CITAÇÃO: "Num segundo momento, dá-se a apropriação salazarista da tese do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), tese essa que está presente na defesa política e diplomática do colonialismo, em particular entre 1933 e 1961: “A primeira data corresponde ao ano da publicação de Casa-grande & Senzala, obra em que são lançados os fundamentos da doutrina luso-tropicalista; a última, ao ano da publicação de O Luso e o Trópico, livro em que a doutrina surge em “estado acabado” (O modo português de estar no mundo, Cláudia Castelo). O luso-tropicalismo, que se configurou como a essência da identidade dos portugueses, passou a ter como objectivo criar as bases de um império mítico construído sobre os afectos e o multi-racialismo (no qual o autor nunca vira sinais de tensão). Sem bases históricas, baseando a sua teoria na origem, também ela “mestiça”, do português face à influência de judeus e árabes, na sua capacidade de adaptação aos trópicos e no seu humanismo cristão, Gilberto Freyre, sociólogo com prestígio internacional, deu à sua tese uma cientificidade que assegurou a política do Estado (a partir da segunda metade dos anos 50) e produziu, no campo cultural, um conjunto vastíssimo de miríades que acabaram por estruturar o campo das mentalidades."
Perdido num "conjunto vastíssimo de miríades", encontrei hoje a porta de saída no acesso directo às fontes. Descobri à venda a mais fantástica das edições do livro maldito: 'Casa grande & senzala' de Gilberto Freyre, na edição crítica de Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca, Fondo de Cultura Economica de México, Colecção Archivos, 2002, 1261 p., pelo extraordinário preço de 37,10 € no Centro do Livro Brasileiro (exemplar solitário, e a coisa chega a ultrapassar os 100 € em alguns sites).
Eu já sabia que o parágrafo era absurdo. A tese do luso-tropicalismo do brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) NÃO está presente na defesa política e diplomática do colonialismo, em particular entre 1933 e 1961. A tese, reduzida ao carácter superficial de uma "vulgata", é usada apenas a partir de 1951. Conhecia o capítulo "O Ultramar Português" de Yves Léonard, no vol. 5 da 'História da Expansão Portuguesa' (dir. Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, Círculo de Leitores 1999, e também o volume (não só o texto da badana) de Cláudia Castelo, '"O modo português de estar no mundo" - O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)', Afrontamento, 1999.
De facto, nem a tese do luso-tropicalismo é formulada no livro de 1933 (o conceito não aparece aí, nem nenhum dos dois elementos da expressão - o índice remissivo daquela edição é muito minucioso), nem ela poderia ser aceite pelo regime salazarista antes da revisão da Constituição e do Acto Colonial em 1951, que abandonava a ideia e os princípio do Império Colonial Portugal para afirmar a unidade nacional e começar a falar de províncias ultramarinas e de Ultramar Português. Só então e a custo, face à onda internacional das descolonizações, o regime abandonava os ideais e a mística imperiais, com a sua componente da superioridade racial do conquistador, e se dotava de uma já tardia ideologia colonial que procurava fundar-se sobre uma original "maneira portuguesa de estar no mundo" sustentada em abreviadas interpretações sociológicas sobre a "matriz lusa" do Brasil e a contrução da mestiçagem, ou seja, reduzidas então ao que Yves Léopnard chama uma "vulgata" luso-tropicalista.
É em 1951 que Gilberto Freyre profere a conferência "Uma cultura moderna: a luso-tropical", durante a viagem pelas "províncias" que realizou a convite do ministro do Ultramar Comandante Sarmento Rodrigues, personagem reformador que importa conhecer melhor. Sociólogo de primeira importância e politicamente conservador, G.F. intervém depois nas Comemorações Henriquinas de 1960 valorizando o "rumo luso-cristão" dos Descobrimentos (a Comissão Executiva publica 'O Luso e o Trópico' em 1961, também em francês e inglês), mas o brasileiro viria a mostrar-se sensível, com o início da guerra em Angola, às vontades independentistas.
O pensamento de Gilberto Freyre, desde 1933, atraíra a atenção e o aplauso de muitos intelectuais portugueses da oposição democrática, e democraticamente colonialistas, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Agostinho da Silva e outros, graças às suas considerações sobre a ausência de racismo em Portugal, as virtudes da miscigenação, a unidade cultural luso-afro-brasileira (Y.L.), mas não era aceite pelo regime de Salazar. Era para os perigos da miscigenação que alertava o discurso oficial.
A apropriação salazarista é só de 1951, e acontece apenas com a nova dinâmica reformista da política colonialista de Portugal, num quadro oficial já pós-imperial. Importa saber, porém, que esse é um episódio nacional que não diminui a sempre reconhecida originalidade científica e importância sociológica de teses com bases históricas firmes que tiveram continuidade no Brasil na muito rica produção de Gilberto Freyre e nas obras de Sérgio Buarque de Hollanda e de Darcy Ribeiro, dois autores maiores (antropólogos, sociólogos e historiadores) progressistas. Era a originalidade brasileira que se tratava de afirmar, assente na miscigenação racial que construíra o país, invocando a contribuição matricial de um povo já ele próprio mestiço. Uma tese contrária às lógicas da segregação racial do continente norte-americano, e de sentido positivo, mesmo que as formas da segregação persistam ainda hoje.