In "Americanos", ed. Rodrigo Betthencourt da Câmara, 2022
"A vida em trânsito"
A fotografia no Moçambique pós-independência foi uma grande aventura colectiva, antes de se tornar um puzzle de artistas singulares. Ficaram a marcá-la alguns fotolivros, que prolongavam exposições e gestos de cooperação internacional: Moçambique, A Terra e os Homens, de 1981 com edição em Roma, 1984; Karingana ua Karingana, 1990, publicado em Milão a cura di Gin Angri; Maputo - Desenrascar a vida, 1997, em Maputo e Lisboa, por via de Nelson Saúte e António Sopa. José Cabral esteve presente e influente nestes dois últimos. Por fim, Iluminando Vidas, de Bruno Z’GFraggen e Grant Lee Neuenburg, Basel, 2002, um sólido panorama por 15 autores onde os seus nus femininos faziam a diferença.
Aquela aventura colectiva teve dois pioneiros, Ricardo Rangel e Kok Nam, mestiços que acederam muito cedo a uma imprensa colonial mais liberal que a de Lisboa e aí abriram as linhas de mudança. A que há a acrescentar Rogério (Pereira), 1942-1987, português em trânsito a partir da África do Sul desde 1968, bem informado do activismo negro. Além da informação portuguesa (o Século Ilustrado), terá contado o acesso aos magazines anglo-americanos e o exemplo empolgante dos fotógrafos da revista Drum, pan-africana. A aventura teve depois uma sede e uma escola, a Associação Moçambicana de Fotografia e o Centro de Formação Fotográfica, no qual se fizeram dezenas de fotógrafos mais ou menos perseverantes - José Cabral foi aí professor, em tempos de activa cooperação estrangeira, em especial italiana (o já referido Gin Angri). A aventura - a "escola moçambicana de fotografia”- cumpria então um estilo testemunhal e militante, para responder às urgências do socialismo, da guerra, das fomes e da reconstrução. Os tempos mudaram.
José Cabral (nascido em 1952, Lourenço Marques/Maputo) chegou por uma via original a essa história colectiva, praticando com um pai amador de fotografia e de cinema, técnico dos Caminhos de Ferro de Moçambique - aos 12 anos ofereceu-lhe um pequeno laboratório e uma câmara “caixote”. Por sinal, o que é relevante, também teve um homónimo avô paterno que foi governador (1926-1938), figura marcante no desenvolvimento colonial; tinha um parque com o seu nome na capital (hoje Parque dos Continuadores) e uma cidade no Niassa, hoje Lichinga. Branco, com um percurso militar difícil durante a guerra colonial, rebelde e de forte personalidade, ou irreverente, tornou-se rapidamente fotógrafo profissional em 1975.
Começou como fotógrafo no Instituto Nacional do Cinema e passou depois de alguma prática de foto-repórter (1979-1982) a programas documentais menos determinados pela urgência para o Ministério da Agricultura e a Unicef. E de autodidacta passou a professor no Centro de Formação Fotográfica, de 1986 a 1990. Foi o primeiro a distanciar-se da dinâmica jornalística: em vez de guerra, miséria, vítimas, ruínas e promessas de reconstrução, que podem ser ainda outra face humanista do exotismo, desenvolveu um olhar subtil: por exemplo, escolheu para Iluminando Vidas belíssimos nus femininos que não tinham qualquer pretexto etnográfico, eram retratos íntimos. A representação acabou por ter problemas nos Encontro de Bamako, no Mali, país de rigores islâmicos, mas Cabral recusou-se a trocar as imagens.
A sua fotografia – em especial a forma de a expor como trabalho de artista - foi-se tornando discretamente mais autobiográfica e até intimista, sempre sem deixar de ser documental e sem pretender ser formalista e narcísica mesmo nos seus muitos auto-retratos de rua; quando terá conhecido os de Lee Friedlander? Essa afirmação autoral, que foi passando por mostras colectivas e individuais, ganhando espaço como fotografia de exposição, era a outra luta que importava travar nas novas condições de crescimento e condicionamento do país, uma batalha já mais individualizada para abrir espaços de liberdade e criação. A exposição As Linhas da Minha Mão, que o consagrava no 3º e último Photofesta, os Encontros Internacionais de Fotografia de Maputo, em 2006, afirmava a dimensão pessoal de uma galeria de retratos, espaços e episódios que desdobravam um percurso de vida – encontros com pessoas, árvores, paisagens e lugares ao longo da história recente e da geografia de Moçambique. Usou o título de Robert Frank como explícita pista de leitura e como ambiciosa homenagem.
Artista fotógrafo de boa cultura visual e literária, que viajou pela América e pela Europa (Itália, em 1987, com uma bolsa de estudo, e Portugal, após 1999), o que era então raro, impôs através da independência da sua obra e das exposições pessoais a liberdade estética e a singularidade autoral, num país sem mercado para a fotografia independente e já sem instituições públicas intervenientes. Nesse sentido foi também um pioneiro, a seguir à geração dos dois mais velhos. Dos seus contemporâneos quero referir João Costa (Funcho) e Sérgio Santimano. Dos que se lhe seguiram as pisadas com vozes próprias destacam-se Luís Basto, Filipe Branquinho, Mário Macilau, Mauro Pinto - Moçambique continua a ser um país de fotógrafos, e eles ganharam por si mesmo circulação exterior.
A obra de Cabral ganhou mais visibilidade nas duas primeiras décadas do séc. XXI, em especial através de exposições subtilmente antológicas, equilibrando um lugar sempre algo à margem com o crescente reconhecimento público. As mostras eram revisões da carreira, mergulho nos arquivos pessoais e projectos temáticos, sempre com a revelação de inéditos. Depois de As Linhas da minha Mão chamaram-se Anjos Urbanos / Urban Angels - «são histórias de crianças: eu e elas», disse - e Espelhos Quebrados, auto-retratos de itinerância da vida presentes em reflexos intencionais.
Urban Angels / Anjos Urbanos, apresentada em Lisboa e Maputo, teve por assunto os seus três e depois quatro filhos e os filhos dos outros, a família e as crianças da rua, expondo variações de cor e de condição social, intimidades e desigualdades. Sem traçar fronteiras entre o particular, o seu espaço doméstico, e o geral, a observação social, há diferenças de situação que se não escondem, pelo contrário, e que tornam mais incisivo o testemunho. Com essas crianças é também a cidade que se habita, bem como o mundo rural e a presença deste na malha urbana. O fotógrafo auto-retratado está já presente no mesmo itinerário, e estará mais na mostra seguinte.
Espelhos Quebrados, em 2012, foi outra revisão da obra, mais desafiadora, onde o fotógrafo está sempre presente no fotografado, testemunha em campo, em situação e em cena. O trânsito faz-se por Moçambique e pelas viagens. Cabral também usou, em Lisboa, o título De Perto, manifestando a sua inscrição de autor-observador no mundo real que percorreu.
Por fim, até agora, o livro monográfico (ed. XYZ / Kulungwana, 2018) e a exposição Moçambique (Maputo e Beira, 2019, coordenação de Alexandre Pomar e Filipe Branquinho), antologiou-lhe toda a obra acessível e retratou o país como uma duplo panorama entrecruzado, íntimo e topográfico, identificando lugares mais percorridos e os temas de eleição. A sua obra afirmava-se como um grande documentário de Moçambique, ao mesmo objectiva e poética, percorrendo uma grande diversidade de géneros. Os retratos, as mulheres e em particular os nus, as árvores e as crianças são tópicos marcantes da sua obra, heterodoxa e indisciplinada -- as fotos têm sempre títulos discretos, topográficos --, associando densidade emotiva e objectividade documental. Não se trata de um discurso subjectivo e menos ainda formalista.
As imagens de José Cabral são simples e belas, são ternas e podem ser terríveis, mas sempre sem os cálculos de acaso procurado, artifício estético ou programa retórico que são tantas vezes a fórmula fácil da arte fotográfica. São ao mesmo tempo directas e carregadas de emoção, sem se distanciarem da vida à procura de metáforas. Há uma história pessoal e há muitas histórias colectivas nestas imagens de Moçambique.
A sua actualidade não era, não é, a da guerra civil, da violência urbana ou da miséria quotidiana - é de um panorama mais profundo e definitivo que se trata, à distância de muita fotografia africana que balança entre a vitimização e a encenação do exotismo. Não é um olhar indiferente à realidade do país, pelo contrário - é um olhar interveniente, construtivo, lúcido e livre. O país, Moçambique, está lá sempre, procurado num longo documentário, por vezes metódico, observado através uma outra forma de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e cúmplice, lúdicos e exigentes.
Faltava visitar a viagem à América, durante três meses em 1996, como bolseiro da Mid-American Arts Alliance, num amplo roteiro por New York, Washington, Chicago, New Orleans, San Diego / California, El Paso / Texas e no Novo México Santa Fé, Las Cruces e White Sands, do inverno gelado aos desertos do sul e volta. Muitos fotógrafos americanos editaram as suas Américas - quero lembrar Friedlander seguindo o Walker Evans de 1938, Stephen Shore, Eve Arnold, Burk Uzzle e Joel Sternfeld (1), mas em geral fizeram-no naturalmente por etapas, por lugares ou por assuntos - e poucos estrangeiros vindos de fora o tentaram depois de Robert Frank (Cartier-Bresson furtivamente em 1991, mas em demoras de 1935 a 1975, ed. Seuil e Afrontamento). Cabral não repete o que outros viram, e não se repete a si mesmo. Faz uma viagem de descoberta - uma aventura para quem saía de Maputo ao cabo da guerra civil - viagem que é também reencontro com as linguagens e as visões que de algum modo o formaram, vistos os filmes, lidos muitos livros, sempre um olhar culto.
Estão lá arquitecturas vertiginosas e outras rasteiras de beira da estrada, as pessoas no espaço urbano, os automóveis e os motéis, os letreiros e cartazes dos comércios, as marcas, The Al Capone Story, Billy the Kid, Chicago Bears, Famous Fashions, Stars (mas não há bandeiras). Estão as janelas que abrem vistas, de fora para dentro e ao contrário, e os muitos espelhos que reflectem e duplicam o visível. As árvores. Os auto-retratos que o inserem na observação, mais “de perto”, como sugeriu. É um visitante itinerante e rápido, em planos gerais que fazem a descoberta dos lugares e dos espaços, descoberta reflectida e reflexiva (interrogada, com distância) e são aqui menos um olhar aproximado sobre as pessoas, já que a barreira da língua não propiciava a troca de olhares frontais, que lhe são tão frequentes. Nunca é um olhar voyeur sobre figuras ou anedotas. Atento sem ser deslumbrado, mas empolgado.
(1) Walker Evans, American Photographs, The Museum of Modern Art, 1938; Lee Friedlander, The American Monument, Eakins Press Foundation, 1976; Stephen Shore, Uncommon Places, Aperture, 1982; Eve Arnold, In America, Alfred A. Knopf, NY, 1983; Burk Uzzle, All America / Mon Amérique, Aperture / Contrejour, 1984-85;
Joel Sternfeld, American Prospects, Times Books e Museum of Fine Arts, Houston, 1987.
9 fevereiro 2022