Para saber como continuou a haver naturezas mortas no final do século XX, e já depois, há que seguir Antonio López, agora até Bilbau, no Museo de Bellas Artes de Bilbao ( até 22 de Janeiro; de onde nos remetem para o completo sítio informativo disponibilizado pelo Museo Thyssen ). Ou, pelo menos, pode conhecer-se o excelente catálogo - que nos chega via amazon.es por (apenas) 37,34 €.
Em Madrid a exposição começava com uma apresentação autobiográfica em duas salas, onde os retratos se associavam a visões de interiores domésticos (naturezas-mortas: o armário e o frigorífico aberto) mas também ao espaço físico e íntimo da casa, definido por vistas de portas e janelas, estas abertas ao exterior, diurno e nocturno - passagens da luz à sombra, e vice-versa, e quadros dentro do quadro. No catálogo e no ensaio de Guilhermo Solana designam-se como "Ámbitos" (áreas, espaços) e "Umbrales" (limiares).
No armário (Ámbitos, nº 6) aparece o retrato de Mari, a mulher do pintor, e uma vela flutuante à direita, justificando que se tenha falado de realismo fantástico, antes de por algum tempo se identificar uma versão muito própria de hiper-realismo (ou super-realismo) - depois todos os rótulos perderam validade. Há também junto ao armário um aparador de datas próximas, onde a exacta precisão virtuosística se reconhece como uma íntima e enigmática temporalidade.
O frigorífico aberto (Ámbitos, nº 8), o armário actualizado.
São as vistas urbanas de Madrid que ocupam toda a 1ª parte da mostra (as salas do piso térreo, no Thyssen), e em especial a Grã Via, pintada desde 1964 até hoje (com uma série de 7 telas mostradas ainda em execução, amplas vistas urbanas feitas de terraços elevados). Acompanhadas depois por outras linhas de produção recente: a árvore (o marmeleiro/membrillo), quase sempre em desenho, e o corpo nu, em escultura. Na segunda parte da mostra passa-se dos temas de trabalho actuais para a secção retrospectiva, com o núcleo 7 "Personagens" (as primeiras obras, desde 1953), em geral, retratos, mas também uma natureza-morta (abaixo), interior "metafísico" com escultura grega e vista exterior.
Cabeza griega y vestido azul, 1958 (com intervenção em 2011), 74,2 x 97,5 cm (Personajes, nº 66)
A seguir, outros "Interiores" (8), habitados ou não, e espaços arruinados ou envelhecidos, ou sujos, como os quartos de banho. Com nova passagem à natureza-morta, (9) "Alimentos", o bodegon, onde cabe tb a mesa do almoço familiar, longamente pintada ao longo de uma década, 1971-80.
Conejo desollado, 1972, 53 x 60,5 cm (Alimentos, nº 100)
La cena, 1971-1980, 89 x 101 cm (Alimentos, nº 98)
Como nos casos de Hockney, de Lucian Freud e de Avigdor Arikha, Antonio López (Garcia) pratica a natureza morta (e também os outros temas da sua obra) como pintura de observação, feita do natural, "d'après nature", "from life" ou "sur le vif", perante o modelo. Essa foi uma condição primeira da natureza-morta que em parte se suspendeu nas duas primeiras décadas do século XX, ao trocar-se a observação e o registo dos dados visuais ditados pela investigação sensorial em favor do trabalho de memória e de imaginação, da presença do ideal ou ideológico, da vontade da expressão ou da especulação formal. Tornou-se necessário para alguns artistas, também a Paula Rego na sua pintura de histórias, e a outros como pintores de paisagens, voltar a trabalhar a partir da observação. Não é em nome de qualquer modo colectivo, de qualquer retorno de grupo ou tendência a um realismo enquanto estilo, que estes pintores marcam superiormente as últimas décadas e a passagem do século XX ao século XXI.
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Excepto o quadro do coelho, não são exactamente naturezas-mortas tradicionais as que López exibe - e nessa a fórmula da disposição organizada ou encenada dos objectos sobre uma mesa reduz-se à expressão mais simples e, literalmente, mais crua. Nos exemplos disponíveis ela associa-se ao retrato em dois casos, à paisagem noutro caso, à vista do interior doméstico em dois.
No catálogo, a n-m aparece em dois relevos de 1960, em gesso e em bronze (La Fresquera - uma mesa/armário de cozinha com objectos e um coelho morto pendurado; é a mais exacta referência à tradição do género); em mais dois desenhos de bodegons (meio coelho, 1972, e frango, 1981); e, arrumados numa secção final de "Projectos" em curso, de 2007 a 2011, numa dezena de pequenos potes ou copos de rosas, mais cinco de outras flores, quase sempre pintadas sobre um fundo indistinto. Estes precedido por uma muito pequena tábua de 1965 onde o copo de flores sobre o plano inclinado da toalha branca se acompanha por um independente fragmento de parede cinzento numa visão frontal - existem outras telas estritamente realistas onde se associam dois espaços e dois pontos de vistas distintos.
A natureza-morta como género não é tratada quase nunca segundo o modelo tradicional (e moderno também) da escolha e encenação de objectos sobre uma mesa e contra a parede de fundo mais ou menos lisa - e não é uma produção que se possa dizer amável ou decorativa - excepto quanto às pinturas de flores.