Rui Chafes é um artista maior, o que se pode dizer de muito poucos.
A 1ª notícia que me chegou da exp. do CAM referia-a como "um desastre". O lugar vencera o escultor e apoucava-lhe as obras, o que seria uma apreciação consensual na noite da inauguração. Fui ver se há razões para falar de desastre ou se é apenas mais um exercício de maledicência apontada a quem se eleva sobre a mediania ambiente (uma mediania igualitária, democrática? São iguais todos os artistas, por serem ou se dizerem artistas?).
Julgo, afinal, que o Rui enfrentou o desafio e a dificuldade da nave do CAM da melhor maneira possível, sendo a nave um espaço impróprio para exposições, inteira e despida ou compartimentada por tabiques (para quando a demolição ou um projecto de arquitectura interior, como teve de fazer o Centro Pompidou?). Rui Chafes dispensou qualquer adereço arquitectónico para enfrentar directamente com as suas esculturas aquela arquitectura aberrante. Numa batalha desigual com o edificado (gigantesco), conseguiu que cada obra (de pequena ou grande escala) imponha o seu lugar e a sua presença graças ao que mais importa: a atenção do visitante, a captura do espectador e a relação entre este e o objecto exposto. No espaço aberto, ou em algumas dobras do espaço, no chão raso ou elevados, surgindo como obstáculos ou vulneráveis à passagem desatenta, com uma inteligente diversidade de soluções, em campo aberto ou em lugares fechados, cada peça cria o seu próprio espaço necessário, e os objectos impõem-se a quem os quer ver. Como enigmas, como ameaças, sinais, evocações.
O hábito caseiro tem sido entregar os espaços a decoradores travestidos de curadores (forjei há pouco tempo o conceito de de-curador...); são minimalistas e conceituais, dispõem uma "ideia" aqui (graças ao teor de uma tabela) e um material acolá, se possível um objecto encontrado. Grande parte da escultura que por aí se costuma ver é, aliás, decoração, do que não vem mal ao mundo; ou é ilustração que 'aborda questões' como um exercício escolar. Mas estamos aqui, com as obras do Rui Chafes, noutro plano de existência.
Não há decoração nem houve de-curador. Ele conseguiu com as suas esculturas usar o espaço para as expor, para as impor; não é uma exposição para ver de longe e de fora, depressa. Cada peça cria ali o seu espaço necessário, de atenção, de demora, de absorção, de interrogação e admiração, de contemplação e recolhimento, todas elas instaladas no espaço amplo como seres que invadem e habitam o lugar à sua volta, à sua maneira, impondo-se. Há que percorrê-las uma a uma.
II
Não encontrei por lá o Museu do CAM nem mesmo parte da colecção (o Amadeo, a modernidade histórica, em especial*). Ou me perdi ou a Gulbenkian está com um acesso de irresponsabilidade cultural.
A exposição (e a obra) do Rui Chafes é admirável, impondo-se em absoluto numa arquitectura hostil. Mas a exposição do João Tabarra podia fazer-se a seguir, para bem de todos - dele, do Rui, de nós todos. Há ali uma situação de cacofonia imparável, que não custava adivinhar.
(Julgo que a responsabilidade da irresponsabilidade é principalmente da administradora Teresa Gouveia - não estou a hostilizar a Isabel Carlos, comissária da exp. do Rui Chafes.)
* Mas quando os painéis das Gares Marítimas são inacessíveis e os Amadeos se metem nas reservas, à conta de gente tida por culta e de entidades sérias, não há mais lugar para se falar (mal) da política cultural do governo, ou da falta dela. Comecemos por apontar o dedo aos que nos estão próximos e aos que mereceram respeito durante muitos anos. O desgoverno está do nosso lado.
Uma das características da ignorância portuguesa (da leviandade, incompetência, incultura, irrelevância, e por aí fora) é o desprezo pela ideia de Museu. É uma coisa de tirar e pôr, uma coisa que os directores usam para comissariar exps. e passear pelo mundo, mesmo que depois só tenham dinheiro para mostrar portugueses (são todos óptimos, mas paradoxalmente não precisam de ser mostrados em Museus). Os museus não são descartáveis, mas os seus directores são-no.
III
Não percebo como se apresenta a mostra de Rui Chafes como a sua primeira exposição antológica: " 'O Peso do Paraíso' é o título da primeira exposição antológica da obra de Rui Chafes (Lisboa, 1966) que abrange vinte e cinco anos de produção." (inf. FG)
A gente percebe assim que uma das razões para acabar com os museus é precisamente o apagar da memória e do saber. Tudo se equivale, a mediocridade é mais democrática, a ignorância está no seu elemento.
Convém lembrar que há anos (em 2000/2001) o Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo, com o Palácio e o Parque da Pena, dedicou-lhe a 1ª grande mostra antológica, por iniciativa da sua directora Maria Nobre Franco. Encontrei um pequeno registo no Cartaz do Expresso: "No Museu Berardo expõem-se trabalhos recentes e em especial uma escultura de grande formato (Perder a Alma, 1998) que entrou na respectiva colecção. Mas a mostra alarga-se ao Parque e ao Palácio, incluindo quatro dezenas de trabalhos já antigos (fins dos anos 80) e outros inéditos que invadem o cenário romântico e «kitsch» de Sintra num projecto tão desmesurado como surpreendente. «Durante o Fim» foi um dos acontecimentos do ano e é acompanhado por um livro homónimo."
"Durante o Fim", exposição de trabalhos recentes e antologia desde 1988, com 46 obras, ocupou o antigo Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo, o Palácio da Pena e o Parque, entre 15 de Outubro e 15 de Janeiro de 2001, com esculturas instaladas nos interiores e exteriores dos edifícios e na paisagem, o que as fotografias de Alcino Gonçalves muito bem documentam no livro homónimo. Ed. Assírio & Alvim / Sintra Museu, com textos de Maria Nobre Franco, Aurora Garcia, Manuel Castro Caldas e Rui Chafes. 15 anos depois o livro não tem uma ruga.
Na foto, Aura, 2000 (nº 38), instalada na cozinha do Palácio da Pena.
IV
"A pesquisa da escultura em ferro empreendida por Chafes aborda questões como “o sonho”, “a morte”, “a dor”..." (sic).
De facto as "questões" não existem antes das obras, as obras não abordam questões que lhes pré-existam (seriam ilustrações). Falar de uma 'pesquisa' que 'aborda questões' é tratar a criação escultórica ou plástica em geral como uma actividade ensaística ou literária, é "explicar" uma obra como quem analisa e explica um texto escrito. Um ensaio é uma 'pesquisa' que 'aborda questões' A, B, ou C..., é ou deve ser um exercício reflexivo ("reflecte sobre") que se constrói sobre questões, temas e conceitos.
Uma escultura séria não é uma reflexão sobre... o sonho, a morte, a dor (ou a vigília, a crença, a fé, a vida, o prazer, a alegria, a culpa, etc... acrescentar à vontade, e tanto faz...). É o observador que se socorre de palavras (sonho, morte, dor...) para tentar entender a sua emoção diante de objectos; as 'questões' aparecem no discurso balbuciante do espectador e do crítico, não estão presentes (como abordagem) na obra nem na prática criativa. O discurso escolar (a pesquisa, o abordar questões) substitui-se à relação com a obra; as muletas discursivas substituiram-se à apreciação estética - e em muitos casos (não no de Rui Chafes) o discurso (a retórica escolar) substitui-se às obras. (São 'casos', são estudantes, não são artistas.)
V
"Chafes é uma notável figura do movimento de retorno à escultura que se verificou em finais do século XX." (Como o texto não vem assinado, pode comentar-se mais à vontade.)
Essa do retorno à escultura (ou à pintura), ainda por cima como 'movimento de retorno' é uma das balelas insistentes duma certa produção escolar alimentada pelos "centros de arte" que se substituíram aos museus. A escultura não esteve interrompida, desaparecida ou extinta, e Anthony Caro (por exemplo) só morreu muito recentemente; Chillida também, Antony Gormley e Tony Cragg e muitos outros - outro exemplo, João Cutileiro não suspendeu a actividade nos anos antes dos finais do séc. XX.
Não houve alguma coisa que retornou, para além do jogo de projectores que produz novidades, ou falsas novidades. Por um lado adopta-se a lógica das modas e da sua rotação: agora está a dar o ready-made (ou a instalação, a performance ou a 'arte em geral') e depois volta a usar-se a escultura... Por outro, apenas se indica que as lógicas da atenção e da promoção, as tendências da programação e da crítica, deslocam por algum tempo a sua atenção para o que seriam diferenças, novas orientações e novidades, desinteressando-se do que continua, amadurece, se renova, etc.
Adopta-se uma perspectiva teleológica, em que as novas vanguardas se substituem às anteriores, negando-as até um destino último e sempre mais próximo. Há práticas ameaçadas de extinção, como o retrato escultórico, o monumento celebratório, o relevo decorativo. Essas terão dificuldade em 'retornar', por efeito de uma desaprendisagem instalada nas escolas de arte, mas até o pedestal/plinto 'resistiu' à sua extinção decretada, o bronze voltou a estar de boa saúde, a representação figurativa encontra-se em muito lado. A escultura esteve e está, sem ter retornado, o que não é garantia que não venha um dia a desaparecer, face à oferta de novos instrumentos técnicos de produção de imagens e sob os escombros de um século de pressão iconoclasta e anti-artística (a anti-arte de muitas vanguardas e pós-vanguardas tem consequências, como tiveram efeitos as vanguardas políticas, de desastre em desastre). Para já ainda não aconteceu.
VI
"Em termos formais a obra é herdeira do minimalismo e da arte conceptual e bastariam duas referências, Richard Serra e Joseph Beuys, para entendermos como no entanto essa herança é trabalhada de um modo tão próprio, único, singular e absolutamente autoral: nenhuma escultura de Chafes lembra mais nada do que uma escultura de Chafes." (sic)
Este parágrafo parece particularmente infeliz, e é tão confuso como contraditório nas afirmações que inclui. Se há categorias obscuras e contestáveis esse é o caso do alegado minimalismo e da mal-chamada arte conceptual; depois, falar em herança permite incluir tudo o que se sucede no tempo e tudo o que se lhe opõe. Serra é pós- e anti-minimalista e Beuys teve pouco de conceptual. Não sei o que dirá Chafes de tais papéis de herdeiro que lhe atribuem, mas importaria sim relevar o que são as suas referências góticas e românticas, em vez de propor ancoragens em modas críticas recentes.
É totalmente errado dizer que "nenhuma escultura de Chafes lembra mais nada do que uma escultura de Chafes" (que diabo, trata-se de um escultor culto...), mas pode ser só uma maneira desfazer o que se disse antes, que a obra é herdeira do minimalismo e da arte conceptual.... E dizer que basta referir Serra e Beuys para entender que "nenhuma escultura de Chafes lembra mais nada do que uma escultura de Chafes" é apenas um disparate.
Que uma instituição como a Gulbenkian produza papelada deste péssimo nível só pode traduzir uma desorientação dos serviços e uma profunda crise da cultura artística em circulação. É de facto esta ignorância que se "ensina" nas escolas. Não há mais lugar para a complacência; já chegámos ao fundo.