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Seria oportuno aproveitar as novas circunstâncias para se esclarecer o que são o Ministério da Cultura e a cultura do ministério, entidades muito vagas tanto no entendimento comum como na ordem real das coisas. Mudar alguma coisa passará por aí.
Primeiro, o Ministério é da Cultura e não das Artes, o que serve de razão a um primeiro largo equívoco, e a algumas pressões mais mediatizáveis. A cultura (o conceito já foi tema de muitos livros) é um campo difuso que, enquanto realidade nominal e também aparelho administrativo, inclui por exemplo os livros todos das bibliotecas e os documentos dos arquivos (e estes vão até aos registos das emissões televisivas que são cultura mesmo quando se consideram incultura).
Inclui as chamadas obras-primas da arte e do património edificado mas também as pequenas artes e o artesanato (rural e urbano...) e tb as tradições do património imaterial, como os ritos do carnaval e as práticas alimentares que a ASAE persegue, com razão e sem ela. Inclui as artes e as anti-artes (outras concepções situam a arte contra a cultura), mas tanto as eruditas e elitistas como as populares, as altas e as baixas, as "comerciais", o entretenimento e as suas indústrias. A moda e a gastronomia, como sucede nas páginas dos melhores jornais. A ópera e o cabaret (e não só desde os Dada de Zurique). O ballet e o streep-tease, ou mesmo o alterne (cartão de artista para todos!). Quanto às artes plásticas, as feiras e os leilões são a cúpula do sistema.
O MC não é o ministério dos artistas, é também o dos públicos (consumidores como nos outros campos da economia; mas igualmente participantes e cúmplices, amadores). E artistas somos todos cada vez mais, como foi lema das vanguardas históricas - ao contrário de umas absurdas fronteiras entre "os criadores" e os outros, delimitando um possível novo campo de privilégios, depois das tradições das menoridades corporativas e das boémias românticas. Ligar o MC às franjas de "ponta" é uma deriva que já não interessa a ninguém, em tempos de concorrência entre o mercantilismo sessentaeoitista de Serralves e a solução Berardo para o CCB, duas parcerias "exemplares" que dão brilho ao MC enquanto vegetam os seus museus.
Em termos de aparelho e tutela administrativa, o MC compreende um escasso conjunto de organismos (museus, arquivos, teatros, orquestras, pouco mais) que ostentam o nome Nacional e são herança de uma concepção monárquica do Estado. Dificilmente se distinguem (e cada vez menos, felizmente) de idênticas estruturas que não dependem do MC e são iniciativa das cidades, de colectivos vários, de fundações e empresas, de particulares, ou que resultam de modos diferentes de associação entre parceiros.
A Cultura e o seu Ministério são tudo e cada vez menos, o que convinha tornar claro e pacífico. É que, para dar nas vistas, a tendência dos titulares tem sido andar em bicos de pés ou fazer asneira .