Vemos uma imagem antes de a reconhecermos, de a identificarmos, de a conhecermos, portanto. Não é uma imagem abstracta, mas uma paisagem, o que já é uma classificação rigorosa: a natureza revista pela acção humana, e revista através de uma tradição de imagens picturais e depois fotográficas - ou o contrário, agora. Enquanto quadro, vemos um exercício prático e pessoal da pintura que se reconhece como de um género preciso (a paisagem - género dado como extinto e afinal reactivado), e vemos ou podemos ver (sentir) uma experiência pessoal e íntima da natureza, mediada por essa prática da paisagem. Uma paisagem imprecisa, irreconhecível enquanto representação, que manifestamente se oferece como pintura. Não parecem ser metamorfoses de elementos da paisagem, desrealizações de uma paisagem visível, uma paisagem imaginária o que vemos - por aí se insinuaria um efeito de distanciação que parece ausente. A paisagem não é exacta como costumamos querer uma paisagem, e os meios da pintura (a pincelada visível, a mancha, o risco de cor) são tão igualmente presentes como o que podemos identificar como céu ou árvore. Tratar-se-á de experimentar em pintura uma experiência da natureza. E de as comunicar ao espectador.
O que imprecisamente se percebe no contacto com os quadros como eficácia visual, efeito de atracção do visto e interrogação do visível confirma-se na leitura do texto com que o pintor acompanha a exposição - e seguindo as suas referências, usando-o como guia. Por aí, passamos pelo filme que se refere no título da exposição, "O abraço de Séraphine", o excelente Séraphine, 2008, de Martin Provost, e pela obra e a pessoa de Séraphine Louis ou de Senlis (1864–1942), pintora naïf ou Outsider ("brute"), descoberta e exposta por Wilhelm Uhde, com Henri Rousseau e outros "primitivos modernos" (mestres primitivos ou "Sacred Heart painters", em 1928).
http://en.wikipedia.org/wiki/Séraphine_Louis (foto de 1920). No filme, Séraphine é a extraordinaria Yolande Moreau
Não é a pintura de Séraphine enquanto estilo que RA refere, nem a sua prática marginal ou autodidacta, mas a sua "tentativa de entender o mundo", perseguindo e percebendo na pintura aquilo "que racionalmente está fora do seu alcance". Sendo essa identificação assumida ("Assim como Séraphine, também eu encontro conforto no bosque, no campo, longe das pessoas"), nenhuma "ingenuidade" se afirma num texto em que as referências literárias e cinematográficas se sucedem, depois de ter colocado a exposição anterior (Gal. MCO, Porto, 2010) sob a égide de Kierkegaard ("Otteveisktogen ou o Recanto dos Oito Caminhos”).
A par de uma experiência directa da natureza ("deixar que o mundo me entre pelos olhos dentro"), RA reclama-se de uma experiência culta da prática da pintura. Refere Van Gogh através do filme de Akira Kurosawa ("deslumbrarmo-nos com a Natureza e pintar freneticamente"), os Românticos e Goya (a "inevitável duplicidade, sentimento de deslumbramento e sentimento terrífico"), mas também a animação japonesa de Princesa Mononoke (Hayao Miyazaki, Studio Ghibli, 1997). Poderia ser um excesso de ambição, mas a consistência da análise e a relação produtiva com a sua pintura desmentem essa hipótese.
Noutro contexto falou do seu interesse por Herbert Brandl e João Queiroz.
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Galeria MONUMENTAL, último dia (30 de Julho).