Quando o convidaram a expor uma antologia das suas estampas ("Pomar - Obra Gráfica", Fórum da Maia, 1998), o autor distribuiu-as por cinco "linhas temáticas": O Povo, A Festa, Eros, Animais Sábios e Ficções. Também poderiam servir para catalogar toda a sua obra, só acrescentando os retratos, que estão agora em exposição no Atelier-Museu com o seu nome. A fórmula continuou a ser usada em reedições itinerantes da mostra, até 2003, justificada assim pelo artista: "uma tentativa de arrumação, salientando o que, ao longo dos anos e sob várias formas, foi de uma maneira ou de outra marcando a obra" (prefácio na reedição de 1999, Leiria). Uma outra arrumação posterior, proposta por Marcelin Pleynet sumariou toda a sua produção de outro modo, próximo: Identidade/Identidades (auto-retratos e retratos); Lugar/Mundo (aqui coube a paisagem e as secções Povo e Festa, muito alargadas, incluindo as pinturas sobre Maio 68); Eros; Animais de Companhia (os Sábios e outros); Fábulas Fintadas (as Ficções) – em "Pomar - Autobiografia", ed. Sintra Museu de Arte Moderna Colecção Berardo / Assírio & Alvim, 2004.
Aquele primeiro índice oferecia direcções de leitura das obras reunidas, que abrangiam cinco décadas de actividade na área da produção de múltiplos impressos (gravados ou estampados - e foram quase oito décadas no total), mas também recusava a catalogação por especificidades técnicas, gravura e serigrafia, ou mais especificadamente, quanto à gravura, pelos seus processos: linogravura, xilogravura, água tinta ou água forte, litografia e outros. Justamente, importavam mais os assuntos que as fronteiras.
Arroz II 1954, linóleo / Mono Sábio 1962, Xilogravura a cores
2. Lembrou Pomar no prefácio de 1999 já citado que a obra gráfica então exposta se dividia em dois períodos distintos. O primeiro ia no catálogo de 1951 a 1963 (e poderia começar antes, em 1948, com os linóleos iniciais), acrescentando que a prática da "gravura de autor" coincidia na sua quase totalidade com a participação na fundação e dinamização da GRAVURA - Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, em 1956. De facto, antes da GRAVURA já se envolvera na criação e promoção do que se chamava "gravura contemporânea", começada esta em exposições colectivas e em artigos na imprensa sobre "essa desconhecida, que é a gravura original" (1), a "estampa original" - dizia então que "a gravura e o mural aparecem aos artistas empenhados na conquista de um novo realismo como os dois veículos mais fecundos" (2)
Foram anteriores à GRAVURA algumas edições com grandes tiragens que se encontravam em todas as casas da Oposição e hoje são raras: "Mulheres Fugindo" (A bomba atómica), "Menina e Pombas", "A Refeição do Menino" – então chamada "Família" –, todas elas de 1951, distribuídas nomeadamente pela SEN, Sociedade Editora Norte, no Porto, e próprias das campanhas pela Paz de um dos lados da Guerra Fria, que então se agudizava: a pomba da Paz que Picasso popularizou quando do Congresso Mundial de Paris de 1949 está presente em quatro versões. E também antecederam a GRAVURA as três figuras do ciclo "Arroz", associadas a Vila Franca de Xira, já de 1954.
No catálogo geral da sua obra gráfica, de 2015 (3), contaram-se como gravuras 116 estampas, sendo 32 anteriores à GRAVURA e 13 as respectivas edições distribuídas aos associados, até 1965, sendo os outros números recenseados edições do autor (às vezes em 5, 15 ou 30 exemplares) e alguns provas de ensaio e de trabalho, talvez sem tiragem ou ela é desconhecida. À época não se guardavam registos. A propósito, note-se que desde início a gravura apareceu também associada à ilustração e à arte do livro, incluída em edições ou tiragens especiais, que se usava lançar em fascículos: duas primeiras "Tauromaquias" eram litografias coloridas à mão, de 1950, agora expostas pela primeira vez, com uma condição alegórica que precedeu a observação directa; três litografias para o "Romance de Camilo" de Aquilino Ribeiro (1955-57); doze litografias para o "Grande Fabulário de Portugal e Brasil" (1958-1962); doze xilogravuras para "A Divina Comédia - O Purgatório" de Dante (1961-62).
Num levantamento por temas, as tauromaquias acontecem em maior número, onze, desde 1961, precedidas por três touros de 1959-60, continuando-se na longa série de pinturas, até 1964, já em Paris. As presenças do mar, da praia, pesca, lota e mercado são 14 num total que vai com grande diversidade formal desde de 1951 (Pescadores) e 1952 (Nazaré) até 1959-60 com o Sargaço, passando pela Ribeira de Lisboa (1953 e 57) e a Mulher do Mar (1956) que valeu o Prémio Gulbenkian. Na pintura abandonava o neo-realismo mas a representação das figuras do trabalho continuou a ser predominante (sem operários, existem o vidreiro, o saltimbanco, um camponês, para além do breve ciclo "Arroz"). A série da viagem às Astúrias teve quatro números, de visita a um arcaico mundo rural, em 1957-58. São tantos como os nus de 1958-61, que não eram uma novidade; publicou e expôs outros nus desenhados desde 1948, logo com alguma polémica interna ao meio da crítica.
Dom Quixote formou uma série de 6 edições (1959-61), paralela a pinturas e esculturas, por ocasião das ilustrações para a edição Bertrand da tradução de Aquilino Ribeiro (1960), e autonomizando-se delas. Está também presente todo um bestiário, espaçadamente desde 1952, assim discriminado só em figuras isoladas, talvez em muitos casos certamente sem haver tiragens, ou desconhecidas, só pelo gosto de gravar, em geral em placas de pequeno formato: elefante, javali, dois gnus, porco-espinho, burro, peru (em 450 exemplares para oferta da GRAVURA a todos os sócios, em 1957), depois a hiena, três símios (com o famoso mono-sábio, de que houve um quadro de 1961), galo, papagaio, além dos touros...
3. O segundo período iniciou-se mais de 10 anos depois da instalação em Paris, compreendendo serigrafias e litografias que foram "interpretando e divulgando algumas obras, as quais foram trabalhadas em ateliers especializados de Paris, Lisboa e Barcelona por iniciativa de vários editores" (Pomar 1999, op.cit.) A partida para Paris data de 1963, e a pintura absorveu-o por completo. As primeiras edições apareceram só em 1974: Kompass de Lisboa, ligada à 111; Éditions Art Moderne / Galerie Belechasse, de Paris; e Joaquim Vital, que com as suas Éditions de la Différence iria continuar até 2004 a ser responsável por numerosos projectos associados à ilustração, ou não.
No total, este tempo longo teve 175 edições, sem contar as extensas séries do "Catch" (a luta livre francesa, desenhos de 1965 litografados em 1978) e "Jogos de Praia/ Jeux de Plage" (Cenas de praia, Costa da Caparica, Setembro 1963-2001), com 34 e 16 folhas respectivamente. Depois do catálogo encerrado em 2015 aconteceram mais dois ou três números.
La chambre Noire 1976, serigrafia
Destacam-se neste conjunto as edições que formam álbuns de grande formato (apresentados em pastas ou caixas), próprios do mercado internacional: "Le Livre des Quatre Corbeaux", sobre um poema de Edgar Pöe, The Raven / O Corvo, e retratos dos seus tradutores, Baudelaire, Mallarmé e Pessoa (ed. La Différence 1985); "4 Tigres", serigrafias com colagens (F. X. Lovat 1994); "Les Quatre Singes" (Différence, 1997); "Marujos & Cia / Marins et Cie", onde cruzou a Ode Marítima de Álvaro de Campos com Ulisses (Del Fiore Edition 1999). E também a série "L'Équipée de La Chasse au Snark", a partir de Lewis Carroll (Différence 1999) cujas estampas foram distribuída avulso, ou o volume "La Mémoire du Sel / Le Sel de la Mémoire", de parceria com Claude-Michel Cluny, com sete Mães Índias de um regresso à Amazónia por via de Pero Vaz de Caminha (Différence 2003; acompanhando a exposição de pinturas «Méridiennes - Mères Indiennes», Galerie Patrice Trigano 2004). E ainda alguns projectos interrompidos de Joaquim Vital: as litografias que acompanhariam as ilustrações de "Kadama Vivila", poesias eróticas, sotádicas, de Gilbert Lely, biógrafo de Sade, em 1977 (quatro em sete previstas, que agora se expõem certamente pela primeira vez e não figuraram no catálogo de 2015); mais a referida série "Catch", distribuída numa caixa original só em 2014. Em dois casos maiores, o Corvo e o Snark, a criação dos múltiplos acompanhou as séries de pinturas, de que nunca são meras reproduções, surgidas de convites para ilustrações, mas excedendo-os em muito, como acontecera décadas antes com a série sobre Quixote, motivada pela tradução de Aquilino Ribeiro (Bertrand, 1960).
A produção foi tematicamente muito diversificada, mas podem apontar-se 16 edições de 1974 a 1979 próprias do ciclo "L'Espace d'Éros"; onze ou doze tigres, desde 1980; onze variantes dos indios do Xingu, sem contar as já referidas Mães, bem como regressos pontuais aos temas de D. Quixote, tauromaquias, corridas de cavalos, em edições originais. Foram reproduzidas e/ou reinterpretadas obras várias com datas que recuam de 1944 a 1973, que se incluiram num capítulo intitulado Anexo na edição da Obra Gráfica completa, separando-se das serigrafias iniciadas em 1974.
serigrafias originais criadas por ocasião da inauguração do Atelier-Museu Júlio Pomar, 2013. Burro tocando guitarra e Burro tocando guitarra (Ó fartar vilanagem)
4. Voltando a lembrar as secções e as obras escolhidas da antiga antologia, O Povo acolhia "a "produção chamada neo-realista", como escreveu Pomar, completada a propósito com uma edição comemorativa do 25 de Abril. Era uma breve síntese das figuras do trabalho - da lota e do mercado, do sargaço, mulheres quase sempre.
A Festa inclui as tauromaquias (a festa brava), de 1961-63, mas também a série dos Índios do Xingu, de 1990, acrescentada em 1998 com os banhos das crianças no rio. Informava o artista em 1999 "que [a Festa] começa a desenhar-se dentro deste período [neo-realista], marca o seu fim, e reaparece em momentos vários até à actualidade".
A terceira série, "sob o signo de Eros", data de 1974-79, ao tempo de uma nova linguagem de formas recortadas e cores planas com que construiu o seu "teatro do corpo", mas poderia começar com os nus gravados nos anos 1958-59. Eros atravessa toda a obra.
Os Animais Sábios percorrem a representação animalista, como se dizia, desde o "Touro" de 1960 aos porcos do final da década de 1990, passando por macacos de várias espécies e épocas, os corvos (os do poema de Edgar Pöe e os que acompanharam Bocage no metro do Alto dos Moinhos – Camões teve pombas e Pessoa gaivotas). E também os tigres, nascidos de um conto de Jorge Luis Borges.
Eram já exemplos do "gosto de efabular", diz o artista, gosto se acentua na série final, Ficções, que ilustra a continuada relação de Pomar com a literatura e inclui os "Retratos Imaginários", com circulação mais tardia pelos territórios dos mitos. Primeiro os D. Quixote, de 1959-60 e outra vez em 1998, depois Camões e Fernando Pessoa, Adão e Eva, Ulisses e as sereias, Hércules e o Centauro, o Snark, etc.
Toda a Obra Gráfica de Júlio Pomar foi reunida num volume com esse título, ed. Caleidoscópio 2015. Com coordenação e texto de Mariana Pinto dos Santos e pesquisa e catalogação de Alexandre Pomar.
Blason / Brasão e Tigre azul, 1980-2001
5. Porque se imprimem estampas? Os objectos e as suas designações (gravura, serigrafia, etc) prestam-se a diversos equívocos, por flutuações conceptuais e falta de fixação de terminologia específica. Estampa usa-se em espanhol e francês, print e printmaking em inglês, grafik em alemão, incluindo "as várias formas de criação artística que envolvam qualquer técnica de impressão". Gráfica Popular era nos anos 1950 o inspirador exemplo mexicano; em Espanha chamou-se Estampa Popular o grande movimento de gravadores que investiu a abertura política a partir de 1960, como uma GRAVURA da esquerda militante. A palavra gravura toma a parte pelo todo, e agora, ao contrário, chama-se por vezes serigrafia a tudo. Uns desvalorizam os múltiplos como cópias e reproduções, o que é muitas vezes errado, outros referem-se-lhes como quadros. A simultânea condição de original e de múltiplo – própria da estampa de autor, tal como da escultura em bronze, da prova fotográfica e de outras obras de arte que partem de um matriz ou de um molde, de um negativo ou ficheiro informático –, é mal entendida: o curso da ideia de reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin, que quis com ela valorizar a fotografia e o cinema, contrariando a aura e a unicidade da obra de arte, ou a esta atribuída pela estética convencional, não ajuda. Estampa original, estampa de interpretação, de reprodução, estampa tipográfica, etc., qualificam criações e produtos diferentes no mesmo campo da multiplicação de imagens, em geral sobre papel. Também se chama gravuras às figuras incisas nas pedras de Foz Côa. E "obra gráfica" pode incluir o desenho, como ensinou o professor Hellmut Wohl na exposição "Júlio Pomar. A Comédia Humana" (CCB 2005).
Produzem-se gravuras e serigrafias, estampas, para multiplicar o acesso à criação de um artista através da edição de originais em tiragens limitadas e numeradas (prática regulada só no final do século XIX, por razões de mercado). Associam-se assim a divulgação e um coleccionismo acessível. Trata-se sempre da possibilidade de democratização da arte, de a tornar acessível a um maior número, a que no tempo neo-realista se dava um sentido político de militância, entretanto desvanecido.
Também para experimentar um outro campo de práticas, técnicas ou processos de criação, ao lado e diferentemente da pintura de cavalete ou mural, e do desenho (a lápis, pena, marcador, etc.) – e igualmente da escultura nas suas várias possibilidades, da cerâmica, do vidro, da tapeçaria e do vitral, que Pomar praticou. Talhar um bloco de madeira e rasgar uma chapa com ácido são práticas manuais (artísticas) que proporcionam resultados (imagens, traços, texturas, colorações) diversos dos do uso do pincel sobre tela, do lápis sobre o papel. É um exercício diferente, paralelo e autónomo, de experimentação e de criação, com que se pode estabelecer um diálogo com a pintura e o desenho mutuamente produtivo.
E para explorar um mercado mais acessível que o da pintura – por razões económicas, portanto, causa tantas vezes ocultada em matérias de arte. A criação da GRAVURA, para além de potenciar a divulgação de obras e de fornecer acesso colectivo a meios técnicos e aprendizagens, um atelier e uma escola, veio assegurar melhores condições de existência oficinal e material aos artistas, e no caso de Pomar veio exactamente suceder à produção de cerâmica (no Bombarral e nas Caldas da Rainha) que era, desde as primeiras mostras individuais, muito mais vendável que a pintura. Do artista-impressor ao serígrafo registou-se uma mudança marcada pela distância criativa e a intermediação técnica sujeita à facilidade da multiplicação, que acabou por fragilizar a produção e favorecer o mercado dos cromos. (A ordem das respostas não é aqui fixa.)
O banho das crianças no rio Tutuari II, 1997-1999
- "Exposição de gravuras modernas na Associação Académica da Faculdade de Letras de Lisboa, in Vértice nº 113, Janeiro 1953, reed em Júlio Pomar, Notas sobre uma arte útil, p. 242.
- "Gravuras Gauchas", Vértice, nº 117 Maio 1953, op. cit. p. 259. Sobre gravura ver também "Encontro com Méndez", Vértice nº 67, Março 1949, p. 158, e "Uma grande artista alemã em Lisboa" (Greetchen Wohlwill), Arquitectura nº 45, Novembro 1952, p. 233.
Versão revista e ampliada do texto publicado no catálogo da exposição "Júlio Pomar- A obra gráfica numa coleção privada", que apresenta peçasa da colecção do galerista Paulo Nunes, no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira (28 nov. - 23 maio 2021)
2 jan 21