Passou uma semana, jé é de copiar o texto da Joana Beleza, na Revista de dia 15:
arte
O GAUDÍ DA BOAVISTA
Há mais de 15 anos que anda a forrar a casa com azulejos. No princípio era um “entretém” para ocupar os dias da reforma, mas hoje é uma missão sem fim à vista. Conhecido como o Gaudí da Boavista, Jorge Soares constrói painéis com centenas de peças partidas.
TEXTO DE JOANA BELEZA FOTOGRAFIAS DE NUNO BOTELHO
AZULEJO - Jorge Soares e a casa que cobriu por completo com painéis de azulejos
A ideia inicial era decorar as paredes exteriores da então casa de férias, perto da praia de Santa Cruz, Torres Vedras. Jorge Soares tinha acabado de se reformar e nas traseiras da pequena vivenda amontoavam-se restos de azulejos recolhidos ao longo dos anos em vazadouros e lixeiras. Não guardou datas exatas na memória, mas sabe que certo dia, no fim dos anos 90, olhou para uma peça de cerâmica caída no jardim e nela viu um raio de sol. Logo ao lado, duas gaivotas. Colou-as num recanto da churrasqueira e, quando deu por si, estava a escolher azulejos para fazer um cão. Hoje, ao fazer a visita guiada à casa, quase não abranda o passo perto destas obras simples. Até porque gosta de mostrar e falar das grandes figuras que concebeu na frente da moradia. Sereias, gatos, cães, elefantes, girafas, gaivotas, homens, mulheres, esqueletos, são parte de um bestiário com centenas de azulejos partidos que dão cor e forma à moradia que Jorge Soares batizou com o nome de Solar dos Jorges. Onde antes havia cimento à vista hoje existem padrões e histórias por descobrir.
“Se olhar bem para a casa vai reparar que esculpi ou colei placas em vários sítios com três datas: 1942, ano em que nasci, 1972, ano em que comprei esta casa e 2042, ano em que farei o último painel de azulejos”, diz — meio a rir meio a falar a sério — Jorge Soares. A verdade é que não sabe como parar a rotina que estabeleceu para si há mais de 15 anos e por isso um século parece-lhe razoável para dar por terminada a empreitada. “Acordo, faço a minha higiene e venho para aqui mexer nos azulejos”. Quando diz “aqui”, Jorge Soares está a falar de um alpendre, entre a garagem e o jardim, que o próprio construiu: um telhado arcaico, paredes de cimento com azulejos de várias cores e feitios colados uns a seguir aos outros, dois armários velhos, duas mesas de plástico, vários baldes com bocadinhos de azulejos partidos e outros tantos com água da chuva que Jorge aproveita para regar as plantas. Nada se perde, tudo se transforma nas mãos deste homem. Numa das mesas o painel que está a construir: um cavaleiro em duelo com um touro. Precisa de azulejos amarelos para fazer o chão e por isso remexe nos pedaços que selecionou no dia anterior. Fica largos minutos nisto, a escolher, cortar e limar as peças que melhor encaixam entre o corno do touro e o rabo do cavalo. É como se fizesse um puzzle. Olhamos e vemos um homem hipnotizado por montinhos de mosaicos.
DE FUTEBOLISTA A ARTISTA AUTODIDATA
Jorge Soares tem 72 anos e as mãos de quem trabalha na construção — dedos grossos, unhas sujas de pó, restos de cimento na roupa e os sapatos velhos. Viúvo, com dois filhos e quatro netos, que vivem na periferia de Lisboa, recebe o Expresso com entusiasmo. “Enquanto não chegavam, estive ali a escolher os últimos azulejos para terminar o painel do toureiro”. Percebe-se rapidamente que não perde tempo, vive focado no trabalho. Quando abre o portão e começa a mostrar os painéis que ocupam todos os muros da casa também percebemos rapidamente o que lhe interessa: a figura da mulher nua (são várias ao longo da casa), animais e aves, em especial a gaivota — “porque vejo muitas, estamos perto do mar” — e o corvo — “porque antigamente este sítio era o Casal dos Corvos” — e ainda a figura de São Jorge.
Diz a lenda que certo dia o santo, montado a cavalo, passava nas redondezas de uma cidade na Líbia, quando ouviu os lamentos de uma jovem princesa. Junto a um lago, a dama chorava e pedia socorro, perante um dragão furioso e esfomeado. De imediato São Jorge partiu em seu auxílio ferindo a besta com uma lança. Arrastado até à cidade, o dragão seria então morto, a troco da conversão de todos os habitantes ao Cristianismo. Assim foi — e é-o na frente da casa de Jorge Soares. Estamos perante a principal das suas obras: um painel feito com centenas de peças, em que São Jorge, a cavalo, convencido da sua força, mata um dragão verde, enorme, a seus pés. Tem perto de três metros de altura e ocupa a esquina da moradia térrea. Ao longe vê-se bem a figura do santo, altivo e vencedor, mas perto é que se repara: os olhos são dois pormenores de azulejos azuis, arredondados à mão, e o rosto são quase cinquenta azulejos partidos. Deixando o olhar percorrer a parede veem-se outros tantos pedaços de azulejos floridos a fazer a capa que envolve a figura do santo e depois os freios do cavalo, castanhos, perfeitos, assim como a lança, vertical, em direção ao dragão. O pormenor cuidado, a escolha de cada pedaço de cerâmica e logo ali a besta prostrada, contorcida de dores. “Sabe, eu tenho uma enorme admiração por São Jorge. Não era aborrecido como os outros santos, pelo contrário. Era um guerreiro, um homem valente, um vencedor. E esta admiração talvez tenha surgido porque eu também me chamo Jorge e, de certa maneira, também fui um lutador”.
Murais Animais, aves, homens, mulheres e datas são alguns dos detalhes que preenchem o imaginário de Jorge Soares. Em cima, um dos guardas da casa. Ao lado, o artista e São Jorge, um dos painéis mais complexos que já fez. À esquerda e em baixo, animais, figuras e paisagens compostos com dezenas de azulejos recortados. No Solar dos Jorges, onde houver cimento à vista cabe sempre mais uma figura em mosaico. O dono da casa só pretende reformar-se em 2042.
TRABALHAR SEM PARAR
Ambicioso, Jorge fez do sentido da vida um sinónimo de trabalho. Os primeiros ordenados foram ganhos no futebol, como jogador nos juniores do Benfica e, depois de ter passado por clubes de menor dimensão nacional, dedicou-se à carreira de treinador (fez o primeiro curso de treinador profissional em Portugal, em 1975) e em simultâneo foi vendedor ambulante de bebidas. Pelo meio ainda trabalhou numa empresa de refrigeração e, nos tempos livres, ao fim do dia, chegou a vender livros e produtos de higiene porta a porta. Tudo para poder proporcionar uma vida confortável aos dois filhos, que também se chamam Jorge. A casa comprada na Boavista foi durante anos albergue das férias da família. Hoje é difícil reconhecer algo que faça parte da construção original, de tantas alterações que sofreu. A mulher faleceu há mais de dez anos e nenhum dos dois filhos frequenta a casa. Jorge passa os dias sozinho, a “mexer nos azulejos e a pensar no passado”. “Tenho o jardim cheio de restos de coleções de azulejos e de velharias que encontrei em vazadouros por Portugal fora. O que é que posso fazer? Tenho de lhes dar um sentido”, justifica, contando que, ao reformar-se, no fim dos anos 90, tinha duas hipóteses: “Ou continuava a viver em Lisboa e ia jogar cartas para os jardins da cidade, o que não me interessava, ou vinha para a aldeia e entretinha-me como queria, à minha vontade, sem me preocupar com nada, nem roupa nem horários”. Optou pela segunda hipótese. Manteve a casa na capital, porque “dá jeito para visitar” uma vez por mês os filhos, mas o resto do tempo passa-o no Solar dos Jorges. Olha para os (poucos) muros que ainda não ocupou e começa a desenhar imagens a giz ou a procurar azulejos, num trabalho de minúcia e repetição que só cessa quando tem fome ou quando o interrompem.
TODAS AS SUPERFÍCIES DA CASA FORAM OCUPADAS POR FRAGMENTOS EM CERÂMICA QUE DÃO VIDA A SERES EXCÊNTRICOS, FRUTO DA IMAGINAÇÃO SINGULAR DESTE MESTRE DO AZULEJO
À medida que a casa se foi transformando numa espécie de selva multicolorida, a atenção de quem passava na estrada foi aumentando. São vários os que hoje, a caminho da Praia Azul, param para fotografar a vivenda, e a prova disso é o livro de visitas que Jorge guarda com orgulho e que contém mensagens em várias línguas. “Às vezes ando no jardim e vejo pessoas a fotografar a casa. Falo sempre com elas e pergunto se querem entrar. Muitas vezes entram e ficam aqui muito tempo a ver tudo, outras vezes fotografam com o carro em andamento e fogem ou escondem a câmara quando me veem”. Entusiasmado com os que param, oferece uma visita guiada à casa. Por causa disso até concebeu uma espécie de galeria onde expõe partes do seu passado: desenhos que fez na escola, fotografias da sua equipa de futebol, brinquedos e objetos velhos, histórias sem fim. Abre o livro de visitas e lê, entre risos, com alguma vergonha: “Isto é uma obra-prima do século XXI, coisa mais linda que nunca vi, adorei”, “por suerte topamos con esta fantastica y magica casa que a modo de santuario recoge un sin fin de artículos y curiosidades”, “o senhor Jorge é a grande última descoberta que fizemos em Santa Cruz. Ele, que passou a vida a descobrir, a criar e a transformar tudo o que encontra, com originalidade e grande entrega. Um bem-haja à sua criatividade. Que o Gaudí da Boavista continue!”. Jorge gosta das mensagens, mas ainda assim não parece reconhecer grande valor ao que faz. “Se olhar ao longe para aquele painel consegue ver uma bailarina e um cisne, mas aproxime-se e repare: é imperfeito, precisava de outro cuidado, não ficou bem”, e adianta: “Por isso é que nunca vendi nada. Já tive propostas para vender painéis mas nunca aceitei. Depois as pessoas iam olhar com atenção e ver que não estava bem feito e vinham cá devolver. Ia ficar triste com isso, portanto faço estas coisas só para mim”. Ponto final no assunto. O único plano que faz para o futuro é continuar a dar uso aos azulejos que enchem os vários baldes espalhados pelas traseiras da casa. E depois espera que os filhos não desfaçam a casa.
Mãos à obra Jorge Soares a preparar mais um painel, que vai construíndo com pedaços de azulejos separados por cores e feitios, em baldes espalhados pela casa
“Jorge Soares dedica-se a tempo inteiro a esta criação, não quer produzir painéis para venda, apenas quer integrá-los na casa e, por outro lado, não tentou simplificar os processos de trabalho. Usa materiais totalmente rudimentares: alicate para partir o azulejo e pregos para marcar as pedras. Dá a impressão que quanto mais tempo demorar, melhor”.
Quem o diz é o ex-jornalista e crítico de arte Alexandre Pomar, que anda há quase dois anos a trabalhar num filme sobre o Solar dos Jorges. Em parceria com o realizador Tiago Pereira, Alexandre optou pelo registo do documentário, porque considera que “o cinema é a melhor forma de fazer visitar o Solar dos Jorges” e “ele (Jorge Soares) fala muito bem sobre a sua própria obra. Tem um discurso hábil e engraçado sobre os painéis”.
Alexandre Pomar e Tiago Pereira têm agora em mãos a edição de extensas horas de material filmado, mas pensam ter o filme terminado ainda este ano, para ser apresentado numa primeira sessão em Torres Vedras e depois entrar no circuito de festivais de cinema.
Pomar deu com o Solar dos Jorges como tantas outras pessoas: por acaso. Ia a passar pela estrada e “aquela casa, aquela torre, aquela parafernália” de imagens e versos esculpidos num muro atraíram-no. Da primeira vez fotografou a casa e partiu. Voltou mais tarde para chegar à fala com Jorge.
arte ou não?
“A casa, no seu conjunto, é imediatamente importante, obriga-nos a parar e desperta curiosidade. Mas depois há a multiplicação das figuras”. Para o crítico de arte, a composição das figuras com o azulejo partido “não é comum” e Jorge Soares leva o trabalho a “um aperfeiçoamento muito grande”. Entre o pormenor de alguns painéis e o todo da casa, que tem vindo a crescer, o valor artístico oscila, mas é em todo o caso “evidente”.
“As fronteiras, o que é ou não é arte, não é um problema”, considera Pomar. Desde que existam pessoas e especialistas ou instituições que atribuam valor a determinado objeto “ele entra no espaço da arte porque é considerado arte (ver caixa). Este é mais um caso de um artista português a ser incluído nesse espaço. Esta figuração, estas composições, estes animais, são muito interessantes”. Segundo o crítico, o uso de fragmentos de azulejos escolhidos e partidos por Jorge Soares revela “um cuidado e um pormenor impressionantes para a criação de painéis figurativos, narrativos, muito complexos e sugestivos”.
“Além do azulejo partido, há uma acumulação de peças das mais variadas origens, louça, brinquedos, em princípio sempre coisas partidas e em mau estado, que Jorge Soares usa para preencher espaços vazios dos muros”. Alexandre Pomar considera que se está perante um recoletor e um colecionador excecional. “Com esta dimensão e escala, desenvolvendo um ambiente inteiro e integrado, nunca encontrei nada semelhante em Portugal”.
UM ARTISTA DIFÍCIL DE CATALOGAR
Para todos os efeitos, o Solar dos Jorges é uma casa excêntrica, ímpar, e sendo fruto da obra de um autodidata, faz com que, de certo modo, Jorge Soares possa ser inserido na “família” dos artistas outsider. Em geral, o termo “outsider” abrange os criadores sem qualquer educação artística, com destinos pessoais muito diferentes uns dos outros, mas com um traço comum: são pessoas que não se reformam, que não têm horários, que trabalham sem parar porque não sabem fazer outra coisa, com uma compulsão artística muito forte e pessoal. Jorge Soares tem todos esses traços: é autodidata e um produtor imparável. A sua obra é muito marcada por episódios da vida pessoal, as técnicas que utiliza são rudimentares e escapam a quaisquer regras formais. As fronteiras do que faz fluem entre a arte popular e a arte ingénua ou naïve. Para o crítico de arte Alexandre Pomar, o ideal seria designar a obra de Jorge Soares de “inclassificável”, um monumento “singular” no qual ainda está a trabalhar.
No entanto, a “arte outsider” acaba por ser o chavão que melhor se aplica porque é mais genérico do que conceitos como a “arte bruta”, criada pelo francês Jean Dubuffet nos anos 40 para designar formas de criação espontâneas completamente marginais aos circuitos oficiais da cultura e do mercado da arte. Dubuffet interessou-se sobretudo pelas obras de arte criadas por doentes mentais, o que fez com que o termo “art brut” ficasse muito associado às perturbações psíquicas. Já o termo “outsider”, designado nos anos 70 pelo crítico de arte Roger Cardinal, veio dar um contexto às obras de autodidatas que trabalham com toda a sua intuição à margem do circuito artístico e das academias, mas também dos hospitais psiquiátricos.
Na mesma senda de Jorge Soares existem dezenas de criadores internacionais de paisagens singulares, que começaram a ser valorizadas e preservadas no final do século XX. Por exemplo, as centenas de figuras esculpidas nas rochas das praias de Rothéneuf, no norte de França, pelo padre francês Adolphe Fouéré, ou as torres Watts, construídas em espiral em Los Angeles pelo emigrante italiano Simon Rodia, operário da construção civil, e que hoje são um dos monumentos mais fotografados da Califórnia. Tal como estes dois casos, que se tornaram icónicos na região onde foram produzidos, também o Solar dos Jorges tem importância para, segundo Alexandre Pomar, vir a ser “um género de museu do azulejo, preservado e aberto a visitas.” E esse será, no fundo, o caminho natural para o reconhecimento artístico desta obra. Incluir o Solar dos Jorges no espaço da arte portuguesa é continuar o trajeto que a arte outsider tem vindo a fazer em direção às correntes institucionais da arte, com os seus museus, feiras, catálogos e artistas. Jorge Soares será mais um criador singular a ter em conta.
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No Expresso diário de 2ª feira 18 com um melhor título:
A minha causa é decorar a casa