Como ficou dito atrás, mas num pouco visível (auto)comentário, o Museu Gulbenkian fez diversas tentativas para conseguir o empréstimo de uma obra de Giacometti, que eu considerara ser uma lacuna decisiva - mas julgando-a uma ausência intencional, uma não-escolha. Disseram-me que esteve entre os autores procurados, mas sem êxito, tal como sucedeu com Giorgio de Chirico (que, aliás, chegou a estar assegurado antes da mostra se ter dividido em duas).
Chirico, que poderia ter sido substituído por Carlo Carrà, se este fosse mais acessível, teria documentado a invenção da natureza-morta de inspiração ou intenção "metafísica", que aparece na segunda década do séc. XX e tem continuidade importante na estranheza do surrealismo. O interesse pelos bustos ou torsos de gesso tem aí uma estreia moderna que iria ter larga sequência - ver no catálogo, pág. 25, A Incerteza do Poeta, de Chirico, 1913, e na mostra actual os italianos tocados pela metafísica comparecem com Filippo de Pisis (com uma "natureza-morta marinha", onde é patente a "incongruência" relativa dos objectos reunidos) e Gino Severini (onde aparece uma máscara de teatro e não uma escultura).
Carlo Carrà, "A amante do engenheiro", 1921 (depos. Peggy Guggenheim Coll., Veneza)
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Programar uma exposição panorâmica sobre a história da natureza-morta foi um desafio de grande vulto para a Gulbenkian, mais ainda por não se tratar de uma co-produção com outra instituição internacional, com quem se partilhariam custos e contactos. De facto, é próprio da história moderna deste género uma relativa exiguidade de praticantes de primeira grandeza, pelos quais é indispensável passar para se apresentar uma revisão autorizada. E, para além de sinalizar artistas, torna-se necessário chegar às suas obras que sejam particularmente relevantes no âmbito da sua carreira e mais concretamente no caminho histórico da natureza-morta. Nem sempre aqui acontece, mas o catálogo deixa indicadas algumas pistas decisivas.
Giorgio Morandi, 1953, fotografia de Herbert List (os objectos são atentamente vistos nas naturezas-mortas ditas "abstractas"...)
Para além da ausência de Giacometti, que deveria encerrar a exposição, a par de Morandi (e com um sentido diferente deste - obviamente mais "sensível" à presença espacial das coisas, menos "abstracto" - mas Morandi pinta também os seus modelos...), e para além também da falta de Chirico e Carrà, que deveriam fundar a presença das coisas imaginárias, seria justificada a presença de um Alexandre Kanoldt ou Georg Scholz de modo a representarem a Nova Objectividade alemã, ou seja, um pólo realista que responde aos expressionismos e tem extensões modernas de continuidade da tradição ao longo das décadas de 20 e de 30.
Georg Scholz, "Natureza-morta com cactos", 1925 (Col. Pfalzgalerie, Kaiserslautern - rep. "Mimesis. Realismos Moderrnos", Museo Thyssen). Aqui, o fundo do interior doméstico abre-se por uma janela para a paisagem - é um dos sub-géneros que conviria representar ( comparece na FG apenas com Juan Gris num modo decorativo ) -, e na modalidade dos quadros com plantas aparece o cacto, que começara a ter uma larga presença decorativa nos anos 20.
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Tendo em atenção que em alguns casos são obras de primeira grandeza e de grande eficácia temática que representam os respectivos autores - Cézanne em especial, e também o Picasso decisivo de 1907 (Jarro, Taça e Limão), que deveria ter um lugar mais central no percurso -, podem apontar-se algumas situações de sub-representação. É manifestamente o caso de Dérain, que encerra a 1ª secção ("Negociar a tradição" - continuar a tradição?) com uma pintura pouco representativa, ou que representa apenas a respectiva decadência - e a obra de Dérain (veja-se a reprodução de uma obra de 1922 no cat., pág. 54) é central a vários títulos ao longo da 1ª metade do séc. XX, também no caso da natureza-morta. E a outra presença menos conseguida é, apesar de tudo, a de Matisse, com uma obra de 1923 onde se pode identificar o jogo ilusionista estabelecido entre as flores da jarra e as do papel de parede, tratando-se aí de voltar a uma representação volumétrica e realista do espaço. Sem desconsiderar o "período de Nice", faz muita falta uma natureza-morta anterior (são 32, pelo menos, no total de 151 obras que representavam Matisse na grande exposição de 1993 no Centro Pompidou só sobre os anos 1904-1917).