A natureza-morta depois de 1955
Para reflectir sobre a história antiga e moderna da natureza-morta, a propósito da exposição da Gulbenkian, que termina à data da morte de Calouste Gulbenkian, há que prolongá-la até ao presente para que não se julgue que a pintura de coisas inanimadas (mais do que de coisas mortas - still life, vida imóvel ) se extinguiu como um género do passado. Não é arte antiga ou de museu, património. Ameaçada no século XX, depois de um início de século florescente, ela recompôs-se e continuou a ser especialmente prezada pelos pintores, sem nunca se constituir como um género académico ou convencional.
Pode ser um género mundano e banalizado por muitos quadros de jarras com flores, pode ter sido um género "neutralizado" como uma mera oportunidade para experimentações formais ( "In modern art simple still life arrangements have often been used as a relatively neutral basis for formal experiment, for example by Paul Cézanne and the Cubist painters" - diz o glossário da Tate com alguma facilitação escolar ), mas há que reconhecer que a prática da natureza-morta se manteve uma questão actual, mesmo quando o mainstream não o reconhece, ou por isso mesmo. A natureza-morta está viva.
Na sua história recente (a que a expo. mostra), a natureza-morta respondeu por um lado aos abstraccionismos sucessivos, que se divorciaram da figuração, e da imitação ou descrição de coisas visíveis, mas não - ou nem sempre - da representação conceptual, expressionista ou idealista, na sequência do simbolismo e também de práticas da decoração iconofóbica. Sobreviveu, por outro lado, à prática depois muito mais frequente da apropriação directa dos objectos, presentes em si mesmo, tal qual ou alterados, mas não descritos ou representados (o ready made é o exemplo pioneiro). Esta é uma deriva iniciada com a prática da colagem, ao incorporar-se no quadro a coisa mesma (o rótulo, por exemplo, ou o pedaço de madeira). Cada um desses caminhos novos abriu um caudal próprio, que teve a tentação de se afirmar como superior e como uma meta definitiva, sem de facto o serem e sem excluirem outras pistas antes experimentadas, que evoluiram através de novas e diferentes criações interessadas no diálogo com o passado ou com o que se pode chamar a tradição. A natureza-morta continuou a ser imprevisível. O género é inesgotável, mas muito exigente.
Por exemplo, foi pela natureza-morta que começou a obra de um dos pintores mais interessantes do presente: o José Loureiro.
A pintura abaixo mostrou-se na sua 1ª exposição, a qual se chamou "José se quiseres come as sardinhas todas", e teve lugar na galeria Ether (Lisboa), em 1988.
Sobre a mesa estão, pelo menos, uma jarra, um despertador e uma máquina fotográfica (o quadro tem como medidas 85 x 210 cm). Sobre a tela está a matéria do óleo, a sua viscosidade e a iluminação ou penumbra próprias, o trânsito entre o informe e as formas reconhecíveis ou não. Havia também noutros quadros míscaros, uma enguia e uma sardinha, várias máquinas (leika, kodak), diversos utensílios de cozinha, etc. E podiam reconhecer-se, além de objectos, associações com outros pintores, porque a natureza-morta é particularmente propícia às viagens pela história da pintura.
João Francisco em 2008, vinte anos depois, noutra exposição de estreia, voltou a começar pela natureza-morta.
"Sem título - Tempestade em Trouville - para E. Boudin", 2008, óleo sobre tela, 160 x 180 cm.
A exposição chamou-se "O Arqueólogo amador (e outras naturezas mortas)", esteve na Galeria 111, em 2008, e teve sequência feliz numa segunda individual em 2010 que chegou a coincidir com a 1ª parte da mostra da Gulbenkian. Andava tudo à volta da natureza-morta, das coisas vistas e da sua representação, de representações de objectos e de imagens (o quadro dentro do quadro) e do espaço entre eles, de objectos ou fragmentos, acumulações e disposições ordenadas, referências e citações da história da pintura: obviamente Morandi, mas também Philip Guston, Gauguin e Carl André, e Cézanne, claro.
Lá por fora, os dois nomes maiores de pintores que se interessaram há décadas e ainda em tempos recentes pela natureza-morta são os de Avigdor Arikha (1929-2010) e de David Hockney (n. 1937).
Arikha: Diospiros num pote japonês, 18 Nov. 1992, o.t., 27 x 46 cm
Hockney: Duas flores cor de rosa, 1989, o.t. 41,9 x 26,7 cm.
("Bigger Trees Near Warter or/ou Peinture sur le Motif pour le Nouvel Age Post-Photographique" é o título da sua exp. em Bradford - ver site)
Pintura "from life" ou "sur le motif" ou "do natural", ou de observação, de que a natureza-morta é uma das declinações mais "representativas". (Para uma nova era pós-fotográfica...)
#
O óleo é comum aos quatro exemplos, mas os dois jovens pintores mostram grandes formatos que são também obras de grande (da maior) ambição, enquanto os velhos pintores praticam aqui uma comunicação mais directa e sintética na sua pequena dimensão. O pequeno formato resultará aqui de uma segurança e de uma eficácia adquiridas com longa experiência, mas que mantém um máximo de frescura e é uma surpresa face à "dificuldade" da arte tida por erudita. De uma sábia despreocupação.