(Portugal visto por Candida Höfer, fotógrafa da Nova Objectividade alemã. Interiores desertos de teatros, auditórios, palácios, igrejas, bibliotecas e «outros»)
EXPRESSO/Actual de 08-12-2006
Ao fundo da grande galeria do CCB, à direita, há uma sala pequena que põe um fim inesperado à exposição de Candida Höfer, juntando imagens de três museus e de um mercado. No livro homónimo, Em Portugal - um magnífico volume da Schirmer/Mosel, de Munique, o habitual editor da Escola de Dusseldorf -, as mesmas cinco fotografias aparecem num último capítulo intitulado «Outros» (mais uma não exposta, do Ministério das Finanças, no Terreiro do Paço, a prolongar uma mesma possível pista de reflexão sobre significados económicos da cultura). As secções anteriores são dedicadas a interiores de teatros e auditórios, palácios (e residências reais), igrejas, bibliotecas e arquivos, que na exposição estão ordenados de forma menos rígida, por razões de espaço, de formato das provas e também, certamente, para introduzir algumas surpresas no itinerário e ir sugerindo possíveis interrogações à (des)atenção do espectador. Nessa sala final, está em destaque uma fotografia realizada no Museu da Electricidade (Central Tejo), e é óbvio que essa isolada presença das máquinas industriais é uma piscadela de olho aos mestres Bernd e Hilla Becher, com quem a autora estudou na Academia de Belas-Artes daquela cidade alemã, na segunda metade dos anos 70. Candida Höfer (n. 1944) faz parte do famoso grupo dos seus discípulos, com Thomas Struth, Thomas Ruff, Axel Hüte e Andreas Gurski, representantes de um nova Nova Objectividade germânica que retomou a tradição da pureza formal e documental de Renger-Patzsch e Moholy-Nagy, revista pela adopção conceptual dos métodos tipológicos de August Sander e Karl Blossfeldt.
Na mesma sala estão duas imagens do Museu de Arte Antiga, uma mostrando frontalmente o espaço de exposição dos Painéis de Nuno Gonçalves e outra a imaginária medieval na sugestiva montagem por acumulação, aparentemente ocasional, de um corredor superior do Museu - as diagonais que estruturam esta fotografia e a da Central Tejo aparecem em simetria no mesmo plano do livro, reforçando a sua observação associada. Esta conjunção parece propor uma reflexão sobre a vida dos objectos, desde uma primeira utilização funcional (a devoção, a produção industrial) até à posterior apropriação como testemunhos do passado, a musealização, numa situação em que se contrapõem a deslocalização das imagens religiosas, autonomizadas como arte, e a preservação das máquinas no seu espaço original, enquanto arqueologia industrial.
Outro par de imagens que é interessante explorar é formado pelas que Höfer realizou no Mercado do Bom Sucesso, no Porto (um magnífico projecto de ARS-arquitectos, de Fortunato Cabral, Morais Soares, Cunha Leão, 1949-52, recentemente restaurado), e no átrio do Museu de Serralves. A imagem única do mercado está deserta de gente (como é de regra, uma só vez violada, numa fotografia da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), mas é um espaço cheio de vida - os guarda-sóis abertos introduzem uma nota suplementar de estranheza -, ao contrário da vista inerte do museu, que, por sinal, foi escolhida para encerrar o livro. O olhar sobre o mercado é a única imagem alheia ao universo da cultura, ainda que a sua inclusão possa decorrer do facto de se tratar de uma excelente peça do património arquitectónico moderno - fica por esclarecer a intenção da artista, o que introduz alguma instabilidade num universo em que reina uma ordem feita de espírito de sistema e monumentalidade.
É a lógica do inventário que constitui um dos princípios do trabalho de Candida Höfer e do rigor que lhe é reconhecido, mas a autora não quer ser vista como fotógrafa de arquitectura e é enquanto artista que segue uma prática documental - no seu caso, é recente o crescimento dos formatos, que monumentalizam as imagens do património (já por si mesmo) monumental, ampliam a quantidade de informação e absorvem o olhar do espectador para percorrer os seus espaços vazios. As imagens definem uma espécie de tipologia dos espaços sócio-culturais, em que a ideia de património parece determinante e onde se cumpre um propósito de neutralidade, de distanciamento, que se associa à objectividade proclamada pelos Becher: «O princípio da catalogação das ciências naturais é, para nós, um princípio artístico». Para além dessa norma que identifica a tendência de Dusseldorf, a montagem das fotografias na exposição vai sempre escapando à monotonia do inventário para desafiar leituras mais dinâmicas. É o caso da inclusão do imenso espaço circular e moderno do Coliseu do Porto entre as imagens dos teatros oitocentistas de São Carlos, D. Maria e São Luís, logo na primeira galeria, dedicada a salas de espectáculo (outras se verão adiante, da Gulbenkian, do CCB, a Casa da Música e os casinos de Lisboa e Estoril). E também, por exemplo, do alinhamento de vistas de palácios que se reconhecem como cenários políticos do presente (as salas de sessões da Assembleia da República, a Sala das Bicas do Palácio de Belém) com imagens dos palácios reais da Ajuda e de Mafra, a que se juntam lateralmente as imagens algo insólitas da escadaria do Palácio da Horta Seca (Ministério da Economia) e outras escadas do Palácio de Monserrate em Sintra.
É um olhar mais subtil do que neutro o que nos oferece Candida Höfer, num grande projecto realizado em e sobre Portugal, um importante trabalho de encomenda sobrevivente da programação de Delfim Sardo com o indispensável patrocínio do Banco Espírito Santo.
Candida Höfer
«Em Portugal»
Centro Cultural de Belém, de 1 de Dezembro até 25 de Fevereiro
Edição MC, CCB e Schirmer/Mosel, 128 págs., €40
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