era directora do MNAA e ministra a Isabel Pires de Lima, a srª da sucursal do Hermitage e do Museu da Língua Portuguesa no MAP, mandava Sócrates
[Revista Atlântico de Junho de 2007 . Nº 27]
Conversas Atlânticas
DALILA RODRIGUES em entrevista:
“O modelo de gestão dos museus incentiva a indigência”
por FÁTIMA VIEIRA
Nos museus portugueses a situação é de “dependência paralisante”, “pobreza orçamental” e “precariedade total”. Praticamente nada vai mudar com a lei orgânica para o novo Instituto dos Museus e da Conservação, resultante da fusão do Instituto Português de Museus e Instituto Português de Conservação e Restauro. Dalila Rodrigues, directora do Museu Nacional de Arte Antiga, não esconde o forte desapontamento e reclama "a autonomia do Museu". [Pouco tempo depois desta entrevista foi afastada pela ministra que se diz da Cultura]
Qual a sua opinião sobre a nova lei orgânica para o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) na qual depositava tantas expectativas?
Numa avaliação global, penso que não resolve os actuais problemas dos museus portugueses, uma vez que se mantém uma igualitária e paralisante dependência estatutária da tutela para os 29 museus, como se todos tivessem a mesma importância, o mesmo mérito e o mesmo desempenho. Há dois aspectos positivos nessa nova lei orgânica, que de facto correspondem às minhas expectativas, e que são a possibilidade de gestão dos apoios mecenáticos directamente angariados pelos museus e a retenção da receita gerada pelo aluguer de espaços. Embora a lei seja muito mais abrangente, no que respeita à vida dos museus portugueses estes são os dois únicos aspectos positivos a destacar, sendo que tudo o resto se mantém.
Portanto estamos ainda muito longe da autonomia que reclama?
Estamos muito longe da autonomia de que este museu precisa para se desenvolver e afirmar tanto a nível nacional como a nível internacional.
Segundo o director do IMC, Manuel Bairrão Oleiro, a autonomia financeira é uma utopia, só faz sentido quando as receitas são muitíssimo mais elevadas do que as obtidas pelos museus portugueses.
É uma utopia pensar que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) terá um dia o número de visitantes que tem, por exemplo, o Louvre. Tenho consciência, evidentemente, da diferença de escalas. Mas não tenho dúvida de que a falta de visitantes e as magras receitas geradas são também o resultado do actual modelo de gestão, que não só não premeia o mérito como incentiva a indigência. E a nova lei orgânica não altera esta situação. O processo de comercialização da imagem, hoje um sector decisivo, mantém-se na estrita dependência da tutela, ficando os museus privados dessa fonte de receita. O mesmo sucede com a totalidade da receita mensal proveniente da bilheteira e da loja (o resultado da venda não apenas do merchandising, mas também de catálogos e livros). Ora, retirar a totalidade da receita mensal ao organismo que a gera, independentemente do seu desempenho, é injusto e desmotivante. Confesso que me surpreendeu o facto de se manter a gestão centralizada das lojas, sem que os directores tenham qualquer poder decisório. De resto, discordo também da actual política normalizadora quanto aos produtos. Cada museu deveria apostar num merchandising próprio. Não me interessa nada ter no MNAA réplicas de azulejos do Museu do Azulejo, sobretudo quando não tenho um postal do apostolado de Zurbarán.
Bairrão Oleiro minimizou as reivindicações de autonomia, dizendo que a questão não é consensual, que as queixas são apenas de um ou dois directores. É assim, está praticamente só nas suas reivindicações?
Eu reclamo a autonomia do MNAA porque tenho a responsabilidade de o dirigir e de o defender, e sou de opinião de que alguns museus deveriam ser entregues às autarquias. Compreende-se, portanto, que não seja a totalidade dos directores de museus a reclamar a autonomia; de resto não concordo que os 29 museus fiquem autónomos. Os exemplos internacionais são, neste aspecto, muito claros: em toda a Espanha, por exemplo, só o Prado e o Rainha Sofia são autónomos.
Este ano manifestou a sua indignação pela redução do apoio mecenático que angariou para o MNAA, (que recebeu apenas 360 mil euros do montante atribuído pelo Millennium BCP, em vez dos 500 mil entregues no ano passado). Como é que será essa distribuição no próximo ano?
Não faço a mais pequena ideia.
Também este ano, a falta de vigilantes trouxe à luz a situação de ruptura a que chegaram os museus. Considera que o problema foi devidamente resolvido?
O problema foi resolvido apenas temporariamente, uma vez que, no caso do MNAA, se efectuaram dez contratos de tarefa, por um período de três meses, neste momento em fase de renovação por mais três meses.
E depois volta tudo ao mesmo?
Espero que não!
Além da falta de vigilantes, quais são os principais problemas que o MNAA enfrenta actualmente?
A dotação orçamental é absolutamente deficitária, servindo apenas para fazer face a despesas de manutenção. As verbas para a programação anual, isto é, para actividades que vão das exposições temporárias à conservação e ao restauro ou à frente editorial, foram este ano de apenas 360 mil euros. Esta situação de subfinanciamento, juntamente com o défice no sector da vigilância, coloca-nos, de facto, numa situação particularmente difícil.
Podemos concluir que o MNAA está em crise?
Se falarmos em crise no MNAA, falamos em crise nos museus portugueses.
E podemos falar em crise nos museus portugueses?
Podemos falar em crise nos museus portugueses e podemos dizer que há largos anos vivem nesta situação, com crescente aceleração dos problemas que a geram. Não há como ocultá-lo. Apesar de neste momento decorrerem obras de requalificação estrutural em alguns museus, em Évora ou em Aveiro, por exemplo, tal facto não desculpa a degradação de edifícios, museografias, condições de exposição nos restantes museus, sobretudo no principal museu português.
Quando aceitou o cargo (no final de 2004) estava ciente de todas estas dificuldades, ou foi pior do que o que esperava?
Estava ciente de todas as dificuldades excepto de duas, datadas deste ano. A primeira foi o facto de não ter sido concedido ao museu a totalidade do apoio mecenático. Em pleno processo negocial, fui muito clara quando informei quer o director do IPM quer o mecenas que não aceitava menos de 500 mil euros anuais pelo mecenato exclusivo, justamente porque precisava de uma programação dimensionada à escala do museu e à expectativa dos públicos. A redução do apoio mecenático acordado foi injusta e desmotivante. A segunda dificuldade que me surpreendeu foi a situação de ruptura gerada pela falta de vigilantes. Nunca supus que não fossem tomadas medidas para evitar a situação de encerramento, que há muito se adivinhava com o fim do programa do Mercado Social de Emprego, um programa que servia para resolver, não estruturalmente, mas de ano a ano, a questão da vigilância. Nunca imaginei ter de fechar cerca de 40% do percurso expositivo do MNAA.
Quais considera que foram os seus grandes êxitos à frente do museu?
Penso sobretudo no imenso trabalho que há a realizar. Mas sinto alguma satisfação pelo trabalho diário que tem vindo a ser feito pela equipa, e que nem sequer assume visibilidade, como, por exemplo, a reorganização das reservas, a limpeza das zonas de armazenamento, a formação dos vigilantes na área de relações interpessoais e competência de atendimento, e que fazem com que sinta o museu mais qualificado. Em termos de impacto junto do público, a programação de exposições temporárias parece-me estruturada em critérios que têm tido sucesso: exposições organizadas a partir de colecções próprias, como foi a dos desenhos, ou de uma nova aquisição, como a pintura de Frei Carlos, e uma grande exposição internacional, no ano passado a Colecção Rau, e este ano O Brilho das Imagens, que lamento não ter mais público, porque é uma extraordinária exposição. Como historiadora de arte tenho imenso orgulho em tê-la programado.
Quando exposições desta qualidade não se traduzem num êxito, o que é que falha?
Falha a resolução de problemas estruturais, que são fundamentalmente dois: o actual modelo de gestão e a acessibilidade. Repare, o Prado e o Louvre têm uma clara centralidade no tecido urbano e o acesso garantido através dos mais diversos meios de transporte. O MNAA inscreve-se numa zona privilegiada da cidade do ponto de vista da paisagem, mas tem apenas como meio de acesso o autocarro e não tem estacionamento. Os públicos que aqui vêm são públicos muito esforçados. É evidente que nós, portugueses, não conseguiremos ter os públicos do circuito do turismo internacional que o Prado ou o Louvre têm. Mas também não fazemos nada para tal. Nem para garantir o acesso dos públicos nacionais escolares ao património artístico de referência. Confesso que não compreendo e não me conformo com este desinvestimento nos museus portugueses.
Como se poderia resolver o problema da acessibilidade?
Poderia resolver-se através da ligação desta zona da cidade ao rio e através da requalificação dos edifícios abandonados na zona de Santos. De resto, o arquitecto Souto Moura chegou a idealizar uma passagem pedonal, com elevador, sobre a 24 de Julho, que serviria não apenas o museu mas também o seu envolvente.
E o projecto ficou na gaveta?
Era suposto que a Câmara Municipal de Lisboa assumisse este projecto como uma prioridade. O professor Carmona Rodrigues tinha-me garantido o seu empenho na execução do projecto, e agora terei com certeza oportunidade de apresentá-lo ao novo presidente da Câmara, que espero que esteja receptivo à ideia de eleger como prioritária a resolução desta questão.
Mas mesmo resolvendo-se estes problemas haveria sempre o da falta de hábitos enraizados de fruição cultural em Portugal…
Os portugueses visitam muito pouco os seus museus, é verdade, mas fazem-no no estrangeiro. Os museus terão alguma responsabilidade nisso, mas não tenho qualquer dúvida em considerar que a principal responsabilidade resulta do desinvestimento do Estado. O Estado não pode considerar a Cultura um acessório e não pode deixar os seus museus chegar à situação a que chegaram: uma situação de sub-financiamento, de precariedade total, que evidentemente se reflecte ao nível dos públicos.
Para si qual deve ser o papel dos museus?
Entendo que os museus (de arte), além do entretenimento e do prazer, devem ser assumidos como instrumentos fundamentais de formação estética e histórica. Essa educação é, evidentemente, não formal, mas deve ser um complemento obrigatório à formação obtida nas escolas. Os museus devem considerar não apenas as exposições temporárias, mas também uma programação científica assumida enquanto tal. É fundamental também que saibam comunicar os seus conteúdos aos diversos públicos, que sejam mais assertivos nas programações e definam com muito clareza que tipo de público pretendem atingir.
O espectáculo, a festa, surge cada vez mais como estratégia para levar mais público, sobretudo jovem, aos museus, mas isso não se traduz num interesse real pelas exposições…
Nunca programei uma festa que não tivesse uma clara articulação ao museu e que não procurasse, mais ou menos directamente, funcionar como uma forma de aproximar do museu os públicos que vêm à festa. Por exemplo, este ano, no Dia Internacional dos Museus, a festa mais não foi do que o prolongamento da inauguração de uma exposição de arte contemporânea, assumida como mediadora da arte antiga.
Na programação há uma aposta forte nas colecções internacionais. O acervo do museu não tem capacidade para atrair mais visitantes?
Tem. E posso dar como indicador o livro de sugestões do museu, o feed back do público relativamente à qualidade das colecções e da programação.
Com esta pressão dos números não se está a querer transformar os museus mais em máquinas de produção de eventos que de conhecimento?
Sempre me preocupei com o aumento de públicos em proporção directa com o aumento da qualidade das programações. De resto, a lógica do aumento dos públicos por si só não me interessa nada, ainda por cima quando o museu nem sequer tem o incentivo de poder ficar com a receita proveniente das bilheteiras. Em termos financeiros, o facto de o museu ter um visitante ou ter um milhão de visitantes tem exactamente o mesmo peso. É a lógica perversa que se verifica com as lojas e o merchandising: ter como receita 1 cêntimo ou 1 milhão, significa, no final do mês, para os museus, exactamente a mesma coisa.
O que acha desta ministra da Cultura?
Não vou responder a essa questão, por motivos que são óbvios.
Então pergunto-lhe o que acha da estratégia para a Cultura… Se no panorama actual fazem sentido, por exemplo, iniciativas como a vinda do Hermitage, ou a criação do Museu Mar da Língua Portuguesa…
Enquanto os museus portugueses, e particularmente o grande museu português, o MNAA, enfrentarem problemas como os que enfrentam actualmente, não posso concordar que sejam desviados para outros fins as magras verbas disponíveis no Ministério da Cultura.
Antes de ser conhecida a nova lei orgânica, pôs a hipótese de sair do MNAA no final da comissão de serviço, em Novembro. Agora, perante uma lei que deixa quase tudo na mesma, essa hipótese mantém-se?
Desde que soube que o apoio mecenático não ia ser dado ao museu na totalidade e que as verbas do POC (Programa Operacional de Cultura) iam ser canceladas, procurei encontrar formas de minimizar os efeitos dessas perdas. No que respeita à minha permanência na direcção do MNAA depois de Novembro, a decisão cabe à ministra da Cultura.