de Picasso, 1951, poderá ser uma referência reconhecível, condensando-se o grupo das mulheres numa única figura maternal e esquematizando a marcha militar até à caricatura, numa composição decorativa.
Mas a produção militante de Pomar é acompanhada no mesmo ano da Marcha por obras de feição bem distinta e também de direcção inédita na sua produção, a paisagem, numa coincidência que reflecte a manifesta diversidade das interesses - mas nenhum destes quadros terá sido exposto no seu tempo próprio:
NOTAS
1 reproduzido talvez pela 1ª vez no Catálogo Raisonné vol I, 2004, nº 86, o quadro nunca antes terá sido dado a conhecer e não faz parte da iconografia do PCP.
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Com projecto de arquitectura de Artur Andrade, o Cinema Batalha foi inaugurado em 29 de Maio de 1947, encontrando-se à data a pintura da parede maior, o 'hall', não concluída por o artista ter sido preso a 27 de Abril, por pertencer à Comissão Central do MUD Juvenil.
Em Setembro-Outubro, o fresco foi terminado pelo autor, já saído de Caxias, e que por essa altura realizava no Porto, na Galeria Portugália, a sua primeira exposição individual, de desenhos, alguns deles realizados na prisão (álbum "XVI Desenhos", com prefácio de Mário Dionísio, ed. dos autores, distribuição Vértice, não referida, 1948; reed. aumentada, Arte Mágica, 2004).
A edição do diário portuense «O Primeiro de Janeiro» de 28-5-1948, pág. 4, incluiu uma pequena notícia, « O Cinema Batalha é inaugurado amanhã », onde se refere que « foi decorado com motivos ligeiros de arte modernista. »
O grande fresco do 'hall' antes de concluído, ao tempo da inauguração (1947). O fresco do bar (a foto 2 é da autoria de ©Ernesto de Sousa), 1947-48
Em 1948 o governo impôs a eliminação das pinturas murais. Segundo uma carta enviada ao artista pela Empresa Neves & Pascaud, proprietária do Batalha, « uma determinação das autoridades » obrigava-a a « eliminar da decoração do seu Cinema Batalha as pinturas murais », fixando 25 de Junho como data limite para o efeito - mais de um ano depois da inauguração.
Ao que parece, tratou-se de uma retaliação do regime já no quadro da candidatura à Presidência do general Norton de Matos, sem que qualquer escândalo público ou o teor figurativo dos frescos (os festejos do São João no Porto) justificassem a ocultação. Um primeiro estudo conhecido para a pintura mural partia dos temas do Douro e do vinho. No ano seguinte, J. Pomar, cujo retrato do candidato tivera uma grande presença na campanha, foi demitido do lugar de professor de desenho do ensino técnico.
Pormenores do 'hall', fotos ©Ernesto de Sousa, 1948
1947. Manuel de AZEVEDO, "Um escândalo artístico - Está ameaçado de destruição o painel do Cinema Batalha, do Porto", "Mundo Literário", Lisboa, nº 37, 18 de Janeiro, p. 16. (inclui 2 fotografias das obras em execução).
A realização dos murais foi encomendada e iniciada em 1946 (tinha o artista apenas 20 anos). A revista "Horizonte, Jornal de Arte", Lisboa, nº 2, de Nov., informou: “A decoração mural (11 x 6 metros) que Júlio Pomar vai realizar para o 'hall' do cinema Batalha, do Porto, da autoria do arq. Artur Andrade, foi fixada pelo preço de 30.000$00."
Outra notícia, referente a uma polémica sobre os murais, que nada tem a ver com a posterior ocultação determinada pelas «autoridades», mas sim com movimentações de artistas concorrentes e divergências críticas, foi publicada por Manuel de AZEVEDO, "Um escândalo artístico - Está ameaçado de destruição o painel do Cinema Batalha, do Porto", no "Mundo Literário", Lisboa, nº 37, 18 de Janeiro 1947, p. 16 (inclui 2 fotografias das obras em execução).
1947. A Empresa do Cinema Batalha e o Arq. Artur Andrade (Empresa Forum) pedem à PIDE, em 2 de Maio, que autorize o artista, então preso em Caxias, a vir ao Porto concluir o seu trabalho antes da inauguração do Batalha.
1948. O Cinema Batalha, em 17 Junho, informa o artista da ordem de "eliminar" os frescos
Em 2005/06 foi feita uma tentativa de desocultação dos frescos, mal conduzida e sem êxito, por iniciativa da Associação dos Comerciantes do Porto. Encontraram-se apenas vestígios dos desenhos prévios (sinópias). Os frescos teriam sido mesmo eliminados com raspagem das paredes? O IPPAR viria a fiscalizar a intervenção e produziu um relatório confirmando a impossibilidade do restauro.
Em 2016, por ocasião de novo projecto de recuperação do Batalha considerou-se o uso de meios fotográficos, a partir das provas de época sobreviventes.
2006. Intervenção na parede antes ocupada pelo fresco, por iniciativa da Associação dos Comerciantes do Porto.
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Tags: Cinema Batalha
Artigos recolhidos em Academia.edu
(1)
HISTÓRIAS PORTUGUESAS (anos 40… anos 2000)
https://www.academia.edu/748287/Hist%C3%B3rias_portuguesas_anos_40..._
1942, No atelier da Rua das Flores (2002, 60 anos depois)
Geração de 45 (2005)
Júlio Pomar, Pintura (Saltimbancos), 1942, reproduzido de “Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo”, nº 13, Fevereiro 1943. Assinado Júlio
(A obra foi exposta no atelier da Rua das Flores em 1942 e daí levada por Almada Negreiros (vendida, como se tem escrito, ou, talvez melhor, cedida, porque é natural que não a tenha chegado a pagar), o qual por sua vez a apresentou ao júri da 7ª Exposição de Arte Moderna do Secretariado da Propaganda Nacional, inaugurada em Dezembro desse ano (foi o nº19 do catálogo, Pintura, mas o autor designa-a como Saltimbancos). O crítico da Seara Nova, Adriano de Gusmão, escreveu que a obrinha «fez sensação neste salão», onde as presenças surrealistas de António Pedro e Dacosta enfrentavam os gostos mais conservadores, entre os modernos apadrinhados por António Ferro. Depois, a tal Pintura cedida pelo Almada, e certamente nunca reclamada, perder-se-ia nos depósitos do futuro SNI, com uma assinatura (Júlio) que deixou de ser identificada ou se prestava a confusões.
Que uma exposição de estudantes tivesse sido visitada pelos artistas e especialistas da época, que um ensaio de pintura de um jovem desconhecido de 16 anos acabado de entrar na Escola de Belas Artes fosse acolhido no Salão do SPN de António Ferro, e comentada na imprensa, e que fosse a seguir reproduzida no «Panorama» entre outros destaques dessa 7ª Exposição de Arte Moderna do Secretariado da Propaganda Nacional é todo um documentário sobre um tempo distante, desconhecido e contraditório…)
As Exposições Gerais de Artes Plásticas, 1946 - 1956: «Um grande comício sem palavras» (2005, Vila Franca de Xira)
Surrealismos de 1934 a 52: «Antes e depois de 1947» (2001, Museu do Chiado)
Júlio Resende (2001, Matosinhos)
Fernando Lanhas, «Sonhei que sabia tudo» (2001, Museu de Serralves)
Nadir Afonso, "Razão e excesso» (2001, Cascais)
António Dacosta (1988, CAM, Fundação Gulbenkian)
(2) DE 1982
ANOS QUARENTA
https://www.academia.edu/748287/Hist%C3%B3rias_portuguesas_anos_40..._
in Diário de Notícias, 8, 9, 16 e 16 Abril 82
sobre OS ANOS 40 NA ARTE PORTUGUESA, Fundação Calouste Gulbenkian
I «A vanguarda de António Ferro»
II «A geração da ruptura»
III «Os sentidos de uma década»
IV «Duas ou três lacunas»
(3) NO CATALOGO RAISONNÉ, 2004
Júlio Pomar. O neo-realismo, e depois (1942-1968)
https://www.academia.edu/741356/Julio_Pomar._O_neo-realismo_e_depois._1942-1968
in Júlio Pomar, Catálogo “Raisonné” I. Pinturas, Ferros e Assemblages 1942-1968 /Catalogue Raisonné I, Peintures, Fers et Assemblages 1942-1968; textos/textes de Alexandre Pomar, Marcelin Pleynet. Éditions de la Différence, Paris / Ed.Artemágica, Lisboa, 2004. (Version française disponible)
(4) ANEXO
O neo-realismo na fotografia portuguesa,1945 – 1963
https://www.academia.edu/525938/O_neo-realismo_na_fotografia_portuguesa_1945_1963
in INDUSTRIALIZAÇÃO EM PORTUGAL NO SÉCULO XX. O CASO DO BARREIRO, Actas do Colóquio Internacional Centenário da CUF do Barreiro,1908-2008, Universidade Autrónoma de Lisboa, 2010 (Auditório Municipal Augusto Cabrita, Barreiro, 8-10 de Outubro de 2008)
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(Anotações)
A cerâmica de JP surge pela primeira vez referida nos catálogos das exposições individuais realizadas na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1950 (31 de Outubro - Novembro), e na Livraria Portugália, no Porto, de 10 a 20 de Janeiro de 1950.
Em 1950, o cat. refere 17 peças de cerâmica, com títulos próprios; em 1951, são 28 títulos, todos eles diferentes dos interiores, o que será indicativo que de que os primeiros se venderam na exposição de Lisboa. A cerâmica era à data a produção mais vendida.
De notar, em 1951, a colaboração com o poeta Armindo Rodrigues, de quem executa um retrato também em 1951, escultura em cimento com patine. De notar também o título comum "OS ANIMAIS SÁBIOS", referido aqui a uma série de esculturas em barro), e que o artista usará mais tarde como tema presente ao longo da sua obra, em especial da obra gráfica.
Todas as cerâmicas são peças únicas, executadas na Cerâmica Bombarralense, Lda, Bombarral.
Estas exposições individuais sucedem já à mostra realizada em Setembro de 1947 na Galeria Portugália, no Porto, logo após a saída da prisão de Caxias: "Pomar expõe 25 desenhos", catálogo com dois versos de Mário Dionísio.
1949
Nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, a partir de 1949, JP expõe por diversas vezes cerâmicas, incluídas no sector das Artes Decorativas.
Em 1949 (4ª EGAP) expõe a tapeçaria A Bela Aurora e "cerâmicas executadas nas oficinas de Cerâmica Bombarralense" (nº 229), sem descriminação de títulos.
Em 1950 (5ª EGAP) expõe :
269 Pratos..... cada 300
270 Pequenos relevos.... cada 350
271 O cavaleiro da flauta... 400
272 Jarra.... 400
273 Senhor de bigodes com barretinho de dormir.... 300
274 Touro... 250
275 Melancolia...
(peças únicas executadas na Cerâmica Bombarralense)
Em 1951 (6ª EGAP) expõe cerâmica (igualmente da Cerâmica Bombarralense):
279: Prato grande com cavalos; 280 - Pratos; 281 - Pratos; 282 - Três pratos sobre quadras de Armindo Rodrigues.
E também: 274 - A Barca (barro cozido); 275 - Duas peças em barro cozido; 276 - Ofélia (barro cozido); 277 - Cabaça (faiança); 278 - Várias peças em faiança.
Também em 1951 participa com cerâmicas na EXPOSIÇÃO DE DECORAÇÃO MODERNA, em Lisboa, Casa Jalco (15 de Janeiro). Ao lado de Querubim Lapa e Sá Nogueira, Jorge Vieira, Vasco Conceição e Rocha Correia.
Há indicação de que em 1952 (29 Nov. – 13 Dez.), na Exposição Individual na Galeria de Março, em Lisboa, expôs também cerâmicas, além de desenhos e monotipias. Não são referidas no catálogo.
Na 7ª EGAP, 1953, não terá exposto obras decorativas, mas mostrou gravuras em madeira e linóleo.
Em 1954 (8ª EGAP) voltou a expor cerâmica, executada já nas Caldas da Rainha:
183 – Os mochos... 350
184 – Ave... 350
185 – Galo
186 – Galinha careca
187 – Menina atenta... 400
188 – Transfiguração
189 – Flora... 350
190 – Capricórnio... 400
1954
1955 (9ª EGAP): Artes decorativas:
223 - JP, Alice Jorge e Jorge de Almeida Monteiro – Motivo decorativo em cobre martelado para um Instituto de Beleza (Instituto de Beleza Arminda, na Av. A. A. Aguiar, projecto de Victor Palla e Bento de Almeida - ver publicidade, com mosaico)
+ cerâmica (peças únicas executadas na Fábrica de J. Duarte)
224 – Anjo Músico... 350 / 225 – Tribuno / 226 - O Avarento / 227 - O Caminheiro / 228 - Caceteiro / 229 - Gaiteiro / 230 - Cavalos / 231 - Pratos / 232 - Luta de touros
1956 (10ª EGAP), secção Artes decorativas:
259 - cerâmicas executadas na Fábrica Secla, Caldas da Rainha.
(O catálogo reproduz o prato "Ciclista" e a tapeçaria "Bela Aurora"
Também em 1956, exposição Vidros, com Alice Jorge, Galeria Rampa, Lisboa (Dezembro). Trabalhos executados na Fábrica-escola Irmãos Stephans, da Marinha Grande.
Bibliografia:
Catálogo Raisonné vol. I
"Um tempo e um lugar - dos anos 40 aos anos 60 - dez exposições gerais de artes plásticas", Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2005 (comissário Rogério Ribeiro).
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A extensa obra gráfica de Júlio Pomar acaba de ser reunida num livro publicado pelas edições Caleidoscópio, com o patrocínio exclusivo da Caixa Geral de Depósitos, contando com a colaboração da Fundação Júlio Pomar e do Atelier-Museu Júlio Pomar.
JÚLIO POMAR - Obra Gráfica / Graphic Work é um volume bilingue com 320 páginas, amplamente ilustrado com as reproduções de 116 gravuras, realizadas entre 1948 e 1963, nas mais diversas técnicas, e de 177 obras ou séries de serigrafias e litografias, editadas de 1974 a 2015, num total de 341 ilustrações que constituem o catálogo o mais possível completo da produção gráfica do artista. Acrescentam-se as informações disponíveis sobre tiragens, oficinas e editores, e também, no caso da gravura, referências às primeiras exposições em que foram exibidas.
O livro inclui numerosas gravuras pouco conhecidas ou mesmo ignoradas, que tiveram edições muito limitadas ou de que se conhecem apenas Provas de Artista ou de Ensaio, e também outras estampas que ilustraram as edições especiais de livros como História da Tauromaquia (1950), O Romance de Camilo (1957), Grande Fabulário de Portugal e do Brasil (1961-62) e o Purgatório, de Dante (1961-63). Reproduzem-se igualmente as séries de estampas que integraram álbuns e edições de arte como Catch (1978-2014), 4 Tigres (1994), Le Livre des Quatre Corbeaux (1985), Marujos & Cia (1999) ou Le Sel de la Mémoire (2003), entre outros, produzidos em Paris pelas Éditions de la Différence de Joaquim Vital e por outros editores.
Mariana Pinto dos Santos, historiadora de arte, investigadora do Instituto de História de Arte da FCSH da UNL, assegurou a coordenação editorial e prefaciou o volume. Alexandre Pomar é responsável pela pesquisa e catalogação das obras.
Júlio Pomar foi um dos fundadores da Cooperativa Gravura, em 1956, e um dos pioneiros e divulgadores da gravura moderna, no início dos anos 50, até se deslocar para Paris. Depois, as numerosas edições de serigrafias e litografias constituem, ao longo de cinco décadas, uma parte muito significativa da sua obra, incluindo os projectos de criação original destinados à edição como múltiplos ou assegurando uma mais ampla divulgação da sua obra de pintura, das suas séries temáticas e etapas criativas. É um grande panorama da obra de Júlio Pomar que se reúne nesta edição.
Posted at 23:24 in 2016, estampa, gravura, JP obra gráfica, Júlio Pomar, obra gráfica | Permalink | Comments (0)
Javali, 1951. linogravura (31,4x48cm)
Cabeça de tigre, 1980. serigrafia (64x50cm)
Tartaruga e Lebre, 2000. serigrafia (41,8x29,5cm)
Tigre Azul, 1980 - 2001. serigrafia (76x56cm)
mARTEnidade IV, 1999. serigrafia sobre tela (130x195cm)
As gravuras e serigrafias são originais e são múltiplos (é essa a "natureza" da estampa ou obra gráfica, e também a sua condição legal - a impressão de exemplares é condicionada pela lei para se poder qualificar como um original de arte). Uma serigrafia não é, não deve ser, a reprodução de uma imagem, e mesmo havendo uma imagem prévia que se toma por origem de uma edição serigráfica ela é re-interpretada pelo serígrafo e pelo autor-artista quanto às suas cores de impressão, texturas e sobreposições e também transformada pela alteração da sua escala, por redução ou ampliação. Existem serigrafias de reprodução, na antiga tradição da gravura de reprodução, que são o mais possível idênticas à imagem de partida, e serigrafias em que é intencionalmente grande a distância face à imagem de trabalho, que pode ser um desenho, uma colagem, uma pintura. Outras serigrafias ainda partem de um "estudo" ou ensaio destinado à produção serigráfica, e que não existe como obra autónoma.
Na última imagem a serigrafia sobre tela é uma grande ampliação de um pequeno desenho.
Posted at 01:07 in 2014, estampa, gravura, JP obra gráfica, Júlio Pomar, obra gráfica | Permalink | Comments (0) | TrackBack (0)
UM BESTIÁRIO, DUAS GRAVURAS IMPRESSAS, DOIS POSTAIS PUBLICADOS, DUAS REPRODUÇÕES DIGITAIS:
Um dos núcleos da exposição agora apresentada no Atelier-Museu é dedicada ao bestiário do artista, que na área da estampa, ou da obra gráfica (printmaking) começa a nascer em 1952, com o Elefante reproduzido em cima, gémeo de um Javali, também exposto.
dois postais: imagens digitais de duas reproduções tipográficas de dois originais gravados. Elefante, 1951, linogravura (14,5x17cm), e em baixo está Touro, de 1959, água-forte a duas cores.
Neste caso, os dois animais são o tema único da estampa (uma linogravura, de que se expõe também a matriz, o elefante), e daí a ideia de bestiário, porque, de facto, em diálogo com personagens humanos os animais surgem na segunda estampa do autor (O galo morto, 1948, linóleo), e aparecem os touros e cavalos nas duas Tauromaquias de 1950, litografias, e as pombas (obviamente da paz - ao tempo da Guerra Fria) em três litografias com meninas de 1951 - duas estão expostas. Os seguintes bichos serão já de 1957, passando-se à gravura em cobre (Gnu ou Boi-cavalo, dois buris, e um Porco-Espinho, idem, contemporâneos do Burro e do Perú, ambas águas-fortes e ambas expostas).
A série continua, e os animais (Os Animais Sábios - o nome aparece nas esculturas em barro da individual de 1950 ) prolongam-se até ao presente.
Em ambos os casos as obras expostas são gravuras/impressões/estampas originais (são originais e múltiplos como é próprio da gravura ou obra gráfica de autor) e foram agora reproduzidas tipograficamente como postais, foram multiplicados como reproduções, de pequeno formato e acessíveis: aqui na página reproduzem-se digitalmente (scanner) as reproduções. São três modos muito diferentes da existência, da condição material e do fabrico de imagens. Estas técnicas em que a mão se alia a uma impressão mecânica foram precedidas no Ocidente pela iluminura, que era um original pintado manualmente e que se repetia, também como possível múltiplo, nos dias longos dos conventos.
Nota: A trapalhada que o Benjamin criou com a sua reprodutibilidade técnica e a perda da aura ainda não assentou. "Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra." (...) "O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte."
Entre a obra única (pintura, desenho) e a reprodutibilidade técnica (a impressão tipográfiaca) existem os objectos (as criações artísticas) que são pelas suas condições materiais de produção ao mesmo tempo originais e múltiplos (não são reproduções): a escultura fundida (em bronze, em especial) é um caso exemplar, as estampas/obra gráfica estão na mesma situação, e as provas fotográficas de autor igualmente. (O linóleo, a litografia e a serigrafia não são gravuras mas são estampas/obras gráficas). A reprodução escolar do Benjamin tem tido efeitos muito perniciosos.
Mais animais:
Peru, 1957. Ed. Gravura (uma tiragem de 450 para presentear todos os sócios). 9x9,5 cm
Burro, 1947, água-forte (20x26cm)
Gnu ou Boi-cavalo 1957 (9x16,2cm) e Porco-espinho, 1957 (9,3x16cm)
Touro 1959, e Touro 1960, água-forte
Galo, 1959, água-forte
Mono sábio, 1962, xilogravura a cores (não exposto) e Macaco, 1958, buril
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faltam, até 1963, as ilustrações do Grande Fabulário (8), de 1958, e Hiena, 1958?
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sumário:
Elefante e Javali, 1951
Peru, Burro, Gnu (2) e Porco-espinho, 1957
Macaco, 1958
Touro (2) e Galo, 1959
Touro, 1960
Macaco, 1962
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OBRA GRÁFICA 1955 - 1957.
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Casamento, 1961
técnica mista, prova não numerada e não assinada, provável prova de ensaio de obra não editada (exemplar único? - um original sem múltiplos)
Outro "Casamento", 1961
xilogravura a duas cores, 25,7 x 35,7 cm (papel 42x52,5 cm). Atelier Gravura, ed. do Autor (tiragem de 30 ex.). Na foto, uma prova de ensaio.
Obra exposta no IV Salão de Arte Moderna, SNBA, 1961 (cat. nº 82).
Neste caso, a gravura é contemporânea de uma pintura com o mesmo título:
Casamento, 1961
óleo sobre tela, 65x100 cm, col. part.
Exp.: 1962, Gal. Diário de Notícias, Lisboa (bibliog.: Cat. Rais. I, nº 214)
Estampa/ gravura: original e múltiplo
(Começo de tentativa pessoal de resposta (ou comentário) às perguntas propostas a respeito da exposição do Atelier-Museu Júlio Pomar “Edição e Utopia - Obra gráfica de Júlio Pomar”, que abriu ao público no dia 24 de Outubro. Contribuições para que se volte a saber o que é uma gravura original, ou um original gravado, uma estampa, um original múltiplo)
Uma gravura e uma fotografia, impressas a partir de uma matriz ou de um negativo ou ficheiro digital, são originais (e podem ter/ser ou não múltiplos): a gravura/estampa no caso da edição limitada, numerada e assinada pelo autor, que acompanhou a tiragem ou aprovou uma impressão certa a multiplicar (o "bom à tirer"); a fotografia no caso das provas vintage e de trabalho, e das provas de autor cuja impressão autorizou e assinou (ou não).
Com a gravura e a fotografia não há - ou há pouco - lugar para o fetichismo do exemplar único, e o número de provas é uma convenção que importa apenas ao mercado (e ao coleccionador) - para além da eventual questão do desgaste material da matriz no caso da gravura).
A pintura e o desenho multiplicavam-se (e multiplicam-se) através da cópia manual - que foi durante muito tempo socialmente aceite pelos coleccionadores, pelas cortes e academias, e pode ser ainda hoje uma forma de aprendizagem (o falso é outra coisa, uma variedade não autorizada da cópia).
A gravura de reprodução foi depois a grande fórmula de circulação de informação visual sobre as obras de arte (pintura, desenhos e gravuras) antes da invenção da reprodução fotográfica, a preto e branco, depois a cores; a gravura de autor é outra coisa e tem a sua história própria - aliás, as suas histórias próprias para cada uma das grandes espécies de gravação (em pedra litográfica, madeira e metal) e de impressão-tiragem (em geral em papel).
A gravura e a fotografia são processos de criação em que a possibilidade de multiplicar faz parte da sua especificidade material e processual e da sua originalidade, da sua condição ou natureza, se se quiser. A gravura e a fotografia são formas de criação de imagens originais, antes de serem formas de multiplicação ou reprodução de imagens. Esta exposição pode ser uma oportunidade para enfrentar algumas questões.
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Nota 1 - 22 Out.
Comentário: "Havia a ilusão nos anos 60, quando se começa a multiplicar, de que haveria uma democratização da arte, o que não é verdade" (citação, DN).
Vamos lá ver: democratização da arte havia mesmo (questão de multiplicação de originais - mas neste caso cada múltiplo é um original: "milagre" da gravura e da fotografia; e/ou questão de distribuição e acessibilidade, isto é, de preço).
A ILUSÃO - que se perdeu logo na década de 50, ainda antes da criação da Cooperativa Gravura, em 1956 -, ilusão neo-realista militante, era contar com que a democratização da arte fosse um caminho para democratizar o país; contar com que a arte para o povo fosse politicamente eficaz, num processo directo de causa a efeito.
Mas multiplicar (produzindo estampas e fotografias, tal como editando livros, discos e cópias de filmes - e são multiplicações de diferente natureza: consulte-se o Gérard Genette, sobre os regimes de imanência e de transcendência da obra de arte: o regime autográfico e o regime alográfico, a partir de Nelson Goodman - ver L'OEUVRE DE L'ART, Seuil, 1994 1997, 2 vol.) é de facto um acto de democratização.
Bota 2 - 23 Out.
Uma pergunta: quando e como os artistas (alguns artistas) deixam de reconhecer a vontade de democratização da arte e se vão dedicando, ao longo do séc. XX, a coisas noutra direcção: à perseguição da ideia de vanguarda (a busca da novidade, o ir cada vez mais longe, fazer o que nunca foi feito), vanguarda essa que passa da margem para o centro do espaço e do mercado institucional; à especulação sobre as ideias de morte da arte e de autonomia da arte - ideias só em parte contraditórias ou divergentes; e, o que é o mesmo por vários caminhos, à produção de arte sobre arte (Greenberg), à busca da de-definição da arte (Harold Rosenberg) ou à prática da anti-arte (Thomas McEvilley, 2007, The Triumph of Anti-Art).
Outra pergunta: além da importância que tem para os próprios artistas (e/ou professores, mediadores vários, comerciantes de arte, etc), como se pensa hoje a necessidade social da arte?
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https://actualitte.com/article/39866/tribunes/julio-pomar-a-lisbonne-un-parcours-hors-des-sentiers-battus
Le jeudi 30 mai 2013, ActuaLitté, Les Univers du Livre, Paris: https://actualitte.com/
Júlio Pomar est probablement le plus grand peintre portugais vivant. La ville de Lisbonne lui consacre aujourd'hui un « atelier-musée » aménagé par le grand architecte Álvaro Siza. Son fils, Alexandre Pomar, historien d'art et critique, nous fait partager l'événement que constitue l'ouverture au public de ce lieu exceptionnel.
Les Éditions de la Différence ont publié de nombreux ouvrages sur l'oeuvre de Júlio Pomar , plusieurs livres dont il est l'auteur, un grand nombre d'estampes à tirage limité et une série de 4 « Tigres » en bronze dont un exemplaire figure à l'entrée du musée.
« Un parcours hors des sentiers battus »
"Il existe un nouveau lieu de contemplation et de plaisir à Lisbonne : l'Atelier-Musée Júlio Pomar, situé, rua do Vale, dans le vieux quartier du Bairro Alto.
Le lieu, dont on avait prévu dès l'origine la future transformation en musée, avait été conçu comme un grand atelier destiné au peintre Júlio Pomar. Pour l'artiste, âgé de 87 ans, dont la dernière exposition d'œuvres inédites s'est déroulée en novembre 2012 à Porto et à Lisbonne, le défi que représentait l'appropriation de ce vaste espace aménagé par son ami, le célèbre architecte Álvaro Siza, était de taille.
La beauté du lieu est spectaculaire. L'architecte a conservé la morphologie de l'ancien bâtiment qui était un entrepôt. Il a rétabli le rythme régulier des fenêtres de la façade. Il a opté pour un accès latéral tout en ouvrant une cour là où on rangeait, voilà un siècle, le vieil omnibus tiré par des chevaux. Il a agrandi une petite mezzanine sur trois côtés du bâtiment, ouvrant l'espace jusqu'au toit aux larges poutres en bois. Il n'a pas touché aux fenêtres qui inondent de lumière l'intérieur et a fait peindre l'ensemble d'un blanc pur et frais.
Fotos Luisa Ferreira
Après la nomination d'une jeune directrice, Sara António Matos – sculptrice et conservatrice de musée – l'Atelier-Musée a été inauguré par une exposition de la donation de l'artiste, complétée par des œuvres majeures provenant de collections privées ou publiques. L'accrochage non chronologique du travail du peintre, montrant différentes séries et différentes périodes représentatives de sept décennies d'une production ininterrompue, jamais confortablement installée dans une « image de marque », est source de surprises et de rapprochements inattendus.
Le grand cycle brésilien, aux couleurs puissantes (de la fin des années 80), régulièrement revisité, cohabite à l'entrée avec la construction gestuelle des formes en mouvement des années 60 (les corridas à cheval) ; à l'étage, la période néo-réaliste de l'après-guerre fait face aux pratiques d'assemblage et de collage et à l'érotisme explicite du travail des années 70-80, suivie du cycle des Tigres.
Bénéficiant d'une totale autonomie et s'inscrivant dans un dialogue fructueux avec l'artiste, Sara A. Matos nous fait découvrir de vieilles gravures inédites, des études, des sculptures, des peintures, créant un mélange harmonieux des supports et des thèmes.
À travers un parcours hors des sentiers battus, elle partage avec un public nombreux, venu vivre une expérience artistique communicative et gratifiante, sa découverte de l'œuvre de Júlio Pomar. "
Par Alexandre Pomar (traduzido e adaptado por Colette Lambrichs)
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Retrouver Julio Pomar, aux éditions de la Différence
(versão original)
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR
Deveria ter sido um grande atelier particular do pintor Júlio Pomar, prevendo-se desde início a utilização posterior (póstuma) como museu. O projecto começou no ano 2000 por iniciativa de João Soares, então presidente da Câmara de Lisboa. A Assembleia Municipal aprovou logo a compra do edifício, um antigo armazém nas imediações do Bairro Alto que servia de depósito de livros a uma velha editora (a Sá da Costa), e recomendou ao artista a criação de uma Fundação com o seu nome que viesse a receber uma ou mais doações do seu acervo.
Escolhido pelo artista uma amigo arquitecto, o famoso Álvaro Siza, as complicações técnicas e burocráticas da iniciativa municipal foram retardando o projecto, de tal modo que as obras de renovação-adaptação do lugar só se iniciaram em 2007. Nunca houve, porém, entraves políticos, e os três seguintes presidentes da Câmara, de diferente formação política, passando-se do PS ao PSD e de novo ao PS, apadrinharam sempre o projecto com novos passos tendentes à concretização da obra. Em colaboração com a Fundação Júlio Pomar, que foi instituída em 2005 e patrocinada desde então pela CGD, o banco público, o que lhe garantiu as condições suficientes de funcionamento para a organização de exposições noutros lugares do país e no exterior.
A abertura ao público aconteceu 13 anos depois, a 5 de Abril de 2013, já não como atelier mas imediatamente como museu, conservando a designação de Atelier-Museu, como memória do projecto inicial e em acerto com as características do espaço. Se o lugar não pode dispor de todas as valências (funcionalidades) que se atribuem agora aos museus, é uma magnífica galeria de exposições - é o espaço museificado, mas não congelado no tempo, de um atelier ideal. Para o pintor, com 87 anos, que fez uma última exposição de obras inéditas em Novembro de 2012, no Porto e em Lisboa, o desafio de habitar o vasto espaço do atelier era já menos atraente do que ver nascer o seu museu, diante da sua residência em Lisboa (Pomar conserva uma outra residência atelier em Paris).
Álvaro Siza manteve a morfologia do antigo armazém, recuperando na fachada a regularidade do ritmo das janelas que perdera com o tempo. Optou por um acesso lateral, abrindo um páteo onde se acolhera há um século o velho "chora" (transporte colectivo anterior ao eléctrico, de tracção animal). Ampliou um pequeno mezanine para envolver agora três lados do pavilhão, que permanece um espaço aberto até ao antigo telhado de largas vigas de madeira. Manteve as janelas que inundam de luz o interior (há ainda situções de iluminação a trabalhar) e pintou tudo de um branco puro e fresco. A obra arquitectónica é, a par da obra de Júlio Pomar, a outra atracção do lugar.
Escolhida uma jovem directora, Sara António Matos, com formação em escultura e curadoria, o Atelier-Museu abriu com uma antologia generalista que parte do acervo e se completa com algumas pinturas maiores, de diferentes colecções privadas e públicas. A ordenação não cronológica das séries e dos períodos do trabalho do pintor, que leva sete décadas de produção ininterrupta e nunca estabilizada numa qualquer confortável “imagem de marca”, é propícia às surpresas e confrontações. O grande ciclo brasileiro, de cores poderosas (do fim dos anos 80, com revisitações sucessivas), convive à entrada com a construção gestual das formas em movimento nos anos 60 (as corridas de cavalos); em cima, o período neo-realista do Pós-Guerra confronta-se com as práticas da assemblage e da colagem e o erotismo explícito dos trabalhos dos anos 70/80, com passagem ao ciclo dos Tigres. Com total autonomia e em diálogo feliz com o pintor, Sara A. Matos dá a ver velhas gravuras inéditas, estudos do natural, esculturas e pinturas, associando a diversidade dos suportes e dos temas com hábil fluência. A sua descoberta da obra do pintor, através de um itinerário indisciplinado e original, é partilhada com sucesso pelo público que aflui em bom número para uma experiência da arte que é comunicativa e gratificante. Há um novo lugar de contemplação e prazer em Lisboa."
Alexandre Pomar
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Arquivo, Diário de Notícias, 9 Abril 1982
O 2º de 4 artigos sobre a exposição "Anos 40" (edição anotada em: academia.edu...)
Arte portuguesa dos anos 40
«A geração da ruptura»
«Numa abordagem cronológica da década de 40, por três acontecimentos artísticos, de bem diverso relevo, é necessário começar para a compreensão do que irá acontecer:
A Exposição do Mundo Português, onde participam os mais oficiais dos modernistas, numa acentuação do seu pendor decorativo - compromisso de Ferro com tendências menos cosmopolitas que o pressionam do interior do regime, ela prenuncia a involução do gosto em direcções nacionalistas e folclóricas que o responsável pelo Secretariado de Propaganda Nacional tentará equilibrar até 45, para ceder o lugar a outros em 49;
A exposição de António Pedro e António Dacosta [com Pamela Boden, na Casa Repe], primeiro acto com sequência coerente do surrealismo em português - de algum modo a resposta à euforia de Belém e o afirmar de um mundo em crise, embora sem ruptura com os salões oficiais onde o primeiro já participara em 39 e continua presente em 40, 42 e 44 e onde o segundo recebe o Prémio Souza Cardoso em 42 (a eles se juntou Cândido Costa Pinto, também autor de uma pintura surrealista e metafísíca, mais hábil e também mais superficial);
A retrospectiva de Abel Salazar na SNBA, a que se pode associar a presença de um quadro de Portinari no Pavilhão do Brasil em Belém, por ambos interessarem aos escritores que preconizavam uma pintura de protesto polítíco-social.
Nesse ano de 1940, apogeu do regime, a vontade de ruptura, estética e ideológica, é ainda protagonizada por homens de gerações anteriores que se manifestam contraditoriamente, uns presentes nos salões de Ferro, outro preso a práticas pré-modernistas.
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