(A segunda parte militante da década neo-realista de Pomar (1945-1955). Das gravuras políticas ao Ciclo do Arroz)
Nunca exposto até agora e nunca antes referido, embora incluído em 2004 no Catálogo Raisonné graças à memória do artista, Marcha é uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospectivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela PIDE em 1961. Reconhecível entre as figuras do casal que avança em primeiro plano, ocupa um lugar central correspondente na época à sua posição como activista que animava as intervenções dos artistas do PCP nos primeiros anos 50 (ou seria mesmo o seu informal controleiro, um controleiro não sectário, segundo me disse Júlio Pomar). Em 1955 trocou a carreira artística reconhecida pela passagem à clandestinidade como responsável por uma oficina de falsificação de documentos.
A condição política da pintura, obviamente partidária, que justificava a sua ocultação, relaciona-a com as campanhas pela paz que o PCP promovia nos anos 1949-54, ao tempo da Guerra Fria e da guerra quente da Coreia. Mobilizavam-se acções de rua e abaixo-assinados de apoio ao Apelo de Estocolmo pela proibição das armas nucleares, aprovado em 1950, e em especial contra a reunião do Conselho do Atlântico, em Fevereiro de 1952 no Instituto Superior Técnico, depois de a adesão portuguesa à NATO ter sido ratificada em Julho de 1949 – acontecimento e movimentações que vinham abrir brechas nas dinâmicas da Oposição, antes tendencialmente unitária, separando comunistas e democratas.
Em 1952 Marcha tinha de ser uma obra clandestina: era o lado soviético de uma trincheira paralegal, animada num atelier e tertúlia activos em período de forte repressão policial e censória que decorreu durante e depois das candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Ruy Luís Gomes (em 1949 e 1951, respectivamente). Naquele ano a SNBA foi fechada e interrompeu-se a sequência das Exposições Gerais, por Eduardo Malta ter sido expulso de sócio devido a um conflito público com Dias Coelho. Era também o tempo da polémica interna do neo-realismo, em torno da orientação da Vértice, por efeito de um «desvio sectário» que fracturava os meios intelectuais, com um PC debilitado por muitas prisões. Depois, com a morte de Stalin e o relatório de Khrushchev, viria o chamado «desvio oportunista de direita», de 1956-59, a seguir «corrigido» pela fuga de Cunhal de Caxias, em 1961, sempre segundo a dramática pequena história ziguezagueante do antifascismo. Razões de segurança e o ocaso do neo-realismo mais militante, bem como prováveis opções pessoais, podem explicar que Marcha seja uma pintura nunca divulgada antes e também depois do 25 de Abril. O artista nunca a procurou incluir nas suas antologias e a iconografia de Dias Coelho e do PCP nunca a recuperou.
Mesmo que a condição panfletária venha dificultar a classificação como «obra-prima», este é um quadro maior, e não só por coincidirem a ambição do assunto e o grande formato, inédito à época. O encontro entre o manifesto político e o retrato de grupo, de um momento e local bem precisos (o atelier da Praça da Alegria, como veremos), concede-lhe uma verdade prática e uma intensidade emotiva que é fusional com as qualidades formais que o fazem seguramente uma das peças mais marcantes do neo-realismo, que aí se identifica com o campo alargado do realismo socialista embora sem concessão académica. É uma obra bem representativa de um tempo político e suas contingências, é uma peça única na carreira do pintor (apesar de renovar o programa da primeira Marcha de 1946, e de antecipar o Maria da Fonte de 1957, numa idêntica linha de pintura de história), e é decisiva para rever a carreira neo-realista de Pomar.
De facto, Marcha vem exigir uma nova abordagem da década neo-realista de Pomar – de 1945 a 1955 –, e ilumina uma segunda metade incompreendida e ocultada por opções mais políticas que de razão crítica. Reapreciando agora esta obra de 1952, e outras próximas, é possível contrariar a desvalorização desse período (mesmo que depois tal tenha sido por vezes aceite pelo artista), e partir daí para rever a história habitual do movimento, estabelecendo uma divisão em dois períodos diferentes, em especial quanto à obra do seu principal animador, intérprete e crítico.
O primeiro, após o fulgor inicial, 1945, tendeu a tornar-se sentimental e formalista, numa série apreciada de famílias, maternidades e meninos que se associa à situação pessoal do pintor e pai (mas note-se que a Varina comendo melancia de 1949, obra que ficou em sua casa, retomava a imprevisibilidade formal da Mulher com uma pá daquele ano, trocada com o amigo Fernando Lanhas, “que era com quem eu melhor me entendia no ramal das artes” - escreveu em 2003 (Temas..., p. 236) -, apesar da divergência política). O segundo período, a partir de Mulheres na Lota (Nazaré) de 1951, recupera a firmeza austera de um realismo social interventivo, seguramente sensível ao debate estético chegado de França, mas com independência; o artista fez nesse ano a primeira viagem a Paris e aí encontrou Pignon, Fougeron e Taslitzky, mas não deixou testemunho do que viu, apenas referências aos nomes. Algumas obras-chave ficaram a marcar aquela nova orientação e Marcha é a sua bandeira. No mesmo ano Mário Dionísio publicava na Vértice os seus Encontros em Paris, onde dialogava com muita reserva com os três pintores referidos, e em 1952 deixou o PCP, na sequência do conflito sobre as colaborações de comunistas na revista Ler, das Publicações Europa-América.
É conhecido o conflito então aberto entre os dois artistas e teóricos do neo-realismo, que veio a ser registado por Dionísio muitos anos depois, sem a reconsideração do que o tempo mudara:
Quando em 52 vários escritores saem desse mesmo Partido, por discordâncias várias que se ligam também, e muito, a problemas ideológicos no domínio da arte, ele fica. E, como fica, tem de esforçar-se por seguir novos ideólogos, um deles, por sinal, de conversão recente, cuja visão é tão obcecada quanto curta. E conhecida [?]. Seguir sem discussão o exemplo da URSS e os conhecidos mandamentos jdanovistas: representação de cenas, colhidas in loco, de trabalho e luta (ainda que a não houvesse senão como desejo) numa linguagem de pronto a todos “acessível”. Ou seja, um naturalismo impossível de refazer no nosso século e por isso dessorado. Como toda a gente (hoje) sabe, incluindo o Partido em questão. E na URSS também, ou muito em vias disso. Foi um momento de “recuo” na linha evolutiva da obra de Pomar.
Foi o que escreveu no ensaio “O último baluarte” que abre o álbum monográfico Pomar, Publicações Europa-América, 1990, p. 24. Em Passageiro Clandestino I. 1950-1957, os diários de Mário Dionísio, o corte é referido com veemência: “O correio que hoje me trouxe o Comércio do Porto com um artigo do sr. Pomar - uma das várias serpentes que ingenuamente abriguei no meu seio” (p.. 112). Interrompia-se aí uma cumplicidade que vinha de sempre, o que justificaria, quinze anos depois, já em Paris, o título do artigo-entrevista «Reencontro com Pomar» (Diário de Lisboa, 02.03.67). E foi a opinião, com referência directa ao «ciclo do Arroz», notoriamente ditada pela circunstância da conflitualidade partidária e por certo errada em termos da avaliação crítica, que prevaleceu nos sumários históricos.
De facto, a reconsideração do movimento neo-realista e a explícita autocrítica presentes no artigo de Pomar publicado em 1953 n’ O Comércio do Porto (e não na Vértice como era mais habitual) não eram uma cedência circunstancial à pressão partidária, mas foi muitas vezes como tal interpretada. Escrevia Pomar:
As razões desta fragmentação [no seio da corrente ou tendência do “realismo social”] devem procurar[-se] na evolução dos acontecimentos da vida portuguesa, no cair das ilusões que uma interpretação apressada das consequências da II Guerra Mundial ajudara a criar.
Entre aqueles que se afirmavam dentro dos princípios da corrente, alguns perigosos caminhos começaram a desenhar-se. Um lirismo, complacente, tende a substituir a agressividade dramática das primeiras tentativas. A procura de soluções formais começa a sobrepor-se ao vigor de conteúdo; e isto não reflecte senão um alheamento dos problemas realmente vivos. Boa parte do que pintei nos anos de 49 a 51 oferece tais características, e desvios de tipo análogo marcam a obra plástica de Mário Dionísio.
Tinham-se aberto «as portas ao maneirismo e ao formalismo e, em último grau, à renúncia dos objectivos abraçados com entusiasmo» (Júlio Pomar, «A tendência para um novo realismo entre os novos pintores portugueses», reeditado em Notas..., pp. 287-288.
Porque foi este o seu último artigo publicado na imprensa, à época, ficou sempre por esclarecer.
QUEM É QUEM
Veja-se então a pintura. Marcha, entendida como retrato de grupo, identifica sem o representar expressamente o atelier da Praça da Alegria (antigo atelier que já fora de José Malhoa), alugado e chefiado pelo escultor Vasco Pereira da Conceição, militante e ex-preso político, que se reconhece a entrar em cena pelo bordo direito do quadro. Aí trabalhavam também Maria Barreira, sua mulher, certamente referida pela Maternidade, na direita baixa, que é um tema comum na escultura do casal, sem filhos. Mais Júlio Pomar desde 1949 (ou 51?) e às vezes José Dias Coelho e Maurício Penha, mais tarde talvez Alice Jorge. Era lugar de trabalho e também de tertúlia artística e política, onde se conspirou a oposição à NATO e que uma testemunha agora ouvida aponta como uma espécie de antecâmara das Exposições Gerais de Artes Plásticas, em cuja organização participavam então activamente Dias Coelho e também Pomar, que as acompanhava assiduamente na imprensa.
No friso de retratos, ao lado do casal em primeiro plano, está o engenheiro Frederico Pinheiro Chagas, amigo e visita assídua do atelier, cúmplice e proprietário de sempre da obra, e logo ao lado, com o único rosto frontal, vê-se a sua mulher, Dina. Um dos rostos do par heróico de jovens militantes que avança de mão dada, encabeçando a Marcha, guiando o povo segundo uma tradição revolucionária que se partilha com os códigos das apologéticas religiosas, teve por modelo o carpinteiro Francisco Bento, militante libertado da prisão pouco tempo antes, que frequentava o atelier e realizou mobiliário para vários camaradas. A figura feminina permanece por identificar, apesar do inquérito tentado. Uma foto sobrevivente de um estudo desenhado e a possível pista de um busto contemporâneo (Zita) não ajudaram. De Pinheiro Chagas existe também um rigoroso retrato, de desenho neo-clássico. Falta identificar, igualmente, a menina à esquerda, que será alguém em particular e talvez agora alguém se reconheça – a «presença» realista dos modelos, retratos e não figuras «abstractas» ou idealizadas, vem adensar a força mobilizadora do manifesto.
A alegoria tem mais dois pólos laterais, simétricos: a figura da Maternidade à direita, como emblema de futuro, e o estranho personagem visto obliquamente de costas, à esquerda, um (falso) profeta, um velho frade?, vendedor de ilusões, que aponta para uma cidade em versão futurista, em construção, com guindastesn e personagens hieráticos (robotizados); ao fundo, montes áridos e nuvens pesadas. De um lado, as ilusórias promessas do presente, do outro a infância e outros amanhãs. Na metade direita, por trás do friso das figuras, está uma alongada parede ou casa vermelha, que toma o lugar de uma (im)possível bandeira. Também se pode reconhecer ou adivinhar aí, mesmo em cima à direita, uma praia, o céu limpo e um barco, amarelo e azul, que rimam ou se repetem em primeiro plano a rasgar de luz o ventre e o vestido azul da mulher – e este é um inesperado elemento de composição com eficácia moderna que rompe o plano superficial da tela. Todo o alongado primeiro plano – as voltas do xaile da mãe, o fato-de-macaco, as pregas do vestido que se abrem, as dobras do traje do velho – é uma construção sequencial de espaços articulados e dinâmicos.
O atelier da Praça da Alegria, n.º 47, situado entre o Maxime e o Hot Club recém-fundado, ao lado de uma leitaria (Flor da Alegria – fotografada como lugar de tertúlia na revista Eva de Março de 1955), era também frequentado por escritores: José Cardoso Pires, com os primeiros livros e intensa actividade política, que aí conheceu em 1954 a sua mulher, Edite, irmã de Vasco da Conceição, por ocasião do retrato que Pomar pintava, sendo ela retratada por Alice Jorge no ano seguinte; Orlando da Costa, que aí levou Maria Antónia Palla; Alexandre Cabral, amigo do engenheiro, o arquitecto Manuel Tainha e outros mais do círculo político e neo-realista 2.
Para o grande formato de Marcha, único ao tempo – 122 × 199 cm, a têmpera sobre aglomerado, ou masonite –, Pomar usou uma placa da mesma série de três outras alargadas tábuas que pintou para o restaurante Vera Cruz, na Avenida da Liberdade, projecto de Victor Palla e Bento d’Almeida, com quem Pomar mantinha frequente colaboração (elas passaram depois para o restaurante Tarantela, no largo da Estefânea, e dispersaram-se nos anos 90 - Catálogo Raisonné nº 83 a 85; o maior vê-se na Tranquilidade). A vocação decorativa de referência brasileira realiza-se aí com soluções de pintura mural, o que também sugere a Marcha.
Afastado do ensino em 1949, sem outro emprego regular, as encomendas decorativas (não oficiais) substituíam a pouca pintura que se fazia, quase restrita às participações nos três salões anuais da SNBA, e que menos ainda se vendia. À época «produz pouco, absorvido principalmente por trabalhos alimentares», anotou na cronologia crítica que escreveu para a sua primeira monografia editada em Paris (Julio Pomar, Art Moderne Internationale, 1981, p. 48). Algumas ilustrações para editoras de amigos, mal pagas, e a produção de cerâmicas no Bombarral, depois nas Caldas (antes que a circulação das gravuras pudesse financeiramente substituí-la) preenchem anos lembrados como muito difíceis.
ANTES E DEPOIS DA MARCHA
Como disse atrás, Marcha vem proporcionar uma nova leitura sobre a primeira metade da década, o que implica corrigir estudos anteriores. É um período intranquilo e, sem dúvida, de produção irregular ou mesmo desequilibrada, em que facilmente se passa do melhor ao pior, em que há ensaios em direcções contrárias e onde o que há de continuidade e renovação se vai abeirar do seu fim, de 1951 até 1955, quando o neo-realismo acaba em pintura, embora possa prosseguir nas gravuras. Não por acaso, a mostra individual de 1950 (na SNBA, e na Livraria-Galeria Portugália do Porto no início do ano seguinte) só em 1962 terá sequência (Galeria Diário de Notícias), já com Tauromaquias e cenas que continuam a ser de trabalho (Sargaço, Pisa, Debulha, Chegada - de pescadores) mas de que está ausente o programa neo-realista da leitura e mensagem acessível para todos: «A escrita toma uma aparência mais livre, rápida, gestual», «os temas que se impõem ao pintor são os que naturalmente apelam a uma figuração descontínua, fragmentária, repetitiva» (da mesma cronologia, p. 48). É um longo hiato na apresentação pública e uma mudança radical da obra, uma primeira maturidade.
Nesse longo intervalo, no entanto, havia a presença regular nas colectivas periódicas, e de trás vem ainda a exposição de desenhos, aguarelas, gravuras e cerâmicas, apresentada em 1952 na Galeria de Março que José-Augusto França dirigia, e de que pouco mais se sabe do que a divisão em três tópicos, num catálogo prefaciado por três poemas de Alexandre O’Neill: «Os Animais Sábios» (o bestiário, e o humor), «As Imagens de Paz» (onde alguns nus femininos se prestaram a reparos, tal como já sucedera com os da primeira mostra de desenhos, em 1947 – «Pomar compraz-se sobretudo em sentir a deliciosa canção das linhas que melodicamente reconstroem o mais tépido e macio de um corpo jovem de mulher», criticou o então muito ortodoxo Lima de Freitas, Vértice, n.º 113, Janeiro 1953, p. 62) e «Monstros e Homens lado a lado» («expressão simbólica ou naturalista dos problemas humanos», segundo o também pintor José Júlio, Ler, n.º 10, Janeiro 1953, p. 19).
Na antologia de 1986 (itinerante no Brasil e vista no Centro de Arte Moderna) saltava-se de 1951 para 1960. Na retrospectiva de 1978 (Gulbenkian, Museu Soares dos Reis e Bruxelas) tinham entrado onze obras da década de 40 e duas da de 50: só Mulheres na Lota (Nazaré), que ficara na casa de Lisboa com Alice Jorge, e o Ciclo do Arroz II. Tempo de crise, de escassa produção, e apagamento de memórias.
Há então que fazer uma nova escolha de obras maiores desses anos, as quais se devem reconhecer como isoladas, desacompanhadas: Marcha (a surpresa da actual exposição dedicada ao retrato) é precedida por essas Mulheres na Lota, de 1951, e é seguida por Os Carpinteiros (a bicicleta era muito usada pelos funcionários clandestinos) e pelos dois maiores «estudos» para o ciclo «Arroz», de 1953, e logo em 1954 pelo retrato de Cardoso Pires. O maior empenhamento político renova o programa realista e assume uma condição formal austera, de figuração nítida e construção vigorosa, trocando a fluência decorativa e a idealização das máscaras pela prática da observação, em geral com apoio fotográfico conhecido. «1953 – Período marcado por um naturalismo contidos [retenu], sem nunca cair nas convenções do realismo socialista», sempre segundo a cronologia estabelecida pelo próprio (idem, 1981, p. 48), acertadamente.
Para trás tinham ficado duas importantes telas gémeas de 1951, Meninos no Jardim (ou O Eixo Corrido) e Vendedoras de Estrelas, da colecção Jorge de Brito, muito mostradas e apreciadas, sedutoramente maneiristas. Foram expostas na VI EGAP e certamente incluídas na extensa representação nacional enviada à II Bienal de São Paulo, em 1953, que foi um episódio de excepção agenciado por Diogo de Macedo com a Galeria de Março de José-Augusto França, favorecido pelo contexto das comemorações do IV Centenário da cidade 3.
As novas urgências da intervenção partidária afirmaram-se com clareza numa série de gravuras dedicadas ao tema da Paz, que tiveram grande difusão e marcaram presença nas casas de todos os intelectuais de feição comunista, distribuídas pela SEN (Sociedade Editora Norte, Porto), pouco depois encerrada. À linogravura Mulheres Fugindo, que se chamou A Explosão e foi conhecida como A Bomba Atómica, seguem-se no mesmo ano as litografias em que figura a pomba proposta no cartaz de Picasso para o Primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz de Paris, em 1949, como emblema da causa, com referência à filha Paloma: três versões de meninas com pombas e o remake do Almoço do Trolha na versão A Refeição do Menino (ou Família). Com a incisiva edição de As Mães, quatro gravuras foram também enviadas à alargada mostra de São Paulo.
Marcha nunca foi exibida, e são de facto os dois Estudos para o ciclo “Arroz” que polarizaram o comentário (ou o silêncio) sobre esse tempo. Mário Dionísio continuou sempre a opor-se, com uma veemência que deve ser reconsiderada:
“E o que é o ‘ciclo do arroz’? Uma desesperada tentativa [...] São óleos de camponesas ceifando, bebendo água, de que a pintura anda longe. Aquela, pelo menos, que ao artista certamente interessava. São sobretudo duas grandes composições – ‘Ciclo do Arroz’, I e II –, onde o desenho fechado leva a melhor, a pincelada a si mesma se disfarça, como sentimentalmente pareceria convir à gravidade do assunto: mulheres vergadas para a terra manejando enxadas, numa das composições, mulheres, na outra, indo para ou regressando do trabalho em fila indiana, sóbrias, quase rígidas, com a fixidez de instantâneos em pose. Mas manejavam as enxadas? Mas caminhavam? A arte aqui está mesmo no limite de ser apenas meio. A velha história das boas intenções que nunca bastam» (op. cit., 1990, p. 50).
O artista disse depois outra coisa, “um naturalismo contido [retenu, tenso], sem nunca cair nas convenções do realismo socialista», 1981, e depois:
«Vemos aqui a presença do pintor muito mais neutralizada, o quadro a abeirar-se de um realismo fotográfico. Nele houve, voluntariamente, a adopção de uma linguagem a que na altura chamaríamos objectiva. A proximidade da fotografia (de resto foram utilizados documentos fotográficos) é muito grande. No entanto, sob a pretensa objectividade da representação, há uma arquitectura íntima, um jogo de formas nítidas que não anda longe de certas marcas futuras da minha pintura» (Entender a pintura n.º 4, Arte Ibérica, entrevista de Alexandre Melo, 1998, p. 8):
Acontece também que a produção militante de Pomar é acompanhada no mesmo ano da Marcha por obras de feição bem diversa e numa direcção inédita na sua produção, cinco paisagens, numa situação que reflecte uma manifesta pluralidade de interesses – mas nenhum destes pequenos quadros singulares terá sido exposto no seu tempo próprio. Exercício paralelo mas confidencial, exibem experiências sensíveis e liberdades de pintura, que, tal como um curto texto sem título publicado só em Paris, desmentem o gosto por ortodoxias:
«Deformação profissional: não acredito na infalibilidade do Papa. Cada dia, cada minuto, reponho o mundo em questão. O métier de pintor é um trabalho de pesquisas, de descobertas, de invenções: pesquisas, invenções, descobertas que nascem da vida e a ela retornam» (in Premier bilan de l’art actuel, Le Soleil Noir. Positions, 1953, n.º 3-4, p. 314).
São paisagens das Azenhas do Mar (em férias familiares), da Ericeira e incertamente de Lisboa, datadas de 1952 e 53. Sem outro programa que a curiosidade de pintar, elas circulam da observação à imaginação, à beira da estranheza irrealista de formas e cor. A paisagem foi sempre rara mas iria regressar em 1955 num breve ciclo desenvolvido com dificuldades e pouco êxito quando o pintor se muda para um andar elevado da Rua da Alegria com uma larga vista sobre a cidade.
RETRATOS, RETRATOS
A disciplina do retrato era à época recomendada ou imposta pelos partidos comunistas em tempos de grande pressão do culto da personalidade, designadamente em França, de onde chegava então a informação predominante, via Arts de France (aí surgira em 1949 a «Tribune du Nouveau Réalisme» e a revista desaparece em 1951, vítima do seu sectarismo). A pintura de história também se impunha, mas só podia ser escassa entre nós. Alguns episódios polémicos tiveram retratos por pretexto (foi famoso o caso do Stalin de Picasso, nas Lettres Françaises, à data da morte...), num período em que o combate aos realismos, depois dos rigores nazis e soviéticos, fazia parte do enfrentamento entre os blocos da Guerra Fria. Picasso continuaria a retratar livremente, depois os realistas ingleses independentes Freud e Bacon, e a seguir a geração Pop de Hockney e Kitaj, entre os maiores, iriam reafirmar a centralidade, pelo menos a permanência, do retrato na arte do século XX – Bacon e a POP anglo-americana influenciaram directamente Pomar, já em Paris.)
À volta dos retratos pode desenhar-se um mapa habitado da época, e os livros então ilustrados por Júlio Pomar traçam o horizonte das suas relações literárias marcadas pela cumplicidade política e pessoal: Carlos de Oliveira (retrato na edição especial de Colheita Perdida, colecção «Sob o signo do galo», Coimbra, 1948); Sidónio Muralha e Cardoso Pires (desenhos de 1949 e 50); ilustrações para Alves Redol, Raul de Carvalho e Ferreira de Castro (1949) e Alexandre Cabral (1955); retratos desenhados de Mário Dionísio, José Fernandes Fafe, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, Orlando da Costa (para as tiragens especiais de 40 exemplares da colecção Cancioneiro Geral do Centro Bibliográfico, 1950-1953). As grandes encomendas de ilustrações para a Fólio (dirigida por Victor Palla e Cardoso Pires), Sul (de Castro Soromenho), Realizações Artis (de Rogério de Freitas e Leão Penedo), Bertrand, Minotauro (Urbano Tavares Rodrigues), Cor (direcção de José Saramago) e Portugália (Augusto da Costa Dias) virão depois, entre 1956 e 1967.
Em escultura Pomar retratara a sua mulher, Maria Berta Gomes, em 1949 (que também surge como modelo em várias pinturas – Resistência e Marcha), e igualmente os escritores Sidónio Muralha, 1950, e António Navarro, 1951, três obras presentes na actual exposição, mais Armindo Rodrigues, 1951, ficando por aí o número das peças não convencionais. Conhecem-se apenas mais quatro «cabeças», duas de amigos (Ana Moura, mulher de Rui de Moura, depois editor da Prelo) e Joaquim Barata (fundador e gerente da Gravura) e duas outras perdidas (Zita e Liliana, 1951), talvez de encomenda. À escultura só voltará com os ferros soldados associados ao ciclo Dom Quixote, em 1960.
Fez também, em 1954, os retratos pintados de Cardoso Pires e Maria Lamas (esta detida pouco antes, no regresso de Moscovo, e o quadro foi exposto na VIII Geral apesar do contexto repressivo), a que se acrescentam os de Vera Azancot (1954, de encomenda), Alice Jorge (1955, com quem então vivia), Maria José Salvador (1956, mulher de Manuel Torres, amigo para sempre, companheiro das viagens de carro a Espanha e França, e fundador da Gravura).
Ampliando o horizonte a outros artistas, sabemos que, por seu lado, José Dias Coelho, que entrara no mesmo ano de 1942 na Escola de Belas-Artes de Lisboa, apresentou nas Gerais retratos de Rolando Sá Nogueira, 1949; Margarida Tengarrinha, 1950; Alves Redol, 1951; Maria Eugénia Cunhal, 1953; Maria Isabel Aboim Inglês, 1954, entre outros não nomeados. Realizou também os bustos de Fernando Namora e do designer Tomás de Figueiredo. O retrato teve sempre uma forte presença nas Exposições Gerais. Tomando por guia o catálogo Um Tempo e um Lugar (Museu do Neo-realismo, Vila Franca de Xira, 2005 - ver adiante), referem-se ou reproduzem-se obras de Abel Manta (Bento Caraça, 1947), Sá Nogueira (Frederico George e Jorge Vieira de c. 1949), Maria Keil (Abel Manta, 1949), Vasco da Conceição («cabeças» de Maria Barreira, Sidónio Muralha e Lopes Graça, 1948-50), Victor Palla (Cardoso Pires, 1951), Mário Dionísio (Joaquim Namorado e a filha Eduarda, 1953), Lima de Freitas (Alves Redol, 1953, Cardoso Pires, 1954), Alice Jorge (Edite Cardoso Pires, 1955), e também de João Abel Manta (Aquilino Ribeiro, 1940?), Arlindo Vicente (João Gaspar Simões, s/d), José Farinha (Alves Redol, s/d), Euclides Vaz (Celestino Alves, 1949), entre outros retratos indicados sem nome dos modelos. O retrato dos retratos desses anos incluiria boas surpresas.
Publicado no catálogo O Desenho impreciso de cada rosto humano, reflectido! Retratos de Júlio Pomar, pp. 146-156, com tradução inglesa, ed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta, Dezembro 2021 (a exposição decorreu de 22.10.2020 a 28.02.2021). Revisto e aumentado.
1 Marcha, 1952, têmpera sobre aglomerado, 122x199 cm - n.º 86, pp. 84-85, do Catálogo Raisonné I, Editions La Différence / ed. Artemágica, Paris, 2004. Catálogo Atelier-Museu, pp. 144-45.
2 Agradeço a Margarida Tengarrinha, Edite Cardoso Pires e Maria Antónia Palla as suas memórias do atelier da Praça da Alegria, bem como as ajudas de António Redol, Teresa Dias Coelho e Ana Cardoso Pires.
3 Delegação organizada pela Comissão Portuguesa das comemorações do IV Centenário da cidade catálogo: https://issuu.com/bienal/docs/name24c514/31. “Artistas modernos portugueses na II Bienal do Museu de Arte Moderna de S. Paulo - Brasil / [organizado pelo Secretariado Nacional da Informação]. [Lisboa : S.N.I., 1953-1954]. Ver Gerais