Para Manuel Torres, Manuel Vinhas, Jorge de Brito, amigos e coleccionadores, e também José Sommer Ribeiro
De uma maneira geral trabalho sem custo, pelo menos oito horas por dia, e isso porque consegui uma fusão de trabalho em si com o jogo do prazer criativo. Essa devia ser, aliás, uma possibilidade oferecida a todas as pessoas, ou conquistada por todas as pessoas. Entrevista de Fernando Dacosta, DN 20-7-1978
Nunca fui de fazer grandes exposições. Para mim, expor é secundário, embora todas as pessoas gostem de ser gostadas. O expor é uma situação de oferta, de comunicação com os outros, de amor… É mais estimulante a palavra que se recebe de alguém que não se conhece do que o discurso oficial. Idem
ANOS 60, PISO ZERO
Como dividir em períodos ou etapas a continuidade da pintura e a sua mudança constante e aparentemente súbita? Ou em tópicos de um itinerário. Dispôs-se de uma cronologia das obras e de um espaço muito específico, difícil. Aqui ir-se-á fazendo também referência a telas ausentes associadas às que se mostram, e propõe-se aos interessados a simultânea consulta dos dois volumes do Catálogo Raisonné, também acessíveis no espaço do Atelier.-Museu.
O piso zero, dedicado aos primeiros anos 60, organizou-se em vários núcleos temáticos, cenas de trabalho, touros e cavalos, animais, paisagens, pontuado por algumas relevantes peças soltas e também pela irrupção desencontrada mas em diálogo de três obras de data posterior: um retrato de Teresa Marta, 1975; um Auto-retrato de 1972 numa composição dupla e reversível acompanhado o artista-palhaço com uma cara de macaco (optou-se por colocá-lo por cima), e, já de passagem para o piso superior, a emblemática serigrafia Graça de Abril, de 1974.
As peças soltas, e são todas importantes, surgem isoladas, numa outra triangulação: o Carro das Mulas (antiga colecção Igrejas Caeiro, exposto no Salão da Primavera de 1960), que divide a entrada com uma grande Cena de Praia certamente nocturna, 1959-60 (col. CAM-FG), e nelas sobrevive uma fase negra e ibérica que quis associar Goya e Columbano. Note-se a densidade matérica do óleo, e a luz que emana da cor sombria. Longe, o Casamento de 1961, grupo em movimento que se conjuga com uma ausente Procissão (1962, CR nº 222 ) e com os outros casos em que a imagem vista aparece e irrompe, frontal, e se detém sobre o espaço plano vertical e abstracto da tela (Metros e Corridas de Cavalos tratam a mesma “questão”). E algo escondida à entrada a Batalha d’après Uccello, de 1964, numa formato 50x150 cm que o pintor usará com frequência (Pomar irá relacionar os seus Maios aos guerreiros do preferido mestre italiano). Observem-se as duas caveiras em Casamento, também muito presentes numa das gravuras do mesmo assunto, que não foi editada; depois em Parade, 1966 (nº 343) - foi um motivo muitas vezes desenhado do natural no Musée de l’Homme. E é interessante que aquele tenha sido o mais caro quadro vendido em leilão, depois do Almoço do Trolha.
Nas paredes da black box, Tauromaquias e Corridas, que são as séries mais numerosas e conhecidas, comparecem de modo sintético: são as telas mais emblemáticas desta fase de interesse pela conjunção-explosão de forças e velocidades, com a gestualidade do óleo leve, fluida e vibrante. Mais abundantes são as cenas de trabalho do povo, as paisagens, em geral ignoradas, os animais (de estimação) que também estão na terceira parede da caixa.
Os temas do trabalho vinham de 1959 (as Fonte da Telha) e prosseguiram até 1963: pescadores e sargaceiros, a recolha das redes, a pisa do vinho, faltando aqui a debulha, 1961, em que o pintor insistiu mas agora não se alcançou.
Não será um intencional programa antropológico ou social, são espectáculos vistos, situações observadas em férias na praia (Albufeira 1961, três meses) ou nos campos - férias de observação e de trabalho quase sempre, e ainda a interessada relação com o povo, que também continuava muito presente na gravura. Pisa I, de 1961 é uma de três, até 63, certamente vistas em Aregos, Resende, Viseu, e esta pertenceu ao amigo e cúmplice Manuel Torres, gestor da Cooperativa Gravura e detentor do Almoço do Trolha, que o recebia na sua quinta e na moradia do Restelo, que teve decorações exteriores. Irrompem no espaço vago, aberto, indefinido do “fundo” seis rostos frontais que lembram Goya - lembre-se Mogiganga, ausente (1962, Col. Manuel de Brito / 111), que é assumidamente uma variação sobre uma gravura de Goya, cena burlesca de tourada, passada do preto e branco à explosão de vermelhos. Há outras situações de movimentos colectivos em quadros singulares: além de Casamento e da Procissão, importaria ver Queimar o Judas, de 63 - e as cenas de touros são também trabalhos e espectáculos populares. Fazem falta as vistas da gente de Marrocos (Rua Moura, Berberes e Canto Berbere também de 63), três quadros da viagem com Alice Jorge em 62. Já em França, houve Parade (desfile de máscaras ou caveiras) e Foire du Trône (feira popular, uma “fête foraine”) de 66, com várias variantes destruídas (Relatórios de Bolseiro e Void III).
O núcleo das paisagens aparecerá como uma surpresa - nunca construíram séries, mas foram existindo ocultas entre outros interesses. Existiram as primeiras já em 1952-53 (Azenhas do Mar, Ericeira), coincidindo em discretos formatos intimistas com obras militantes e encomendas decorativas desses anos mais difíceis. A paisagem é para Pomar um género raro; tentado na segunda metade da mesma década de 50, com variável resultado, Lisboa (a Avenida, o Coliseu) vista a partir do 4º andar da Rua da Alegria. Existe de 1958 um interessante e amplo Cais da Ribeira (Col. Mário Soares).
Aqui abriu-se a secção com uma das duas vistas de Barcos no mar de Albufeira, 1962 certamente nunca expostas, a que deveria associar-se uma Figueira “abstracta” da colecção DN / Globalmedia (vejam-se dois desenhos vindos de todo um caderno de “estudos”, na black box); acompanharam -nas cenas de pescadores. Seria um possível núcleo referente a Albufeira - e surge a ideia de toda uma exposição futura de pinturas de viagem, de lugares visitados e de férias, de praias, paisagens e motivos locais, que passaria pelas Astúrias, 57-59, até aos Mascarados de Pirenópolis e aos Índios da Amazónia de 1986-90 sempre séries surgidas de convites e/ou de oportunidades de veraneio activo.
Continuando as paisagens mostradas, temos a muito movimentada Paisagem de Lisboa de 1961 (col. Jorge de Brito), e logo a pequena Ponte D. Luiz, Porto,1962 (antiga colecção Alice Jorge), que teve de isolar-se no piso superior. As pontes, nocturnas, foram várias e uma de grande dimensão, perdida, foi a Pittsburg, concurso então mais famoso que Veneza; outra estará em Luanda, já de 1965 (não fotografada), retomando o tema numa encomenda de Manuel Vinhas: “Ficou pronta e entregue - afinal não é para o Porto, mas para Luanda, para o Banco Comercial de Angola. Deu jeito (para pagar as férias!) E tive prazer a fazê-la; ficou uma coisa cinzenta, muito pouco definida; fui saltando de fotografia para fotografia, e fi-la relativamente depressa” (carta de setembro 65, 2023). É simultânea dos três quadros dos Beatles (“penso continuar a série, tenho impressão que vai dar pano para mangas”, idem - mas foram destruídos).
Lisboa está também presente em Visto da Janela, 1966, que poderia ser entendida como uma “pintura abstracta”, que não é - talvez memória da casa de infância às Janelas Verdes e onde acima à direita se vislumbra o Tejo e um barco (certamente inédita até 2004, col. Ilidio de Pinho, vindo da antiga col. Augusto Abreu / Burmester). Por fim Saudades de Lisboa, já de 1968, inédito também até 2004 (“Autobiografia”, Sintra Museu Berardo) com título atribuído por Manuel Vinhas, que encomendou a tela, e veio de Paris, paisagem imaginada com um rio amarelo. De 1976 conhece-se Belle-Isle-en-Mer (col. FJP/AMJP), que é obra charneira, vista do lugar (em férias), e corpos em metamorfose, fim de ciclo e começo de outro.
Vejam-se na caixa negra, datados da chegada em 1963, pequenos desenhos da Pont des Arts, junto a apontamentos do Metro e às praias da Caparica, paisagem humana, do ano da partida.
Outro núcleo inesperado, os animais, que estavam presentes desde o início da carreira. Dois Chimpanzé 1962 em grande formato e os pequenos Mocho 1960 (faltou a Coruja, col. DN) e Abutre, de Paris 1963 (haverá outros Mochos em 1972, diversões muito a divergir dos Banhos d’après Ingres e dos Retratos). Os símios, com Mono Sábio/Singerie, foram mostrados nas exposições das Galerias DN e Lacloche (“Tauromachies”), eram obras maiores, e os dois expostos são retratos de corpo inteiro que nos olham de frente, também únicas figuras isoladas na pintura desses anos de intensa e vibrante produção. O terceiro vem de uma tabuleta de comércio vista em Paris ou fotografada. Há macacos desde o princípio, no livro Bichos, Bichinhos e Bicharocos, com Sidónio Muralha e Francine Benoit, 1948, e logo se multiplicaram os “Animais Sábios” em cerâmicas e pequenas esculturas de imediato sucesso (exposições de 1950 e 1951, quase todas desaparecidos). Da chegada a Paris datam cadernos de desenhos de observação, com macacos e inúmeros outros bichos (apontados na black box), e sempre lhes está associado o humor, que com a expressão erótica é uma das linhas condutoras (linhas mestras ?) da produção do pintor. Houve também pequenas Porquinhas / Truies amáveis em 66, intervalos de trabalho livre, oferecidas e agora inacessíveis. Viriam muito mais tarde os ciclos de bichos antropomórficos, os macacos humanizados e trocistas e os porcos ligados às aventuras de Ulisses e Circe, que foram uma vez arrumados por Marcelin Pleynet entre os “Animais de Companhia” (Sintra 2004). O largo bestiário desenhado liga o gosto da observação, o exercício da mão e do olhar, e o humor.
Continue-se o piso zero com a presença de dois D. Quixote (de entre os seis do ciclo que surgiu por extensão das ilustrações e das gravuras, 1960-63), um deles inédito e o outro, com os Carneiros, é uma grande pintura dinâmica e explosiva onde o cavaleiro avança sobre o espectador, como avançará D. Fuas, noutro programa posterior (1988-89 em Pinturas de História, 2022). Associa-se-lhes a escultura Guerreiro, mas que ficou distanciada. Ao lado estão algumas esculturas-assemblages de 1967, outros volumes esses “abstractos” que agregam objectos encontrados, interrompem o curso da obra pintada e terão consequências indirectas nos Banhos Turcos e Retratos e depois no ciclo das colagens de telas recortadas.
A escultura em ferro associada ao Quixote (Guerreiro - há acima um Torso forjado, pequena peça singular) é uma muito diferente prática escultórica depois dos retratos modelados de amigos, nos anos 40/50, e da cerâmica figurativa que fez desde início. Os ferros soldados como inovação vêm dos anos 30 (Picasso e Gonzalez), e permitem o desenho no espaço; com David Smith, Chillida, Mark di Suvero reanimam-se nos anos 50 no campo da abstracção, enquanto a “figuração expressiva ou existencial” ou biomórfica (1986 Margot Rowell) tem também largo curso paralelo em escultura. César é uma referência entre as duas vias. Mais que desenho, é em Pomar pintura no espaço, a preto e branco, precedendo a assemblage.
A ilustração foi desde o início uma actividade constante por cumplicidades literárias e encomenda editorial que equilibrava o escasso mercado - mas os desenhos para Pantagruel (65-66) foram uma iniciativa sua, a única entre os alheios convites. Mais tarde, desde 76, os desafios de Joaquim Vital (editor de La Différence e amigo, 1948-2010) associam-se a novas séries de pinturas: Tigres, o Corvo de Poe, A Caça ao Snak de Lewis Carroll, as Mães Índias de Pedro Vaz de Caminha, Carta do Achamento do Brasil. “A bem dizer eu não ilustro um texto: o texto sugere-me desenhos que o podem acompanhar e estes procuro fazê-los, para meu prazer, o melhor que posso e sei” (1980 Helena Vaz da Silva). A ilustração de encomenda, cumprida em geral sem obrigação descritiva, é ocasião de “experiências” que dão lugar a novas obras e direcções - a relação com a literatura é um continente que de que se fez a revisão em 2021 e 22 (“Os Livros de Júlio Pomar” e” “Pintura de Histórias”, exposições e catálogos do Atelier-Museu).
Na caixa negra, muito resumidamente, está o desenho de observação - apontamentos, estudos - que conservou nos pequenos cadernos de bolso e de viagem e de férias (Marrocos, Albufeira, Caparica, etc) e em especial da chegada a Paris: Musée de l’Homme, Jardin des Plantes e Menagerie, o zoo, Jardin d’Aclimatation; a Pont das Arts, o Louvre, anotações de imagens e textos de reflexão, citações. Mas é disciplina autónoma nas “Courses”, nos Catch de 65-66, no referido Pantagruel, e nos Retratos a Lápis que vão de 1970 a 77. Toda uma parede foi dedicada aos desenhos eróticos: mostram-se Étreintes de 60 levadas à II Gulbenkian, Nus de 61 (exposição de grupo “O Modelo” na Galeria DN) - os nus femininos vêm de 1947, da prisão (a Onda), e motivaram logo rejeições e defesas. Há Étreintes e Tauromaquias significativamente juntas num mesmo caderno de 63. É uma linha de trabalho e de vida que acompanha toda a carreira. Corpos. Femininos, cúmplices, mas os sexos são ambíguos em dois desenhos passados a litografia da série Catch (foi a figura ser masculina que bloqueou a versão em pintura?) Aí se incluíram também as ilustrações para A Selva, de irrupção frontal da cor, figuras fragmentas, narrativas. E encerra-se o piso, ao lado, com uma selecção variada de gravuras, onde se verá que a gestualidade da pintura se liga á materialidade do desenho gravado com os ácidos, em especial nas Tauromaquias.
ANOS 60/70, PISO 1
No piso superior ficaram, num topo da galeria, um Rugby e um Maio, emblemáticos do tempo de mudança. As séries foram antes mostradas no Atelier-Museu. ( REF ) A seguir, mas anterior no tempo, vem toda uma abordagem à abstracção, do Metro aos Estudos para tapeçarias de 1967, de que se falou antes.
É significativo ver a pontuação da mudança da obra, a simultaneidade de direcções, na Mélée (Rugby) de 68, no retrato de Manuel Vinhas e no primeiro Banho Turco, todos da mesma data (e em baixo ficou Saudades de Lisboa). E logo Mesa dos Jogos 69-70, de secções móveis, passando à Superfície Vermelha de 72 (de uma série de sete em dois formatos, um deles grande), um corpo em recorte em arabesco sobre plano liso em cores unidas, que está já na sequência dos primeiros retratos (Manuela e Viana são de 1970), e é paralelo em data a Tétis. Todo este núcleo que vai das odaliscas de Ingres aos retratos íntimos é uma marcação conjunta de dois conjuntos temáticos onde vai longe a exibição do erotismo. A influência de Matisse juntara-se ao agrado pela Pop, e a relação com a estética do cartaz foi evidente em Viana, Almada, etc - mas nunca se incluíram estas obras, vá-se lá saber porquê (é cegueira dos comissários e talvez vontade de exclusão) nas abordagens nacionais à Arte Pop, de 1997, “The Pop’60’s - Travessia Transatlântica”, de Marco Livingstone com Alexandre Melo, no CCB (https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2007/06/1997-portugal-p.html) e de “Pós-pop. Fora do lugar comum - desvios da Pop em Portugal e Inglaterra, 1965-1975” de Ana Vasconcelos e e Patrícia Rosas na Gulbenkian em 2018. (Ver “Anos Pop” em 2023 A. Pomar).
Viu-se que o retrato fora ensaiado com êxito em 67-68, dois de encomenda (José Ribeiro da Cunha, então já falecido, e Manuel Vinhas, aqui exposto e é homenagem ao amigo e coleccionador) e outro em liberdade (a amiga Fátima, Lopes). A eles regressa pouco depois longa e diversamente (Manuela, 1968-70; Eduardo Viana, 1970; Almada Negreiros, 1972, Fernando Pessoa e Camões, 1973; outras e outros amigos; os auto-retratos), já relacionados com os Banhos Turcos e já em paralelo em pintura e desenho. “A semelhança do retrato é para mim fundamental”. “A semelhança funciona como a marca. É como o nome escrito. O resto vem quase involuntariamente e tem por função ‘accrocher’ (prender) a personagem à tela” (1991 H.V. Silva 1991).
(A propósito de Manuel Vinhas, lembre-se também Jorge de Brito, não retratado. Aquele industrial e proprietário - Pomar era convidado para as tentas no Zambujal -, outro aventureiro das finanças, ambos amigos pessoais e coleccionadores desde os anos 50, também de vários modos mecenas, até às mudanças de 75, e com parte substancial da colecção Jorge Brito se fez o início do CAM - várias obras da exposição são ou vieram das respectivas colecções.)