JOÃO FERNANDES, Entrevista
"Abrir um caminho contra o isolamento"
Expresso Cartaz ou Actual (?) de 15-02-2003, pág. 8/9 (este texto foi algo abreviado na versão publicada)
Os
objectivos e a estratégia do Museu de Serralves explicados por João
Fernandes, continuador do projecto de Vicente Todolí
(estávamos no momento Bacon, um episódio excêntrico na programação do museu, que não por acaso propiciou a ida de Todolí para a Tate Britain - sobre esta e outras exposições que foram sucessos de público, ouvia-se dizer: de vez em quando é preciso dar um rebuçado. Bacon foi entendida como uma exposição-rebuçado e foi um episódio muito discutível de integração de várias obras rejeitadas pelo pintor que então entravam no mercado. No mesmo nº, alías, publiquei uma resposta intitulada "A política da mentira" a um exercício de difamação produzido por um consultor de galerias, feiras, centros de arte, coleccionadores e primeiros-ministros, sucessiva ou simultaneamente, que se editou sob o título "Serralves e Vicente Todolí", no sábado anterior, 8 de Fevereiro - Carnavais. Agora republica-se por ocasião da partida de João Fernandes e da chegada de Suzanne Cotter *)
João
Fernandes sucedeu a Vicente Todolí na direcção do Museu de Arte
Contemporânea de Serralves, depois de com ele ter colaborado desde
1996. É a continuidade que defende ao definir o seu projecto.
A expectativa que acolheu Bacon têm a ver com a escassez de nomes históricos e
grandes obras na programação dos museus portugueses, e de Serralves
em particular?
Acho que
não tem a ver com o nome ser mais ou menos histórico. Em Portugal é
muito difícil avaliar quais são os nomes que podem ser considerados
históricos ou conhecidos pela sua própria história.
Bacon não é só mais
histórico, é um artista maior.
É um
daqueles nomes universais e inquestionáveis, plenamente afirmado,
que foi objecto de estudos exaustivos e múltiplas exposições. É
um artista que já está feito. O grande desafio é criar um ponto de
vista singular sobre a sua obra. Tomámos a opção de não repetir
coisas que já foram feitas.
O grande desafio é
mostrar Bacon em Portugal.
Acho
que não compensa fazer uma exposição para Portugal e só para
Portugal. Trabalhar com um artista como Bacon é também uma questão
de afirmação do museu. É um objectivo do programa deste museu não
fazer em Portugal o que os outros já fizeram lá fora. Podemos
associar-nos a outros museus, mas o que importa não é seguir o
modelo de outros, é criar o próprio museu e com isso conquistar o
respeito internacional e uma singularidade.
O público precisa de
ver os artistas que cá nunca foram expostos.
Há um
outro factor a ter em conta. Não é possível de um momento para o
outro resolver todas as lacunas do passado. Serralves pode contribuir
para dar algumas respostas a essas lacunas, mas não pode responder a
todas as omissões do passado institucional português e à
inexistência de um contexto institucional para a arte contemporânea
em Portugal durante grande parte do séc. XX. Isso faz com que,
quando programamos o nosso calendário de exposições, o objectivo
não seja olhar para o contexto internacional e dizer: o que é que
vamos agora trazer a Portugal? O que procuramos, em função dos
nossos critérios próprios de actuação, é criar uma programação
heterogénea e diversificada - porque este não é um museu de
tendência, que nunca defenderá que a arte deve ser de uma
determinada maneira… Bacon ou Lissitsky e Mondrian, que mostrámos
com A. Souza-Cardoso, são nomes históricos e afirmados, mas sobre
os quais é possível acrescentar um novo ponto de vista. É essa a
ambição do projecto, porque fazer aquilo que já foi feito em Paris
ou Londres, e bem feito, só para o fazer em Portugal, não se
justifica. É possível o confronto com essas experiências através
do livros, da pesquisa e da informação, e gostariamos que houvesse
um contexto à volta, através do sistema de ensino, das bibliotecas
e das várias instituições…
Os livros não
se substituem às obras.
Fazer um
museu como Serralves no contexto português não é a mesma coisa que
fazer um museu noutra parte do mundo, e esse é um dilema a que
importa responder com grande oportunidade. Fazer um museu para todo o
mundo e fazer um museu em Portugal são dois factores indissociáveis.
Qualquer coisa que aconteça aqui é dirigida quer ao contexto
português quer ao contexto internacional, em simultâneo, e achamos
que não devemos fazer coisas paternalistas para o contexto português
ou coisas apenas circunscritas ao contexto português. Obviamente que
temos em conta o contexto português na definição da programação,
mas é-nos impossível contar a história do séc. XX aos portugueses
desde o início.
Não dá demasiado peso à ideia de projectar Serralves entre os museus de ponta
internacionais?
Há dois
objectivos: um é integrar Serralves no contexto dos museus
internacionais que acrescentam pontos de vista sobre a arte do nosso
tempo, outro é afirmar o projecto de um museu de arte contemporânea
em Portugal junto do público português. São objectivos
indissociáveis e o sucesso de um implica o outro. A programação de
um museu deve ser sensível aos contextos, nunca dependente deles.
Uma programação não deve ser fabricada nem para o contexto
internacional nem para o contexto português; afirma-se sendo
sensível aos horizontes de recepção, que devem ser indissociáveis
o mais possível, para evitar aquilo que até agora acontecia - a
definição de estratégias apenas para o contexto português, que
contribuíam para o seu isolamento, ou só para o contexto
internacional, contribuindo também para o isolacionismo. As duas
coisas têm de ir a par. Temos uma opção de programação com maior
número de exposições de artistas estrangeiros que portugueses, o
que achamos importante para os situar numa programação e numa
colecção internacional. Se esta lógica fosse invertida, Serralves
era mais um museu nacional, que seria relativizado no contexto
internacional, enquanto assim, pelo menos, cria-se um espaço onde
tudo quanto acontece, e também a arte portuguesa quando acontece,
pode vir a ser objecto de uma atenção que não é filtrada pelo
localismo ou pelo nacionalismo. Num país que esteve tantas vezes
isolado, o problema da relação nacional-internacional coloca-se
sempre, é um problema endémico da cultura portuguesa do séc. XX,
mas não se pode ter uma estratégia proteccionista, que conduziria
pura e simplesmente ao isolamento.
Serralves não
conseguiu ainda levar exposições de artistas portugueses ao
estrangeiro.
Já
conseguiu, com Cabrita Reis, numa produção com o Museu Ludwig, mas
por ser um artista conhecido internacionalmente e não por ser
Serralves a apresentá-lo. O trabalho de um museu, em qualquer parte
do mundo, não é a exportação dos artistas do seu contexto
nacional. Deve criar possibilidades de outros conhecerem e se
interessarem pelas suas obras e poderem vir a trabalhar com eles. Se
um director de um museu inglês ou norte-americano me apresenta um
artista pela sua relevância no contexto nacional, isso não é
argumento para o programar em Serralves. As opções dos museus têm
de vir dos seus próprios programadores e não de uma relação
negocial de importação-exportação ou de troca.
Têm-se trocado
exposições com vários museus, mas não de portugueses.
Não
fazemos troca pela troca, intercâmbio pelo intercâmbio. O contexto
do intercâmbio cultural é criado por contextos políticos, e nas
programações dos museus isso não existe. Temos de ser respeitados
na nossa programação e respeitamos os outros. O que pretendemos é
que, com as exposições, os catalogos e a visibilidade que damos aos
artistas portugueses, as suas obras tenham condições para serem
conhecidos dentro e fora do pais. Se isso obedecesse a uma
estratégia, não resultaria, porque nenhum museu que se preze
programa na base da decisão política ou da relação
inter-institucional.
Alguns museus
espanhóis, de Badajoz e Santiago, têm feito circular mais artistas
portugueses que as instituções nacionais. Serralves dialoga com um núcleo restrito de museus, mas há outras redes com
maior abertura.
Achamos
que uma programação interessante não depende de factores exógenos
às obras dos artistas, e os artistas não se devem afirmar por
factores exógenos. Há muitas exposições de intercâmbio entre
embaixadas e governos, mas nunca é a exploração desses canais
institucionais político-diplomáticos que pode afirmar a obra de um
artista ou um contexto nacional. É claro que há factores
geoculturais e geopolíticos na difusão de determinados artistas do
nosso tempo, e o facto de haver centros políticos e económicos no
mundo faz com que também haja centros artísticos; ao longo da
história da arte isso sempre aconteceu. Seria altamente negativo se
um museu estrangeiro programasse um artista português por um
intercâmbio negocial. Portugal foi um país muito isolado e as
pessoas conhecem mal o contexto português, há poucos
coleccionadores de artistas estrangeiros, não há uma rede de museus
e centros de arte que crie uma relação estrutural com o universo da
arte contemporânea, e não é o aparecimento de um museu, mesmo com
a projecção internacional de Serralves, que consegue de um momento
para o outro redimir todo o isolamento do passado, mas estamos a
criar condições para ele deixar de existir. Hoje já é muito mais
fácil a um artista de vinte e tal anos ser convidado para uma
exposição internacional do que aconteceu com gerações anteriores.
Há condições para abrir um caminho, não para impor um caminho.
Falemos brevemente da
colecção. Bacon não foi incluído na exposição «Circa 68», que
definiu o programa do Museu e o modelo da colecção. Não está no
programa das aquisições?
É
um artista que não faz parte daquilo que assumimos como uma profunda
renovação das linguagens artísticas que ocorre na década de 60;
nessa década Bacon continua uma obra que aparece e se afirma na
década de 40. O programa de aquisições está em grande parte
delineado desde a inauguração. Decidimos começar a colecção a
partir de meados da década de 60 e tomámos a opção de constituir
um núcleo histórico que constitua uma identidade e um ponto de
partida da colecção.
Mas é nas décadas de
60 e 70 que Bacon se afirma internacionalmente e são desses anos as
suas melhores obras.
Achamos
que é um artista que vem de um contexto de problematização da arte
e de fazer arte que não é característico dessa época, que já vem
vem no passado, se bem que seja uma obra sempre viva, como podemos
ver neste momento. Há muitas obras do passado que gostaríamos de
poder ter na colecção e confesso que a decisão de periodizar a
colecção desta maneira também é decorrente das possibilidades
orçamentais que temos. Mas é também uma leitura sobre a história
da arte do séc. XX, obviamente.
Essa leitura implica
a convicção de que houve uma mutação de linguagens que exclui
linguagens como a do Bacon, que continuaram activas, e que são
prosseguidas hoje por outros artistas?
Podemos expô-los em mostras temporárias, como agora estamos a
fazer. Comprar um quadro do Bacon significa que o nosso orçamento
para cinco anos seria gasto numa só obra. Achamos não é melhor
maneira de construir uma colecção em Portugal.
São critérios de
ordem estética ou financeira? O que chama as novas linguagens são
as mais baratas, são o que resta quando se não pode comprar mais
caro e melhor?
Os
dois convergem, mas não estamos a falar do que resta, estamos a
falar de poder criar novos pontos de vista. Esta colecção não
pretende fazer em Portugal o que outros museus já fizeram.
Não estamos interessados em mais uma caixa
Brillo do Andy Warhol ou em repetir o que se passou nos museus
europeus em relação ao impressionismo, em que cada museu local do
centro da Europa tem o seu núcleo impressionista. A ideia é que
esta colecção acrescente um pouco às colecções que já existem.
Que existem lá
fora… Há uma fatalidade portuguesa que impede que haja no país um
núcleo impressionista ou clássicos do séc. XX?
Será
muito difícil encontrarem-se condições na sociedade portuguesa
para isso. Portugal perdeu a contemporaneidade durante grande parte
da sua história e não tem neste momento contexto
económico-financeiro para a resgatar de um momento para o outro.
*
13/01/2013
Por
oito vezes a nova directora de Serralves, Suzanne Cotter, fala da sua
comunidade ou, em geral, da comunidade artística, o que é aliás
destacado numa das legendas da entrevista que a Revista do Expresso
publica no último sábado, conduzida por Ana Soromenho. A palavra
comunidade e o comunitarismo estão na moda, e aquela é também usada por
"um arquitecto global" que, páginas antes, "dá que falar" (por más
razões no caso da nova Garagem dos Coches - que aí não se refere). É o
mesmo que as antigas corporações, uma gestão corporativa de interesses,
auto-regulados pela profissão, agentes e adjacentes (o meio, le milieu).
A srª directora até diz que o programa tem de ser "excitante
para o público" e reconhece "a obrigação de envolver as pessoas e
conseguir inspirá-las", mas é óbvio que a referência, o parceiro, o
destinatário é a comunidade de que tanto fala - não a commonwealth, mas
"o meio da arte" -, apontando para "o diálogo com impacto junto dos
agentes - os críticos, os artistas, os curadores - que fazem parte da
minha (sua) comunidade." É a continuidade, cada vez mais
auto-referencial e mesmo autista, de uma certa defesa do modernismo
(tardio) que impôs a compartimentação da arte e desfez “a continuidade
da experiência estética com os processos normais da vida”, como dizia o
grande filósofo pragmatista norte-americano Dewey. Foucault também
deplorava a especialização da arte defendida por alguns modernos: “o que
me espanta é que a arte seja um domínio especializado, próprio de
especialistas que são os artistas”, ...“é o facto que na nossa sociedade
a arte se tenha tornado qualquer coisa que só entra em relação com
objectos, e não com os indivíduos ou com a vida” (Dits et Écrits IV, p.
392, cit. por Richard Shusterman, Vivre la philosophie. Pragmatisme et art
de vivre, Klincksieck, 2001, p. 43)